sábado, 8 de setembro de 2012

Memórias Musicais I


Who hears music, feels his solitude
Peopled at once.
Browning.

A música é talvez o mais poderoso catalisador da memória. À parte sua beleza intrínseca, ela converte o momento em duração enraizada na memória. Dado o fato de que povoa, como foco ou fundo, grande parte do que vivemos, impregna não raro de forma inconsciente fração significativa da nossa vida. O avanço extraordinário da tecnologia que a registra, difunde e amplifica concorreu, em escala sem precedente, para fazer com que penetrasse de múltiplas formas o cotidiano que vivemos. Afinal, agora ela está em tudo, sobretudo numa cultura privada de regulação, como é o caso do Brasil e notadamente do Nordeste. Isso a torna hoje, para gente do meu tipo, antes de tudo indesejável e até irritante, pois o que passamos a ouvir, de ordinário contra nossa vontade, não passa de lixo ruidoso. A onipresença da música inclassificável, por ser boçal e ensurdecedora, suprimiu as condições ambientes indispensáveis à recepção e à interpretação da música que importa para a minha vida, pois esta é indissociável do silêncio e da solidão.

A música é a nota dominante da minha memória, pois o próprio amor, no que contém de mais belo e memorável, está com frequência associado à canção que ouvia enquanto dançava, ou na amada me perdia dentro da penumbra do quarto ou da sala, à explosão de gozo e momentâneo apagamento do ser, ou fusão mágica que se esgota na duração do instante. Está ainda associada ao trânsito lírico dentro da noite, quando Recife e outras cidades eram propícias à livre expansão do amor fora do círculo privado da casa e do motel. Aludo a um tempo, não muito distante, em que ainda não se cavara o fosso intransponível entre a rua e a casa, entre o território público e o privado. Está ainda associada às festas que variavam da euforia, da diluição ruidosa dentro do grupo, à meia-luz íntima dentro da qual os corpos se respiravam e se apertavam antecipando a penetração e o gozo indizíveis. A música, até quando harmônica e ritmicamente “fria”, é expressão suprema do princípio do prazer e das pulsões dionisíacas.

Agora, entretanto, recuo no tempo, pois escrevo apenas uma crônica de memórias centradas na música, no lugar que ela ocupou na minha vida desde a infância. Os anos mais significativos da minha infância vivi-os na vila de Igarapeba. Um dia escrevi uma crônica sobre uma dessas enchentes previsíveis que devastam cidades e vilas do Brasil. Como Igarapeba, apesar de sua obscuridade, é também vítima dessas catástrofes que não queremos prevenir, dela fiz o objeto da minha crônica, antes de tudo uma crítica de fundo sociológico às nossas misérias seculares. Mas incorri na ofensa de qualificá-la como Sibéria tropical e outras analogias metaforicamente justificáveis. Não obstante minha consciência do quanto somos governados por paixões etnocêntricas, cuja estupidez não resiste a um parágrafo de apreciação racional, perturbaram-me as pedras e o orgulho ferido dos igarapebenses caindo sobre meu telhado de vidro.
Encurtando o enredo (que está documentado na crônica e devidos comentários postados no meu próprio blog e sobretudo no blog Amálgama), eis um conselho que dou de graça ao leitor avesso a brigas inúteis e insolúveis: nunca se atreva a criticar sua terra de origem. O orgulho ferido dos conterrâneos, não importando o quanto haja de verdade na sua crítica, jamais o perdoará. Em suma, a razão e o etnocentrismo tacanho nunca se entendem.

Pessoas que vivem infelizes dentro da atmosfera poluída, violenta e ruidosa das grandes cidades tendem compreensivelmente a idealizar a vida dos vilarejos e cidades pequenas. É um fenômeno tão compreensível e universal que se espelha tanto nas memórias nostálgicas das pessoas comuns quanto na mais alta tradição teórica apreensível no estudo da sociologia, da antropologia e da psicologia social. O exemplo mais célebre consiste na tipologia de farta e longa recepção crítica proposta por Ferdinand Tönnies: gemeinschaft e gesellschaft, isto é, comunidade e sociedade. O primeiro tipo, a comunidade, caracteriza-se pelas relações homogêneas amplamente baseadas nos vínculos de parentesco e em formas orgânicas de convívio entretidas por uma população restrita. Essa população confunde-se praticamente com os elos da vizinhança dentro de um mundinho onde todos se conhecem. O segundo tipo, em oposição, é regido pela divisão do trabalho, o individualismo, a competitividade, as relações impessoais e abstratas, em suma, por processos sociais geradores de solidão e isolamento, perda de vínculo significativo com o semelhante e outras consequências indesejáveis.

Embora não negue o fundo de verdade inequívoco contido na tipologia acima sumariamente descrita, vivi nos dois mundos e não tenho dúvida de que, apesar de tudo, prefiro de longe o mundo da cidade, a sociedade com tudo que contém de bom e de ruim. O ideal, claro, seria fundir o melhor dos dois tipos num tipo único de sociedade. Aderir a essa fantasia é renunciar à compreensão realista da sociedade, ou wishful thinking, como dizem em inglês. Comigo não, violão. Confesso odiar a cidade em que vivo, entregue a uma classe dirigente estúpida e corrupta que a empurra a passos acelerados para um inferno urbano nitidamente visível. Daí à regressão para uma comunidade idílica e fantasiosa... bem, a passada é grande demais para as pernas curtas das minhas fugas insensatas.

Vivi numa vila o suficiente para saber o quanto doem e frustram as rotinas rangendo ao longo do dia previsível na sua miudeza, na pobreza e miséria irreparáveis, no tédio abafante do dia sob o sol e da noite imersa em trevas. Que há de tão desejável num mundo de horizontes literalmente apertados, de vidas sem perspectivas diluindo-se na fofoca, na polícia que cada vizinho exerce sobre o outro, numa prisão comunitária cuja eficiência e olho inescapável tornam a instituição policial prescindível? Que há de tão desejável num mundo onde a tradição e o costume anulam qualquer veleidade de liberdade individual? Isso é tão verdadeiro que todos que migram para a cidade grande nunca mais voltam, embora zelosamente desatem o fio fantasioso da nostalgia quando o presente se torna irrespirável ou mesmo banalmente infeliz. Comigo não, violão. Logo, o olho do leitor é torto se o leva a confundir esta crônica de memórias com nostalgia, história social em registro memorialístico com regressão lírica ao passado.

A música – ainda que barata, como a qualifica Drummond num poema – foi desde cedo uma clareira aberta dentro do mundo opressivo em que cresci. Quis um feliz acaso que minha tia Vitória, comerciante viúva estabelecida na rua principal da vila, fosse proprietária do serviço de alto-falante, único meio público de difusão musical que animava nossas pobres noites sem variação. Nesse tempo não havia ainda luz elétrica, somente instalada em meados dos anos 1960. Havia apenas um motor gerador de luz fornecida entre as 18 e as 21h. Como a geringonça com frequência quebrava, Lula Pesseta, o mágico da luz, acorria às carreiras para consertar a máquina e repor a luz na vila que ruidosamente acolhia a repetição do milagre.

Desde menino fui tocado pela magia da música. A memória mais remota que a ela me prende está associada à morte do meu tio Edmundo. Vivia ainda em São Benedito do Sul, onde nasci. Fui levado pela família para assistir às cerimônias do enterro. Teria uns 4 ou 5 anos quando isso aconteceu. Enquanto na sala minha tia chorava descontrolada, em franco estado de histeria, eu brincava no jardim indiferente à morte e à dor que ela desencadeava no mundo dos adultos. Brincava no jardim quase frontal à casa onde pouco mais tarde passaria a viver, quando meu pai trocou sua vida de comerciante na cidade pelo cultivo da cana de açúcar numa propriedade que se estendia até às bordas da vila. De repente ouvi, no outro lado do muro, o canto da empregada que varria a sala com a porta aberta: “Lá de trás da minha casa tem um pé de ... Você vai? Você quer?” Há uma palavra apagada pela memória, como o indica a reticência, mas lembro ainda a música. Logo que a ouvi, prontamente me intrometi na cantoria escondendo-me atrás do muro e respondendo ao refrão da música: “Você vai? Vou; você quer? Quero”. A cantora gostou da minha intromissão e assim fomos adiante brincando com a letra da música. Essa anedota diz muito não apenas do meu amor precoce pela música, mas também da inconsciência da criança em face da morte e da dor que ela provoca nos que perdem seus entes amados.

Como observei, as noites, entre as 18 e às 21h, eram povoadas pela música emitida pelo alto-falante instalado no teto da casa comercial da minha tia. O locutor era Anibal Pontual, um pobre alcoólatra que se distinguia pela beleza do seu timbre de voz. Era assim que saudava a vila todas as noites: “Boa noite. Você está ouvindo a Amplificadora Santo Antônio, na frequência de 35 watts para um setor”. Mais tarde meu primo Mário Celso passou a dividir o serviço de locução e programação musical com ele. Como era proprietário, filho primogênito da minha tia, minha memória desconfia de que se sobrepôs ao locutor oficial. Mas convém não confiar muito na minha memória.
Nota: Como minhas memórias musicais são longas, em contraposição à paciência e o tempo do leitor, que são curtos, pareceu-me melhor dividi-las em duas partes. A próxima daqui a três dias.
Recife, 16 de agosto de 2012.

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