segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O país do carnaval


Pensei em dar outro título a este artigo: “O país da anomia”. No entanto, como anomia é um termo procedente da terminologia sociológica - portanto, de uso e conhecimento muito restritos - optei pelo carnaval. Além de dar título ao primeiro livro de Jorge Amado, expressão suprema de alguns mitos da identidade cultural brasileira que abaixo ilustrarei, o termo vale para designar expressões de cultura que ultrapassam seu sentido estrito. Partindo deste, o carnaval foi tradicionalmente uma festa de espantosa dimensão coletiva cuja natureza mais distintiva radicava no seu caráter anômico, isto é, ele invertia durante sua vigência, três dias, as normas fundamentais que asseguram o funcionamento regular da sociedade. Por exemplo: o macho se fantasiava de virgem, multidões de adultos saíam pelas ruas cantando “mamãe eu quero mamar”, pessoas de todas as idades liberavam fantasias amordaçadas o ano inteiro nos cárceres do superego, os casais se traíam, as mulheres castas se vestiam de puta, as ruas e clubes eram invadidos por uma festa ruidosa e infrene e por aí o mundo se perdia num delírio de fantasia bárbara.

O leitor atento por certo notou que me referi acima ao carnaval no pretérito imperfeito. Minha intenção foi aludir a um passado inconcluso, afinal o carnaval não deixou de existir, sobretudo sugerir um processo de continuidade que se transforma radicalmente no presente. Noutras palavras, o carnaval agora é outro. Para começar, não fica restrito a três dias, o tradicional reinado de momo. Agora ele recobre todo o calendário. Tanto se dilatou, para a frente e para trás, nas datas que convencionalmente o determinam, quanto invadiu muitos outros dias do ano. Um exemplo? Hoje é 16 de setembro de 2012. O que esta data tem a ver com o carnaval? Supostamente nada. Acontece que inventaram uma coisa chamada “Parada da Diversidade”. O propósito aparente dessa festa é celebrar, como o nome indica, nossos múltiplos modos de ser: modos sociais, culturais, modos de gênero, modos de viver e crer e antes de tudo fazer festa.Tudo no Brasil é pretexto para festa. A esse tipo de evento somam-se agora muitos outros que praticamente todo fim de semana pipocam nas grandes cidades brasileiras: a “Parada Gay”, a dos “Evangélicos”, que ontem fechou o trânsito da Avenida Boa Viagem, principal via de ligação entre o sul e o centro do Recife. Há muitas outras, que os desocupados, os produtores culturais e os agentes de turismo sabem na ponta da língua. Não sei e odeio quem sabe.

Aparentemente, essas festas encerram um importante sentido político e cultural: promovem a tolerância entre os desiguais de todo tipo. Ora, na minha percepção esse suposto objetivo não passa de pretexto para a promoção de formas alternativas de carnaval fora de época, ou pura e simplesmente festa desatada de qualquer princípio de controle civilizatório. Uso neste contexto o termo civilizatório, que sei o quanto se presta à controvérsia, visando traduzir algo bem simples: o reconhecimento das normas elementares de relação social. É neste sentido preciso que me oponho indignado, mas definitivamente derrotado, a todas essas manifestações coletivas que promovem antes de tudo a anomia, a supressão dos meios básicos de regulação que imprimiriam civilidade ao acampamento urbano em que vivemos. Quero dizer que, por trás da aparência louvável dessas promoções coletivas, o que pulsa é a incivilidade, a anomia que agrava um estado social de convívio já em demasia deteriorado. A pretexto de qualquer valor na fachada louvável (Deus, Jesus, o direito das minorias, a tolerância entre os desiguais etc), o que essas festas promovem é o completo desprezo pela normatividade que assegura o respeito e o convívio civilizado entre as pessoas.

Falando do meu exemplo pessoal, pois estou indignado e é movido por minha indignação impotente que escrevo este artigo, estou aprendendo a dizer com certo grão de humor que passei a viver em estado de prisão domiciliar. Ontem, como acima observei, tive que suportar a “Parada Evangélica”. Em nome da religião e da celebração pública da divindade, milhares de pessoas ocupam uma das vias mais importantes da cidade para fazer carnaval animado por vários trios elétricos. O barulho é irritante. Mais do que isso, é revoltante a privação da liberdade de circular livremente através de uma das vias mais extensas e movimentadas da cidade, como já salientei. A religião, que foi tradicionalmente um meio de assegurar, entre outras funções sociais, o respeito à ordem social e ao semelhante, serve agora para promover a folia, o carnaval fora do esquadro convencional das grandes festas coletivas.

Querem uma variante desse carnaval ou dessa anomia? Pois observem com olhar crítico a campanha eleitoral corrente. Nossas campanhas políticas constituem a evidência irrefutável de uma sociedade anômica. A classe dirigente, ou aqueles que a ela se candidatam, vale-se de todo tipo de recurso para converter um fenômeno de natureza política em festa e droga barata para as massas oprimidas e alienadas. Como levar a sério um país que tem o tipo de campanha eleitoral que temos? Que tem o tipo de legislação política que temos? Como levar a sério um poder judiciário que legaliza os carros de som, a panfletagem irresponsável e politicamente inoperante que serve apenas para distribuir uns grãos de farelo ao lumpemproletariado e para sujar nossas ruas, como se já não fossem imundas além da medida mais baixa da civilidade?
Bem, meu artigo está chegando ao fim e minha paciência há muito se esgotou. O ruído, entretanto, continua ininterrupto no parque, onde se concentram os heroicos combatentes da diversidade. Segundo o noticiário da Rede Globo, somente depois das 22h a Avenida Boa Viagem será liberada para o trânsito normal de carros e pessoas. Se eu e outros recifenses agredidos por essa baderna tivéssemos direito a uma fatia de diversidade, a um fiapo de respeito dentro dessa desordem, eu pediria ao prefeito ou a qualquer das nossas autoridades festituídas, ou ao rei momo que nos desgoverna, que respeitasse meus direitos de cidadania com um minuto de silêncio.

E há ainda quem diga que essa merda desse país tem jeito. Não tem. Tive hoje cedo a oportunidade de lembrar a uma amiga a melhor definição que conheço do otimista. Repito-a aqui: o otimista é apenas um pessimista mal informado. Lamento desconhecer a autoria da frase, pois gostaria de prestar o devido elogio ao autor dessa definição perfeita. O país do carnaval é ingovernável. Portanto, não tem jeito. Ainda que se tornasse a maior potência econômica do mundo, seu povo continuaria sendo isso que neste exato momento estremece as janelas fechadas da minha prisão: um povo grosseiramente carnavalesco e irresponsável, um povo sem civilidade, um povo desprovido de consciência civilizada. Somente os nacionalistas cretinos acreditam que um país se faz apenas com crescimento econômico e política de pão e circo. Como respeitar um povo que não me respeita nem se respeita? O que é respeito? Concluo com outra definição que gosto de repetir: respeito é o que você deve dar para poder receber.
Recife, 16 de setembro de 2012.

Nenhum comentário:

Postar um comentário