segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Memórias Musicais II


Apaixonado pela música, como anotei na primeira parte desta crônica, logo criei o hábito de copiar num caderno todas as letras cantadas por Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Anísio Silva, Ângela Maria, Orlando Dias, Caubi Peixoto e muitos outros. O desejo de cantar e aprender novas canções era tão grande que passei a esconder-me nos fundos da loja da minha tia, onde ficavam as instalações do serviço de alto-falante e a discoteca, e lá me perdia durante horas copiando as letras e cantando-as. As noites de lua cheia eram de uma beleza indescritível. Naquela vila remota, sitiada pelo canavial e privada de luzes artificiais, a lua derramava sua luz esplêndida sobre toda a paisagem apreensível pelo meu olhar maravilhado. Uma estranha comoção lírica me tomava quando erguia o olhar para a lua e em seguida girava-o sobre a paisagem recoberta por casas, canaviais, o rio, as pedras, o lajedo iluminado às margens do Pirangi. Então deitava-me sobre os lajedos, com os olhos extáticos presos à luz da lua e cantava as canções mais românticas e dolentes que sabia. Mais que isso, cantava imitando a voz do intérprete. Eram momentos de solidão epifânica vividos sem que eu soubesse o que era a epifania produzida pela arte.

Que me lembre, a solidão harmoniosa, elo inefável de comunhão entre mim e o ambiente deserto, esse acordo sutil entre mim e minha subjetividade, esteve na origem diretamente associado à música. Era a música cantada na solidão dos lajedos nas noites de lua cheia, assim como a Ave Maria ouvida com solenidade mística na hora do Angelus. Quando ouvia a Ave Maria de Bach e Gounod, introito místico de anunciação da noite, afundava num estado de melancolia serenamente recoberto pela beleza misteriosa da música. Esse momento se tornou tão precioso e comovente na minha infância que a ele me afeiçoei convertendo-o em hábito pontual. Mal escurecia, mal pressentia a hora do Angelus anunciada numa voz de soprano cantando a Ave Maria, e logo quietamente me recolhia aos degraus da calçada e ali me sentava contrito, rendido à beleza mística da música.

Nelson Gonçalves era o melhor cantor do mundo. Acreditava nisso como acredito na luz do sol e por isso aprendi todas as músicas que cantava imitando-o com a servilidade inconsciente de um papagaio. Na minha idolatria ingênua, chegava a me dizer que nunca existiria no mundo cantor igual. Enquanto menino e adolescente, essa atitude se renovou no culto de outros artistas da música, do cinema, também de jogadores de futebol. Chegou porém o dia, não me lembro precisamente quando, em que me libertei dessa idolatria cujas raízes são nitidamente eróticas, além de idealmente projetarem no objeto de culto tudo que não somos ou gostaríamos de ser. Chegou o dia em que, sem explicação precisa, libertei-me de todo esse culto que é parte de qualquer sociedade ou tribo, mas que a sociedade do espetáculo elevou a dimensões sem precedente. Hoje tenho a convicção de que a condição do homem subjetivamente livre é inconciliável com qualquer forma de culto subserviente orientada não importa para que objeto: um deus improvável, o artista mais sublime, o escritor mais extraordinário, o pensador mais profundo, o ídolo pop, o líder religioso ou político, o astro supremo da mídia... O homem livre jamais confunde a admiração, dedicada a quem dela é merecedora, com a idolatria.

Falando ainda dos ídolos musicais do mundo em que vivi, certamente chocaria o leitor saber que Luiz Gonzaga não fazia parte dos objetos de culto na minha infância e adolescência. O fato é ainda mais chocante se consideramos o lugar supremo que passou a ocupar em toda a cultura de massa nordestina e se a isso acrescentamos que sua música está enraizada nas tradições rurais brasileiras. O fato encerra significações sociológicas que merecem um breve registro. Antes de tudo, voltando às minhas memórias, Luiz Gonzaga era parte apenas do repertório obrigatório durante o ciclo das festas juninas. Aí ele imperava sem concorrente. Mas era só. Penso que um dos fatores de resistência à sua música derivava do preconceito de classe e região.

Talvez muita gente hoje esqueça que sua música passou a integrar o repertório e os padrões de gosto da classe média urbana graças ao movimento tropicalista. Foi o meu caso. Foi exatamente por força da influência do tropicalismo, que bravamente desafiou preconceitos e noções estabelecidas de qualidade estética, que comecei a ouvir a música de Luiz Gonzaga. Lembro precisamente que isso começou com as interpretações renovadoras de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa. É também verdade que a era dos festivais de música, dominados ideologicamente pelo nacionalismo musical que privilegiava fontes musicais rurais e notadamente nordestinas, valorizava indiretamente a música simbolizada na figura de Luiz Gonzaga. Digo indiretamente porque a música dos festivais, apesar das fontes e tradições que exprimia, era recriada por artistas de classe média urbana e universitária num momento em que a incipiente montagem do nosso sistema de cultura de massa era ainda dominada pelos valores da elite urbana.

Apreciando a questão da perspectiva do presente, é claro que a dominação dos valores da elite era superficial e apenas momentânea. Basta observar agora quais são os valores dominantes da cultura de massa, que forma de cultura de massa prevaleceu no Brasil. Apesar da extraordinária expansão do capitalismo, agora globalizado de forma irreversível, de décadas de urbanização, da universalização dos meios de comunição de massa, da educação de massa e da revolução tecnológica extensiva em graus variáveis a todas as esferas sociais, o baixo padrão dominante de cultura é patente. Diria mais. Diria, para quem não receia ser levianamente confundido com um elitista desprezível, que o padrão da nossa cultura de massa constitui uma ofensa ao receptor inteligente e cultivado. O que prevalece no sistema midiático, sobretudo na mídia aberta, na que expressa os valores da maioria e por isso dá as cartas dos níveis de audiência, é o que há de pior nos valores dos diferentes grupos e classes constituintes da sociedade global.

Retendo a argumentação no domínio desta crônica de memórias, nossa música de qualidade refugiou-se, dentro do processo de segmentação cultural imposto pelos interesses e a complexidade do sistema dominante, em nichos somente acessíveis a uma minoria bem formada e portanto autônoma o suficiente para mover-se por conta e escolha própria através dos labirintos da cultura midiática. A minoria de qualidade, com perdão do truísmo, já que maioria e qualidade são incompatíveis, sobrevive em nichos tão inacessíveis que é preciso um bom trabalho de garimpagem para chegar a essas pérolas. Como não sou navegador frequente da internet, sei de algumas e descobri outras graças a alguns amigos melhor informados, ou mais pacientes no exercício da garimpagem; de outras, através do acaso afortunado. Seria contudo insensato esperar que essas pérolas tivessem lugar na televisão e na rede de consumo de massa.

Reato o fio volúvel da minha memória, demasiado poroso às digressões e desvios tecidos por fios associativos insondáveis, apenas para arrematar a crônica. Contraí pneumonia num certo dia do segundo semestre de 1967. Prisioneiro do repouso forçado, vi-me de repente atado a uma cama na sala de visita da casa onde morava a minha família. Como esta era bem maior que a casa, nunca desfrutei do privilégio de ter meu próprio quarto, o quarto só meu pelo qual durante muitos anos ansiei. Portanto, não precisaria ser feminista para compreender muito bem o sentido da expressão “um quarto todo meu”, que com a devida variável subjetiva confere título a uma das obras mais celebradas de Virginia Woolf. Um acaso feliz prendeu-me à cama diante da televisão precisamente quando começou o terceiro festival da música popular brasileira produzido pela TV Record. Foi o mais importante da era dos festivais de música. Foi também o ponto de inflexão da minha conversão apaixonada à MPB.

Diante dos meus ouvidos e olhos deslumbrados, passei a conhecer verdadeiramente a música da melhor geração musical que já tivemos: Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Francis Hime, Dori Caymmi, Sidney Miller e outros um pouco mais velhos ou mais jovens. Devo todavia acrescentar que o fato verdadeiramente revolucionário na minha obscura trajetória de amante da música ocorreu um pouco mais tarde. Entusiasmado ao adentrar aquele mundo musical que me penetrava os ouvidos e a imaginação lírica, passei a conhecer tudo que podia dessa tradição que desembocou na geração acima, protagonista dos festivais de música. Foi assim que num certo dia ouvi “Chega de saudade” e senti o choque de saber que Tom Jobim e João Gilberto existiam. Depois disso, sem exagero, aposentei Nelson Gonçalves e quase toda a música que amava ouvir e cantar durante minha infância e adolescência.

E assim, repetindo Drummond, cansei-me de ser eterno e então me tornei moderno. Ninguém sabe bem o que é isso, muito menos eu, mas quem resiste à fluida sedução dessa palavra tão desejada e contestada que, a troco de tudo e de nada, foi reiteradamente invocada durante o século vinte? Tanto a invocaram e ainda o fazem que, na falta de alguma exatidão conceitual, passamos a recorrer aos prefixos pré e pós também a troco de tudo e de nada. E por aí vamos nos desentendendo. Não importa. Importa apenas afirmar que aprendi a ser musicalmente moderno com Tom Jobim e João Gilberto. Depois deles, atirei o repertório da Amplificadora Santo Antônio na lixeira da história, como prezavam desprezivelmente decretar certos marxistas detentores das leis implacáveis da deusa História.

O que a experiência me ensinou, se com ela aprendi alguma coisa, é que convém dar razão ao humor cético e corrosivo de Millôr Fernandes: a história é apenas uma istória. E a memória é uma recriação ficcional do memorialista, acrescento eu. Longe de mim sequer insinuar, ao compreender a memória nestes termos deliberadamente provocativos, que tudo que acabo de escrever é pura invenção da minha imaginação. A matéria bruta da crônica são fatos e experiências vividos e retidos na memória. O que intento traduzir, ao afirmar que a memória é uma recriação ficcional, é a natureza do processo de composição de qualquer texto biográfico, diria por extensão qualquer texto baseado na memória e nos múltiplos modos de documentação do passado. Esse processo é sempre uma recriação parcial. Além de ser uma faculdade de poderes falíveis, como tudo que é humano, a memória é refém de uma infinidade de armadilhas, muitas inconscientes, que sempre deformam o vivido. Fico todavia por aqui. Ir além disso seria vestir-me da presunção de ser um teórico da história ou da psicologia.

Recife, 16 de agosto de 2012.

Um comentário:

  1. Sou mais Waldick. Mas no sertão pernambucano, você prefere zona da mata; eu, vanessa. Marinês imperatriz. Cadê as origens? O sonho acaba, a esperança chega ao fim. Tudo foi ilusão, sem pressa. E José Augusto vê sombras, nada mais. "-Dr., ouço vozes". "- Eu também, meu filho".

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