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sexta-feira, 28 de abril de 2017

No Mural do Facebook XXVIII


A barbárie é nossa:
Em 2010 a universidade tornou-se já uma provação para mim. Provação intelectual, humanista, estética... Em suma, ela cotidianamente negava todos os valores que nortearam minha vida. Esses valores se foram compondo em plena ditadura. Fui trabalhar numa fábrica (não era, nunca fui comunista) e dentro das condições mais adversas nutria a convicção de realizar os ideais humanistas assimilados através da literatura e da melhor tradição cristã, iluminista e marxista. Que dizer do que é o Brasil hoje?
Meus ideais igualitários implicavam, por exemplo, a crença na aliança entre o melhor da tradição erudita e a popular. Como todos os grandes humanistas, de qualquer vertente, acreditava que lutar por um mundo melhor era realizar uma conciliação para o alto, não para baixo, democratizar o melhor, não o pior. Que dizer do Brasil de hoje? Hoje, e desde muito, sinto-me um completo estrangeiro no Brasil e em muito do mundo que consigo apreender.
Essa reflexão grosseira decorreu de um mero acaso: acabo de assistir a um show de Joyce no You Tube revivendo a música de Sidney Miller, que desde muito é apenas o nome de uma sala de show no Rio de Janeiro. Dentre todo mundo que conheço, João Rego é o único que conhece e canta Sidney Miller. Eu, que conheci a música de S. M. trabalhando numa fábrica, pensei que ela tinha acabado com o esquecimento dele na história da nossa música. Foi comovente ouvir músicas que nem sabia que ele havia composto depois que o mundo e o Brasil começaram a deslizar barbárie abaixo. Não faltará quem leia, se é que lerão, estas palavras como expressão de um humanista deprimente. Deprimente é a realidade que se tornou nossa. Tão nossa que se fez membro eleito pela família. Não tenho família. Aliás, tenho e sempre terei: os ideais humanistas que elegi e morrerão comigo. Ainda que nada mais me reste.
(Publicado no mural do Facebook, 27 de abril de 2017).

A barbárie é nossa - II
Alongo meu post precedente porque, entre outros mal-entendidos, incorri num lapso tão óbvio que me espanta o fato de tantos o lerem ao pé da letra e, pior, deduzirem coisas que o texto não autoriza. Não sou ainda imortal, mas também não tão velho para me desiludir com a universidade em 1910. Não bastasse tanto, houve quem concluísse que acredito em Idade de Ouro. Suponho que a minha teria então acabado em 1910.
Já que me leram com tanta imaginação, vou espichar a minha. A única coisa que poderia justificar o fim da minha suposta Idade de Ouro em 1910 seria a frase célebre de Virginia Woolf segundo a qual o caráter humano teria mudado neste ano. Como ela não apresenta nenhum argumento convincente, desmancho o que nem me passou pela cabeça.
Queria portanto deixar claro que meu humanismo é negativo, pessimista, como queiram chamá-lo os que continuam acreditando que somos uma espécie destinada a realizar algum ideal grandioso de humanidade reconciliada. Quando jovem, tolo como todo jovem, nutri esse tipo de humanismo. A experiência refletida levou-me a revisá-lo radicalmente. Nem sequer acredito em felicidade individual como um estado durável, muito menos permanente. Como então acreditaria ainda em Idade de Ouro?
Por fim, meu mal não é a pressa diante da história. Pelo contrário, se alguma coisa aprendi com ela foi precisamente a relevância da longue durée e a infinita inventividade do ser humano para tramar catástrofe e nada aprender com a história. Na minha adolescência me ensinaram uma das definições mais insanas da história: a mestra da vida. Ora, a história é feita por uma espécie antes de tudo insensata, doente de compulsão repetitiva e desmemoriada ou ignorante.
(Publicado no mural do Facebook em 27 de abril de 2017).


quinta-feira, 20 de abril de 2017

No Mural do Facebook XXVII


A cultura da depressão:
Nos anos 1960 Philip Rieff escreveu um livro antecipando o advento da cultura terapêutica, hoje uma banalidade transpirando sintoma a olhos vistos. Dentro dessa cultura, a depressão ocupa lugar especial. Há uns 20 anos, participei breve e discretamente de um trabalho em favor de reformas no Hospital da Tamarineira, Recife. Dentre outras atividades, fui debatedor com psicanalistas e psiquiatras num ciclo intitulado: Depressão: a doença do século XXI. E por aí anda ela, tão onipresente e banal que é confundida com tristeza, outros sentimentos naturalmente humanos e portanto banalizada ao extremo do irreconhecível.
Há até indícios de que está migrando para o terreno da crítica social. Noutras palavras, se você é um crítico negativo, se intervém no debate público (sejamos condescendentes) adotando posições autônomas e assim resistentes ao enquadramento no jargão ideológico reinante, não se espante se for lido num registro psicologizante alheio à matéria da sua crítica. Se escrevo algo que contraria ou ameaça as certezas e defesas psíquicas do leitor, ele salta do texto para o autor qualificando-o como depressivo.
Ora, se lhe causo esse mal involuntário, bem mais prático é ignorar o que escrevo e deixar minha "depressão" em paz. Abusar de um termo como o fazem, serve apenas para banalizar e corromper o sentido cada vez mais precário da semântica que rege a cadeia de sentidos que precisamos tecer para conferir direção à nossa vida. No mais, conheci e acompanhei de perto os infernos psíquicos de pessoas verdadeiramente vitimadas pela depressão. Não degradem o sentido da experiência tão dolorosa e desesperante dessas pessoas confundindo-as com minhas doenças benignas.
(Publicado no Facebook. 22 de janeiro 2017).

A dor de ser, disse alguém
Congela as águas do mar.
Tudo que morre quer ser
Tudo que é ser, acabar.

A dor ensina:
A doença prolongada e semi-incapacitante abalou-me muito e me fez revisar muito do que penso. É difícil suportar a doença quando se vive só e habituado a cuidar de si próprio. Não sei se a dor e a solidão involuntária, quase isolamento, ensina alguma coisa. Sei que não quero nunca tornar-me um ressentido, remoendo frustrações ao constatar o quanto nossas supostas amizades e afetos são falíveis. Procuro fixar-me no que a doença me propicia de revelação humana comovente. Antes de tudo, a bondade dos estranhos, sobretudo dos humildes, cujo sofrimento humilha minha fraqueza. Agora compreendo melhor o que Montaigne e Tolstói queriam dizer quando tomavam os pobres e oprimidos como modelo de sabedoria. É comovente ver o quanto é doloroso e humildemente heroico o cotidiano dessas pessoas. Não apenas suportam estoicamente a privação e a dor, mas são solidárias, generosas sem cálculo. Elas e a minha dor me ensinam que a mais bela virtude humana é a bondade, a compaixão desinteressada.
(Publicado no Facebook, 09 de abril 2017).

Fatos e Versões:
Fatos são versões. Aristóteles: O homem é um animal racional. É na medida em que somos a espécie biologicamente mais dotada para o exercício da razão. Adotar este fato como fundamento da definição de um ser é um erro, pois somos escravos das paixões. Nietzsche: não existem fatos, existem versões. Se você acredita que a Lava Jato é uma versão, não importa a razão, ela será o que você quiser. Mas isso tem consequências. Freud: o princípio da realidade é imperativo. Você pode acreditar que fatos são versões e fazer dos primeiros o que convier a seus interesses e convicções partidárias, religiosas etc. Mas a podridão do fazendão chamado Brasil é um fato. Acredite no que quiser e lhe convier; lute pela versão que corresponder à paixão dos seus desejos. Os fatos são fatos. Portanto, existe pelo menos uma verdade imperativa: a verdade factual. Se a sua paixão adota o partido das versões, você está objetivamente contribuindo para destruir um país que já não tem o que destruir.
Publicado no Facebook, 13 de abril 2017).



sexta-feira, 26 de agosto de 2016

No Mural do Facebook XXIII


Jane Austen no cinema:

Alberto Manguel atribui o sucesso das adaptações dos romances de Jane Austen para o cinema ao fato de o público representar o universo social dessas obras como uma forma de regressão utópica ao passado. Vivendo no presente as aflições e incertezas impostas pelo estado de anomia cultural contemporâneo, conforta-o a representação de uma sociedade rigorosamente normatizada. Essa normatização observável no universo ficcional de Jane Austen estende-se às relações amorosas fixando normas de conduta para todos os personagens.
Recentemente uma amiga revelou-me seu desejo, ou fantasia, de viver na era vitoriana. Na verdade, acredita ser uma mulher vitoriana. É sintomático que ouça essa confissão irrealizável de alguém para quem quase tudo deu errado: o amor, o casamento, as relações de família, a frustração materna, a dor de suportar um conflito permanente entre desejo e satisfação. Daí sua compreensível fantasia compensatória: no mundo vitoriano que idealiza, a relação entre o seu universo subjetivo e o social seria harmoniosa.
(Postado no Facebook, 26 de julho 2016).

A cultura da irresponsabilidade:

Um dos poucos enunciados de validade universal que conheço é este: o sol nasceu para todos. No mundo em que vivemos, as pessoas passaram a isentar-se de qualquer responsabilidade culpando as circunstâncias ou o imperativo princípio de realidade, como diria Freud, por tudo que não podem ou não querem ser. Portanto, não me espantarei se logo começarem a culpar a natureza nas regiões temperadas, por não ensolarar o mundo, ou simplesmente por chover nas regiões tropicais. Talvez a maior sandice, no que concerne a esta questão, consista no que passaram a chamar de direito à felicidade. Ora, a felicidade não é um direito. A felicidade é um estado, não uma condição, sempre momentâneo. Só uma pessoa que nada sabe da condição humana pode reivindicar a felicidade como direito. Como disse alguém, em princípio qualquer pessoa de bom senso, não estamos aqui para ser felizes.
(Postado no Facebook, 30 de julho 2016).

Felicidade - Uma reflexão à toa

Um dos paradoxos da felicidade consiste no fato de que precisamos perdê-la para então nos dar conta de sua existência... perdida. Deste paradoxo decorre uma idealização provável: eu era feliz e não sabia,como canta Ataulfo Alves. Quando um adulto infeliz relembra a infância, dou por favas contadas a correspondência entre relembrança e idealização.
Impaciente com a metafísica desesperada de Beckett, Ferreira Gullar afirmou que não queria ter razão, queria ser feliz. Também eu. Mas o diabo é que intelectuais tendem a buscar a felicidade através da especulação metafísica. O mais provável é perderem a primeira nos labirintos da segunda. Há ainda, por certo a maioria, quem simplesmente despreze esses paradoxos e labirintos correndo da razão como via de busca da felicidade. O que importa para quem adota essa forma elementar de vitalismo irracionalista é deixar rolar e entregar-se à corrente cega da vida.
Um degrau acima, e eis-nos de volta ao labirinto especulativo. Foi o que ocorreu com a cultura da espontaneidade, florescente em Greenwich Village nos anos 1950 e banalizada na década seguinte. Entre seus cultores figuravam Miles Davis, Jackson Pollock, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e os contraculturalistas em geral. Sendo intelectuais e artistas, tinham que converter a espontaneidade numa forma alternativa de metafísica. O intelectual e a razão são tão indissociáveis que até para negá-la ele precisa dela. Parecem o drogado que se casa com a droga que o consome, mas sem a qual não suporta viver.
(Postado no Facebook, 7 de agosto 2016).





sábado, 20 de agosto de 2016

Máximas e Mínimas XV


Penso. Logo, desisto.

Quem fala mal de mim, não sabe o que penso de mim próprio.

A crítica da guilhotina: Se não poupo meu pescoço, por que deveria poupar o do semelhante?

A utopia é o melhor refúgio para os que não suportam a realidade.

O pior cego é o que está certo do que vê.

O ser humano é tão incompatível com o autocontentamento que, se acaso o alcança, logo inventa uma carência.

Se as pessoas que se declaram progressistas conhecessem os processos históricos mais elementares, desistiriam de ser o que não existe.

Era tão hipocondríaco que confundia saúde com sintoma de doença.

Era uma infiel tão compulsiva que pedia perdão quando não traía.

A liberdade sempre se evidencia e expressa enquanto liberdade individual. É por isso que as ideologias coletivistas necessariamente a suprimem. Por isso começo a correr logo que deparo com forças coletivas lutando para libertar o povo, a nação, o pobre, a mulher, o negro, o proletário ou qualquer abstração coletiva.

A alma honesta: A alma honesta jamais louva a si própria, muito menos alardeia sua virtude, já que a arrogância é inconciliável com qualquer virtude. Sua natureza consiste na ação, não na fala. A alma honesta não precisa dizer o que é.

Antipascaliana:
A razão tem razões tão ciente
Que o cego coração nem pressente.

Wittgenstein - melhorar o mundo: Certa vez um discípulo de Wittgenstein perguntou-lhe o que deveria fazer para melhorar o mundo. Melhore a si próprio, respondeu o filósofo, pois isso é tudo que você pode fazer para melhorar o mundo.

A Cultura da Incompetência:
Num mundo exaltado como o da informação e do conhecimento, somos domesticados do berço ao túmulo para a incompetência. Ser mãe, o mais difícil e irrevogável ofício humano, tornou-se uma competência exercida por uma cadeia de especialistas que ditam regras sobre tudo: da tecnologia das práticas sexuais à gestação, do parto à missa de sétimo dia, passando pela amamentação e todo o processo apropriado por instituições e especialistas alheios à família.
Pai e mãe correm ansiosos para o oráculo do terapeuta com o cartão de crédito na mão para aprender como dizer sim ou não ao filho sem lhe causar nenhum trauma. Ah, não esquecer que é prudente consultar o economista antes de usar o cartão, pois no fim do mês chega a fatura infalível com cálculo antecipado de juros.
Comer e fazer sexo, nossas necessidades e competências mais primárias, foram colonizados pela cultura geradora de incompetência. Comer já não é uma necessidade, mas uma mistura de saber técnico, aprendizagem e entretenimento. Basta observar a programação matinal da Globo. Sexo também, além de competição e ostentação de poder. Não admira que tantos passem a depender de estímulos artificiais e transponham a cama para o palco.
E ainda dizem que a revolução tecnológica nos libertou da servidão do mundo tradicional. O mais espantoso é que todos acreditam enquanto festejam a tirania do admirável mundo novo dissolvendo todas as competências que exercíamos naturalmente no passado.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

No Mural do Facebook XIII


A Ideologia do Cuspe

Abreu abriu em abril
a nova ideologia
que vai encher o Brasil
de uma suja cusparia.

Tu me cospes, eu te cuspo
e assim trocamos ideia.
Se com teu cuspe me assusto
o meu te acerta na veia.

A minha mão nunca solte
nem ande fora da pista.
Fora isso tudo é golpe
e o outro é sempre fascista.

A nova ideologia
é o fino da tolerância:
quem meu tom não assobia
cospe noutra militância.

Na pátria educadora
divino país de todos
até o lixo se doura
dos mais canalhas engodos. (Postado no Facebook, 25 abril 2016).

A Religião da Política:

Já que Dilma Gaga não se cansa de repetir disparate, vou também me repetir. Melhor dizendo, vou repetir uma citação, o que me isenta de dizer besteira depois de ler tanta. Chesterton: quando as pessoas deixam de acreditar em Deus, passam a acreditar em qualquer coisa. A partir do Iluminismo, iluminado pela fé na razão e no progresso humano, o processo de secularização, característica fundamental da modernidade, varreu do céu a tradição religiosa que norteou o processo da civilização ocidental durante séculos. Mas logo tornou-se patente que o ser humano não suporta o peso de um céu sem deuses. Daí uns divinizaram a ciência, é o caso do cientificismo enquanto perversão ideológica da ciência, outros a Arte (com A) e tanto descemos ladeira que as massas acabaram divinizando Papai Noel, Xuxa e os ídolos da música e do futebol. Mas o maior e mais catastrófico substituto da religião tradicional é a ideologia política que ironicamente promove a crítica radical da religião para converter-se em religião secular. O exemplo emblemático é o marxismo. É fácil assinalar as correspondências teológicas ou místicas entre a religião tradicional e essa religião que não ousa dizer o seu nome. Por isso, meus amigos, desisti de argumentar contra militantes de ideologias que são de fato metamorfoses seculares da religião.
Fé e razão são categorias irredutíveis. A primeira remete antes de tudo à religião, a segunda à ciência e ao saber fundamentado na evidência testada e comprovada, ao saber que se vale apenas da argumentação racional. Portanto, é pura perda de tempo argumentar contra quem ainda acredita na desalienação universal do ser humano, na transposição do céu para a terra, na mentira que corrompe a verdade, na tortura e no cuspe que suprimem a liberdade de opinião e pensamento.
(Postado no Facebook, 23 de abril de 2016).

Homem versus Mulher:

No voo entre Curitiba e Recife assisti a uma entrevista muito interessante com a antropóloga Miriam Goldenberg. Há muito ela pesquisa as relações amorosas entre homem e mulher, com tudo que implicam de instabilidade e desorientação. Acho que ela faz observações muito sensatas sobre as diferenças entre homem e mulher, notadamente no que se refere às expectativas amorosas. Por exemplo: ela critica as mulheres por investirem em demasia na realização amorosa ou por reduzirem todas as outras ordens de realização à realização amorosa. Adicionalmente, descreve um tipo de homem muito diferente do clichê que as mulheres amorosamente frustradas pintam. Exemplifico novamente: ela ressalta, acho que com razão, que essa imagem do homem sedutor cafajeste é minoritária. No entanto, a imagem oposta parece dominar o imaginário erótico brasileiro. Talvez por isso seja sintomático o ressentimento da mulher contra o sedutor cafajeste. No mais, espanta-me que tantas mulheres ressentidas com o homens tendam a comportar-se como adolescentes retardadas. Refiro-me, claro, a mulheres de meia idade, quando não idosas, com perdão do palavrão, que se comportam movidas pelo desejo insensato e impossível de recuperar o tempo perdido. O tempo é irreversível. Quero dizer, há certas coisas que a gente faz quando tem certa idade. Tudo que estou afirmando assim sumariamente me parece pura matéria de bom senso. Se hoje precisamos de especialistas para ditar regras sobre essas obviedades, a razão é assim simples: perdemos nosso senso elementar de autogoverno.
(Postado no Facebook, 23 abril 2013).



segunda-feira, 19 de maio de 2014

Nos Murais da Internet


Transcrevo abaixo alguns textos curtos que escrevi e postei no mural do Facebook e no espaço de comentário de blogs e revistas eletrônicas dos quais sou ou fui colaborador. São textos obrigatoriamente sumários: ora uma nota crítica sobre assunto corrente, ora a apreciação sumária de alguma questão excepcional ou ainda banal, quando não evidência momentânea de impasses sociais ou existenciais. Sendo de tal natureza, é duvidoso que resistam à leitura isenta da circunstância que os animou. Ainda assim, arrisco-me a postá-los no meu blog. Receio que não interessem a quase ninguém, mas aí ficam como registro fugaz de um sopro do tempo e da história que de algum modo se imprime na minha vida e na do leitor improvável.

Biografia autorizada
Noto com prazer que o último editorial da revista Será?(que me desculpem os editores, mas insisto em designar a opinião semanal do periódico como editorial) está provocando muito debate. Sou um leitor apaixonado de biografias, que costumo incluir numa categoria mais ampla: a literatura íntima. Portanto, modéstia à parte, conheço razoavelmente não apenas a produção nacional, mas sobretudo a anglo-saxônica. Fiquei profundamente decepcionado ao constatar que artistas e intelectuais que admiro associaram-se para promover de forma pública e ativa um ato de violação fundamental à liberdade de expressão. Sei que a questão é complexa. Os comentários que andei lendo na mídia sugerem o quanto é controvertida. Por isso vou ressaltar alguns pontos que me parecem mais importantes.
O biografado é por definição uma figura pública. Quem já ouviu falar em biografia de algum anônimo? Sendo público, ele perde o direito à sua privacidade. Tanto isso é verdade que produz uma obra precisamente com o objetivo de sair do anonimato. Outra prova: todos querem que escrevam as biografias que aprovariam, a biografia que convém à sua vontade e narcisismo. Chico Buarque, por exemplo, aprovou e colaborou ativamente para que Regina Zappa (nem sei se escrevo o nome preciso, tão irrelevante é o perfil que escreveu sobre ele) publicasse um livro sobre a sua vida e obra que não agüentei ler a metade. A razão? Não passa de obra de celebração, livro de fã para exaltar o ídolo. Ora, não é este o objetivo nem a função principal da biografia. A biografia, no seu melhor sentido, é um subgênero da historiografia compreendida em sentido amplo. Portanto, obedece a critérios de pesquisa e interpretação que a tornam expressão relevante de toda grande tradição letrada.
O Brasil ainda produz muita biografia ruim, ou puramente jornalística, compreendido o termo no seu sentido meramente factual ou rasteiramente crítico, porque não firmou ainda uma tradição como a que se observa, por exemplo, no ambiente intelectual anglo-saxônico. A imposição da biografia autorizada é antes de tudo uma violação da liberdade de expressão, mas é também um obstáculo à lenta sedimentação de uma tradição de literatura íntima digna das grandes tradições intelectuais. É portanto desolador constatar que estamos ameaçados por esse retrocesso no âmbito da produção intelectual e artística. Mais grave ainda, e profundamente decepcionante, é constatar que esse movimento obscurantista é ativamente endossado por artistas e intelectuais que foram vítimas do arbítrio autoritário, que produziram uma obra admirável em condições adversas e por isso inspiraram tanta admiração e respeito aos extratos mais democráticos da nossa sociedade. (21 de outubro 2013).

Biografia autorizada – comentário II
Caro João Rego:
Grato pelo comentário que alonga o meu e o enriquece com algumas achegas psicanalíticas. Você cita apropriadamente um ensaio de Freud ao qual poderíamos acrescentar “Psicologia de grupo e análise do ego”. Acrescentaria que o público leitor de biografia, assim como o grupo que a produz, é muito diferenciado. Há o leitor, também o biógrafo, que reduz a biografia a voyeurismo barato, ou olha pela brecha da fechadura movido por pulsões sado-masoquistas, inveja e outras motivações espúrias. Essa impureza está em tudo que é humano. Quando for o caso, que o ofendido ou caluniado recorra à justiça.
Minha preocupação, que procurei sugerir no comentário precedente, está orientada para a biografia como exercício de liberdade crítica, como expressão de cultura capaz de articular de forma crítica e iluminadora o autor, ou o biografado, e a obra que produz. Grande parte da melhor crítica filosófica e literária inglesa, por exemplo, é obra de biógrafos. Citando um exemplo brasileiro, ainda que em escala bem inferior, um biógrafo como Ruy Castro concorreu de forma decisiva para repor Nelson Rodrigues e a Bossa Nova de forma renovada no cenário intelectual e artístico brasileiro.
Como você, admiro profundamente Chico Buarque e Caetano Veloso, expressões definitivas da nossa cultura. Além disso, sabemos que a importância deles transcende a esfera musical. Por isso precisam ser estudados e criticados de forma livre. Pelo visto, estão decididos a fazer o que possam para que sobre eles se publique apenas o que querem que seja publicado. Se isso não é censura prévia e atentado contra a liberdade de expressão, então, citando versos do censurado de outrora, “chame o ladrão, chame o ladrão”. (21 de outubro 2013).

Che, o filme
Ontem assisti num dos cinemas do Shopping Guararapes à segunda parte de Che, dirigido por Steven Soderbergh. Há uma evidente ruptura temporal entre a primeira e esta. A primeira acaba quando os revolucionários liderados por Fidel Castro e Guevara estão a caminho de Havana com a revolução já triunfante; a segunda concentra-se na Bolívia depois que Guevara renuncia à função dirigente que exercia no governo revolucionário para consagrar-se integralmente à ação guerrilheira nos campos e montanhas bolivianas.
Vi o filme numa sala quase entregue às moscas. Havia apenas uns três gatos pingados, todos ainda mais velhos que eu. Como explicar que o mito Guevara, estampado em camisetas, bandeiras e posters difundidos pela cultura de massa não atraia um jovem sequer à sala do cinema? Longe de mim propor qualquer explicação. Acho apenas que a sociedade de consumo devora tudo, até sua negação radical. Como admitir isso sem ser picado pela sensação de impotência ou até de niilismo em face dos poderes sociais vigentes? A política radical identificada como foquismo nos anos 1960 é puro delírio revolucionário, tão inviável quanto o radicalismo anarquista do grupo Baader Meinhof, também convertido recentemente em filme. Aliás, parece-me bem melhor do que os dois de Soderbergh dedicados ao mito Guevara. (04 de novembro 2009).

Os dez melhores livros
Já que tantos estão brincando de listar os dez melhores livros e até escalando seleção de livros, como é o caso de Cristiano Ramos, intrometo-me na brincadeira e posto a minha lista. Adianto que sigo o critério proposto por Elizabeth Hazin, isto é, livros que nos marcaram nas circunstâncias singulares em que os lemos. Daí pode-se logicamente deduzir que pelos menos alguns dos livros que incluo na minha lista poderiam ser excluídos se acaso os submetesse a uma releitura. Esclareço, por fim, que a lista é composta pelos dez primeiros livros que me vieram à memória. Se me detivesse rememorando leituras, por certo a lista seria outra.
1 – Hamlet – Shakespeare
2 – King Lear – Shakespeare
3 – Ensaios – Montaigne
4 – Dom Quixote – Cervantes
5 – Judas, o Obscuro – Thomas Hardy
6 – A Consciência de Zeno – Italo Svevo
7 – O Processo Maurizius – Jakob Wassermann
8 – Moon Tiger – Penelope Lively
9 – Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis
10 – Macunaíma – Mário de Andrade.
P. S. – Mal concluí a lista, lembrei-me de Crime e Castigo e Guerra e Paz, que com certeza entrariam na minha lista definitiva. (31 de janeiro 2014)






quinta-feira, 15 de maio de 2014

Política e Psicanálise


Comento tardiamente o artigo de João Rego: O político, o homem e a razão cética, publicado na revista eletrônica Será? João Rego tem com freqüência citado Freud, notadamente O mal-estar na civilização (este termo, aliás, mereceria um artigo esclarecedor), para definir sua compreensão da política e questões de fundo social discutidas nessa revista. Sua perspectiva me parece decorrer, antes de tudo, da sua qualificação como analista e portanto leitor da obra de Freud. A representação corrente da psicanálise é muito deformadora dos seus fundamentos, já que tende a restringir sua validade e exercício à relação clínica entre o analista e o paciente. Há portanto quem ignore, inclusive muitos praticantes da psicanálise, suas ambições explicativas mais amplas. Se perdemos de vista essa dimensão, não podemos sequer imaginar o impacto exercido pela psicanálise no movimento intelectual do século 20. Um verso de Auden, um dos que foram profundamente influenciados por ela, condensa em poucas palavras o que estou aqui sugerindo: Freud tornou-se um clima de opinião. Traduzo assim livremente, e sem aspas, o que ele expressa num poema em memória de Freud pouco depois de este morrer.
É certo que a formação de Freud prende-se de imediato às ciências naturais (generalizo para simplificar a exposição) num estágio de desenvolvimento dessas ciências tão acelerado que do seu bojo brotou a ideologia do cientificismo. Explicando-a grosseiramente, reduzia tudo à ciência. De acordo com essa perspectiva ideológica, a ciência era o fundamento do progresso humano e, no limite, tendia a explicar tudo. Na periferia da cultura européia, é o caso do Brasil, intelectuais como Euclides da Cunha validaram a inviabilidade racial do povo brasileiro baseados nessa ideologia espúria. Sabemos que retificou esse erro, mas não ao ponto de suprimir graves ambivalências e contradições observáveis na sua inquestionável obra-prima. Também Freud pagou tributo ao cientificismo, como é patente nos textos em que interpreta obras artísticas. Diria que o que salva Freud dos erros dessa ideologia é sua formação humanística e sua intuição profunda da natureza indomesticável das pulsões humanas. É graças a essa concepção que, sobretudo na sua obra tardia, retoma de forma explícita questões sócio-culturais como as que João Rego ressalta no seu artigo.
Acho que uma apreciação psicológica da política é fundamental. Freud é uma das matrizes modernas dessa abordagem, embora nunca tenha escrito estritamente sobre o assunto. Visando sugerir a fecundidade dessa perspectiva interpretativa, lembraria os muitos analistas e comentadores da psicanálise que a exploraram de forma explícita. Evito citar nomes, pois há uma infinidade deles. Uma das limitações sérias de muitos dos nossos estudos sobre a política, em particular a brasileira, deriva dessa omissão de uma concepção psicológica do ser humano. João Rego tem esboçado com pertinência essa dimensão interpretativa no que escreve para a revista Será?
Retomando um pouco seu argumento, ele se baseia antes de tudo em O mal-estar na civilização para expor argumentos que o leitor apressado pode simplesmente interpretar como pessimistas ou até niilistas. Um argumento que me parece central na obra de Freud acima citada consiste na ideia de que há no ser humano um cerne biológico indomesticável pela civilização. É isso o que explica o título da obra. Também explica a recusa de Freud a uma noção otimista do progresso humano, apesar de ocasionais ambivalências contidas no conjunto da sua obra. Explica por fim sua recusa a qualquer utopia. Convenhamos: se acreditava na natureza indomável do egoísmo e da agressividade humana, como validar ou propor qualquer projeto utópico?
Freud procede no livro a uma breve crítica do comunismo. Observa que este supõe a crença na propriedade como fundamento dos males humanos. Suprimida a propriedade, instituída a igualdade social na espécie, realizaríamos afinal a utópica reconciliação da humanidade. Para mim, isso não passa de substituto secular da religião. Baseado na psicanálise, Freud desqualificou esse experimento histórico em 1930, ano em que publicou O mal-estar na civilização. Bertrand Russell o precedeu nessa objeção certeira. Em 1921 foi à Rússia conhecer de perto a revolução em processo. Conheceu Lênin pessoalmente. Depois do que observou, escreveu um livro contra o comunismo que mesmo na liberal Inglaterra o deixou política e intelectualmente quase isolado. A prova de que ambos estavam certos, Freud e Russell, depois da catástrofe que foi a experiência comunista ao longo do século 20, não é mais questão de teoria, mas sim de ideologia. Os fatos históricos estão aí para quem queira avaliar os fundamentos utópicos do comunismo.
A conclusão acima que, embutida na obra de Freud, também serve para validar a razão cética contida no título do artigo de João Rego, suprime o solo de onde brotam nossas ilusões mais tenazes. Ousaria acrescentar que pode ir além validando uma concepção niilista, se como tal entendemos a insolubilidade da condição humana. Na visão de Freud, Deus está morto, como antes, com implicações distintas, também afirmaram Dostoiévski e Nietzsche. Até no âmbito terapêutico Freud assinalou que tudo que a psicanálise poderia fazer seria substituir nossa miséria psíquica por uma neurose suportável. Friso traduzir livremente de memória o que ele escreveu. Acrescentou ainda que “civilização é repressão”. Embora tenha pioneiramente lutado para promover condições culturais passíveis de aliviar o peso insuportável da repressão sexual numa época profundamente diferente da permissividade hoje reinante, nunca relutou na defesa da civilização. Nesse sentido e em muitos outros que omito num breve artigo, a substância da sua obra e de sua orientação ética são incompatíveis com o espírito do presente. Isso explica em parte a compreensão deformadora da sua obra.
Em suma, Freud foi um gênio, um conquistador (termo de sua eleição) de territórios insondáveis do nosso psiquismo. Por isso a substância da sua obra é tão indigesta para o mundo regido pelo hedonismo e a permissividade em que vivemos. É também indigesta para os que não suportam viver privados do consolo de ilusões salvadoras ou o peso da existência humana sem a consolação de uma utopia passível de dissolver a tensão insolúvel entre desejo e realidade. Também por isso o veio aberto por João Rego pode fecundar leituras mais agudas da política e da nossa retorcida natureza.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Memórias de um leitor IV


Retomo minhas memórias de leitor costuradas sem ordem ou método. Elas seguem o princípio de composição implícito em quase toda a prosa que escrevo para o meu blog. Parto sempre de uma vaga intuição (uma frase, uma ideia decorrente da leitura de alguma obra, um fio de memória...) e daí o texto se vai desatando e ganhando forma à medida que escrevo. É claro que nem tudo é improviso e facilidade desatenta no meu anárquico processo de composição. A versão preliminar é sempre revista, às vezes repetidamente revista, e a revisão pressupõe sempre correções, inserções, adição de parágrafos inteiros, também a supressão de palavras ou frases. Mas o fato é que o processo geral não obedece a nenhum plano de composição, sequer um roteiro ordenando as partes gerais do texto.

Sinceramente, nada me parece invejável nessa facilidade de composição. Ela é antes de tudo sintoma da minha formação anárquica, fruto de uma vida sem direção ou propósito orientado, de regra decorrente de uma formação de família e escola adequadamente instituídas. Nesse sentido, minhas próprias memórias de leitor esclarecem as origens e a sedimentação de uma inteligência indisciplinada e arbitrária. Esclarecem ainda muitos dos fracassos da minha vida, notadamente meu fracasso acadêmico. Por isso me vexa ainda dizer que fui incapaz de escrever minha tese de doutorado. Sei de alguns maldizentes que me acusam de haver desperdiçado tempo e dinheiro público durante meus anos de estudo na Inglaterra. No entanto, foram os anos em que mais estudei na minha vida, os anos de mais intensa aprendizagem da minha vida. Eles concorreram de forma decisiva para desprovincianizar minha percepção do mundo, em particular do Brasil. Portanto, não foi por falta de estudo e trabalho intelectual constante que falhei na redação integral da minha tese. Foi por muitas outras razões, algumas até inconscientes. Evito considerar aqui as conscientes, pois abusaria em demasia da composição digressiva deste texto que já se trai por si próprio.

Voltando ao cerne do assunto, minhas memórias de leitor, volto a recuar às leituras mais remotas, já que a cronologia destas memórias é tão arbitrária e caprichosa quanto os demais elementos da composição. A paixão de ler alimentada pela estante do meu tio Edmundo logo se revelou insaciada. Afinal, a fonte que me nutria não passava de uma estante. Melhor dizendo, de meia estante, pois suas pernas ou suportes propriamente ditos correspondiam à metade da sua altura. Em suma, a estante teria 4 ou 5 prateleiras, cuja extensão não ia além de um metro. Não bastasse isso, meu tio, leitor autodidata perdido num fim de mundo iletrado, reuniu naquele móvel solitário um punhado de livros não apenas limitado na quantidade, mas também na qualidade e variedade dos assuntos. Daí proveio minha vontade de me tornar comprador de livros. Mas como adquiri-los em Igarapeba, ou mesmo em todo um vasto recorte geográfico da mata sul de Pernambuco? De Quipapá a Palmares, não havia livrarias ou bibliotecas.

Dando um salto no tempo, para melhor ilustrar a miséria da cultura letrada ainda dominante em grande parte do Nordeste, acompanhei o Quinteto Violado durante uma curta temporada de shows que fez indo de Recife a São Cristóvão, Sergipe, onde havia um festival anual de artes. Isso ocorreu na primeira metade dos anos 1980, quando já era professor de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. Nesse momento mantive ligeira relação com o Quinteto devido à minha amizade com Rita Melo, mulher de Marcelo Melo, líder do Quinteto. Rita foi minha aluna no curso de Ciências Sociais e através dela aproximei-me momentaneamente de Marcelo. Convidado por ambos, aventurei-me a acompanhá-los durante essa curta sequência de shows viajando no ônibus do Quinteto. Há muito cultivava o hábito de sempre viajar levando livros na bagagem. Nessa viagem, porém, tão excepcional, decidi apostar no prazer suficiente acaso propiciado pelos companheiros de viagem. Logo ao fim do primeiro dia me dei conta de que seria difícil integrar-me ao espírito dominante no grupo. Daí sobreveio a necessidade de comprar pelo menos um livro para ocupar as muitas horas vazias da viagem. Atravessamos Alagoas e Sergipe, paramos em Arapiraca, onde o Quinteto tinha um show programado, e nada de encontrar sequer uma pequena livraria. Somente ao chegar a Aracaju pude afinal comprar um livro.

Se nos anos 1980 a realidade do acesso à cultura letrada no Nordeste era a que grosseiramente esbocei no parágrafo precedente, o que dizer de Igarapeba e regiões próximas em meados dos anos 1960? Acabei descobrindo num periódico da época que a Editora Vozes vendia livros por reembolso postal. Já não lembro de que modo recebi ou tive acesso ao catálogo da editora, então ainda muito restrito e especializado em publicações religiosas, dado o fato óbvio de que era e é uma editora criada por membros do clero católico. No início dos anos 1970 a editora renovou-se de forma notável, incorporando e ativamente promovendo até a cultura de vanguarda da época: o concretismo, a poesia processo, o estruturalismo etc. Dilatando o alcance secular dos seus critérios editoriais, a Vozes se renovou de forma extraordinária acentuando no registro empresarial seu processo de renovação mais ampla observável sobretudo no domínio da política traduzida em termos práticos nas formas de oposição possíveis à ditadura militar.
Decidi então comprar vários livros via reembolso postal. Como então estava de férias em Igarapeba, usei o endereço de lá. Infelizmente, Igarapeba não tinha e nunca teve uma agência dos correios. Por isso precisei ir a cavalo até São Benedito do Sul, a cidade mais próxima, que foi aliás onde nasci. Esse breve relato sugere o atraso cultural em que essa região do Nordeste, assim como tantas outras, vivia e ainda vive. Também o acesso a jornais e periódicos era muito precário. Chegavam a Igarapeba através do trem que fazia o percurso Recife-Maceió. Portanto, seria mais apropriado dizer que passava, não que chegava. Havia no trem um jornaleiro, que na verdade era identificado como o gazeteiro. Esperava-o ansioso na plataforma da estação nos dias em que trazia as revistas e gibis que lhe encomendava. Em face dessa aridez, desloco agora o foco das minhas memórias de leitor para o Recife, onde já morava e estudava desde os 10 anos de idade.

Abro parênteses para mencionar um romance de Jorge de Lima, Calunga, cuja trama narrativa tem como fio a viagem feita pelo protagonista nesse trem que ligava o Recife a Maceió. Li o romance só por essa razão. O personagem toma o trem na estação central do Recife e a narrativa se desdobra descrevendo a viagem passo a passo: a sucessão das estações, as paradas, cenas típicas daquele mundo que tanto conheci viajando durante muitos anos de minha vida como o personagem de Jorge de Lima. Reconheci assim meu olhar de passageiro em muitas das páginas do romance onde o autor fixava tipos humanos observados em trânsito, a paisagem humana à espera do trem na plataforma das estações, as moças de vilas e cidades enfeitadas à espera de parentes ou amigos ou apenas vaidosamente expostas à curiosidade dos passageiros.
Além disso, num mundo de tantas vilas e cidadezinhas sufocadas pela rotina e a pobreza de toda sorte de meios de vida e lazer, a passagem do trem era não raro o acontecimento social mais importante. Por isso era frequente alguém convidar amigos para “esperar o trem”. De modo inconfessado, ou inconsciente, esta expressão traduzia o desejo do fato novo, ainda que irrelevante, a aragem do imprevisto num mundo onde tudo era previsível. Esperar o trem, na imaginação de tantas vidas áridas, era figurar no improvável a esperança de uma outra ordem de vida, era fabular o real factível sem contudo ser ficcionista, tão ausente era a ficção literariamente compreendida num mundo ancorado na tradição oral. Com o trem vinham viajantes frequentes ou ocasionais, as notícias da capital estampadas nos jornais vendidos pelo gazeteiro, as revistas e outras atrações procedentes de um mundo inacessível à modorra de um cotidiano regido por ritmos sociais tediosamente martelados. Aludo, em suma, ao tema da “vida besta” explorado por Drummond na sua poesia inicial e tão agudamente captado por Mário de Andrade. É bem significativa essa transição do nosso primeiro modernismo da atmosfera urbana, signo da modernidade técnica celebrada por algumas correntes da vanguarda estética, para o Brasil tradicional, o Brasil dos vastos interiores, dos traços diferenciadores da nossa “vida besta” atada ainda a ecos bem vivos da nossa herança colonial, do Brasil agrário imune ao avanço da modernidade forjada nos grandes centros urbanos.

Retomando o fio solto da minha narrativa de memórias, adentro agora nas memórias da escola onde comecei estudando no Recife. Além de a escola não ter biblioteca, como é ainda a realidade da maioria das nossas escolas, os professores eram bem pouco cultivados para sequer pensar em inculcar nos alunos algum interesse pela literatura, as artes, as disciplinas humanistas. Logo, contava apenas com minha curiosidade espontânea, minha carência de fantasia e vida imaginativa. Acho que parte considerável dessa carência manifestou-se de imediato como necessidade de existência vicária, linha de fuga de uma realidade cotidiana demasiado estreita e opressiva. Linha de fuga sobretudo do ambiente familiar que me infelicitava dolorosamente. Assim, procurei na ficção a vida imaginária e a dilatação de horizontes que compensassem a pobreza da minha vida de família, escola, vizinhança, minha carência de amor e compreensão... No ambiente em que vivia, o acesso à literatura era tão precário e acidental que atribuo a isso minha completa ignorância da literatura infantil de Monteiro Lobato, assim como muitas outras obras que enriqueceram a experiência imaginativa de tantas crianças e adolescentes. Penso, por exemplo, na literatura dos contos de fadas, nas obras de Andersen e dos irmãos Grimm, também nas narrativas fabulosas das Mil e Uma Noites. Infelizmente, meu percurso de leitor passou ao largo de todas essas obras. Ocorreu-me pensar nisso, e lastimar essas lacunas, quando pela primeira vez li um dos melhores contos de Clarice Lispector: Felicidade Clandestina.

Comecei explorando de forma insaciável a literatura barata, os livros de bolso editados pela Bruguera, Monterrey e similares especializadas em coleções de literatura policial e far-west. Mergulhei de forma tão obsessiva nesse tipo de leitura que chegava a ler três livros de bolso em um único dia. Além disso, comprava-os aos montes como tralha de segunda mão nas barracas situadas no oitão do Mercado de São José. Chegava a ler e colecionar cerca de 300 volumes. Revendia-os no mesmo lugar onde os comprava, depois de os ler, somente para ter o prazer de começar do zero uma nova coleção cujo destino refazia o ciclo da compra e venda, leitura e desapego pelos objetos do meu culto. Curioso constatar aqui como agora as duas pontas da minha vida de leitor se atam entretecendo fios desencontrados, senão avessos. No passado remoto, ensaiando meus primeiros passos de leitor, desfazia-me dos livros que lia talvez movido pela obscura consciência de que lia em trânsito, afiava a lâmina do hábito de ler desperdiçando meu tempo com livros descartáveis que por isso são livremente intercambiáveis. No fundo, apesar da sede de aventura e vida vicária que me satisfaziam, cada livro era qualquer um, era matéria impressa similar à edição diária do jornal que lemos para saber das notícias que logo se dissolvem, cedem lugar às que vêm na fila interminável da repetição da vida e por fim acabam servindo apenas para embalar peixe no mercado ou simplesmente ser atiradas à lata do lixo. Hoje, saltando para a outra ponta da vida, o que me seduz é o sonho ou mito da biblioteca essencial, a biblioteca restrita aos poucos livros que definitivamente impregnaram minha experiência de leitor.

Passei logo em seguida aos livros da grande tradição literária européia adaptados para o público juvenil. Descobri essas obras frequentando a seção de livros da Viana Leal, situada na Rua da Palma. Era então uma grande e atraente loja, a primeira, salvo engano, dotada de escadas rolantes. Essas escadas me seduziam e assim era um prazer renovado subir e descer transportado por elas. Na seção de livros para a juventude, meu paraíso inconfessado, comprei muitos volumes editados pela Melhoramentos. Eram obras da grande tradição literária europeia adaptadas, como acima salientei, para o público juvenil. Dentre as que ainda lembro, com atraentes ilustrações sobre capa-dura, comprei e li O Conde de Monte Cristo, O Máscara de Ferro, Os Três Mosqueteiros, todos de Alexandre Dumas; A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, A Ilha do Tesouro, de Stevenson, Ivanhoé, de Walter Scott, David Copperfield, Oliver Twist e As Grandes Esperanças, de Charles Dickens; Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, Dom Quixote, de Cervantes, As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, Quo Vadis, de Henryk Sienkiewicz, e muitas outras obras.

O passo seguinte na minha trajetória errática de leitor está associado à Biblioteca Pública de Afogados. Como era pobre para comprar livros, pois a essa altura o declínio social e econômico da família tinha já descido ao rés do chão, o acervo da biblioteca pareceu-me um mundo inexplorável. Na verdade, era modesto e quase todo composto por volumes já gastos e remendados com fita durex. Foi lá que de fato comecei a descobrir a literatura brasileira, além de acrescentar a minhas leituras da literatura européia autores como Stendhal, Balzac, Flaubert, Thomas Hardy, D. H. Lawrence, Somerset Maugham, Graham Greene e Charles Morgan. Este, sabemos, foi um dos maiores fiascos da crítica brasileira, que inseriu sua obra no círculo dos autores canônicos simplesmente por indução equivocada da crítica francesa. O fato mereceria uma reflexão sobre os mecanismos de recepção da obra literária, com ênfase sobre os nexos entre centro e periferia literária, além do poder dos argumentos de autoridade, mecanismos de resto muito vivos na cultura acadêmica de hoje e do passado.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Memórias de um leitor III


Graças à estante do meu tio, fundei no espaço da minha solidão uma ilha imaginária dentro do mundinho de Igarapeba regulado pelo tédio e a repetição. Foi a partir daí que me afastei gradualmente da vida de dissipação da vila, uma dissipação que por certo tornava a vida mais suportável: o salão de bilhar, onde a cachaça se misturava à fofoca, às bravatas sexuais tão caras ao nosso machismo, e o futebol acalorava as discussões fúteis e arengas sem propósito. Melhor ainda, claro, era praticá-lo no campo de futebol, também nas peladas improvisadas em plena Rua do Comércio. Os banhos de rio no geral associados ao voyeurismo e à masturbação à sombra das árvores ou entre as frestas de portas e janelas. A força do sexo, vibrando na carne trepidante de vida, é em última instância incivilizável. As normas da família o abafam, também as da religião, da escola, de toda uma complexa rede de controles e repressões, mas ele irrompe dos becos e frestas mais obscuras, vaza por vias até impressentidas. É uma batalha vencida a da civilização, compreendida no sentido preciso de repressão sumária da sexualidade à margem das práticas socialmente aprovadas e consentidas. Quem ceder à vontade delirante de suprimi-lo, não importa em nome de que ideal supremo, vai fatalmente adoecer, pois seus sintomas irreprimíveis encontram sempre um meio de viver no corpo, ainda que seja através da doença.

O tédio das primeiras horas da tarde, quando o sol retinia sobre as fachadas e telhados das casas semi-adormecidas, rendia os corpos áridos à lassidão que corroia o cotidiano da vila. Penso, no entanto, que me tornei o único habitante venturoso de Igarapeba quando descobri o mundo da imaginação humana comprimido na estante empoeirada do meu tio Edmundo. A chave da estante e a solidão fruída na cadeira de balanço da varanda à sombra do sol e da rotina sem alma fundaram o paraíso secreto que me converteu para sempre num explorador do mundo reinventado pela literatura. Nesse momento, a literatura era ainda provavelmente uma via de escape da realidade insípida, uma fuga do tédio indescritível nas fronteiras mesquinhas de uma vila. Mais tarde descobri que ela, no seu sentido mais pleno, é na verdade uma porta de retorno esclarecido à esfera irrecorrível e necessária da experiência. O leitor esclarecido não lê para fugir da realidade que lhe parece insuportável, mas para melhor compreendê-la e vivê-la com a lucidez de quem se sabe mortal e assim passa a exercitar-se na arte de habitar o presente. Hoje, quando sei que estou ficando velho, procuro ainda aprender que o presente é imenso e é o único tempo real. Por ser imenso, ele decanta e atualiza o que foi isento de nostalgia ou consolação regressiva. Por fim, sei do fim que me espera e procuro acolhê-lo como condição da necessidade que me define.

Evidentemente, as reflexões que intercalo na narrativa, como as do parágrafo precedente, não me ocorreram no tempo a que regridem minhas memórias de Igarapeba. Talvez convenha ainda esclarecer que a mudança de mentalidade decorrente da minha experiência de leitor é fruto de um processo que em muitos casos se estende através de anos. Considerando um exemplo específico acima narrado, o relativo à minha percepção ética da homossexualidade, com certeza não me bastou a leitura transformadora do De Profundis, de Oscar Wilde. Não me passa pela cabeça supor nem induzir o leitor a concluir que os processos de mudança de mentalidade que vivemos são automáticos, muito menos se consumam num simples ato. Ser de memória, deliberadamente imantado à linha de tensão entre presente e passado, pois tenho hoje consciência de que todo ser humano é portador de uma história, há muito aprendi que toda memória é sempre uma reconstituição do passado deformado pelas condições do presente. O passado não é nunca o passado refletido no presente; é sempre o passado que o presente reflete.

O lastro de valores e convicções que internalizamos através de um processo de socialização no geral inconsciente, determinado pelo meio social, demanda experiências e revisões muito complexas, não raro prolongadas e dolorosas, para que enfim uma mentalidade cultural renovada se cristalize. Reforço este argumento lembrando a lucidez habitual com que Montaigne nos seus Ensaios ressalta o quanto o ser humano é moldado pelos hábitos. Ensaiar um estudo de compreensão da mentalidade de um povo é antes de tudo ensaiar as formas e processos através do qual a realidade histórica se transforma retendo as linhas mais fortes e resistentes do passado, dos hábitos e tradições sedimentados no leito recoberto pelo fluxo perpétuo das águas. O fluxo das águas, metáfora da mudança permanente das sociedades no tempo, está sempre fluindo, mas sempre sobre o leito que imprime direção ao movimento. É por isso que esses processos se enquadram na categoria historiográfica da longue durée, como dizem os estudiosos dessas questões. Muita gente da minha geração subestimou a complexidade desses processos, além da força poderosa da tradição, porque na nossa juventude fomos embalados por uma concepção revolucionária da história que era na verdade uma projeção mítica do nosso desejo de mudança acionado por condições históricas hoje suprimidas do horizonte no qual se enquadra a experiência da juventude atual.

Prolongando ainda as considerações acima esboçadas, vivi por dentro, nas camas e fora delas, as mudanças radicais de comportamento que irromperam nos anos 1960. Foi sem dúvida uma década muito turbulenta, tão turbulenta que muitos a encararam como uma autêntica revolução. Sem dúvida, muito do que era autêntica e explosivamente novo naqueles anos revestia um caráter de mudança revolucionária consolidado pelo desdobramento do processo de mudança então detonado. Isso me parece verdadeiro sobretudo quando avaliamos a mudança radical da condição da mulher dentro de um intervalo de tempo relativamente muito curto. Em uma ou duas gerações a mulher conquistou direitos e ocupou espaços na sociedade absolutamente impensáveis quando recuamos um pouco no passado, notadamente num país de poderosas e seculares tradições patriarcais como o Brasil.

É também uma banalidade observar que todos esses processos de mudança cobram um preço bem alto àqueles que neles se empenham. Importa no entanto reiterar essa banalidade porque a mentalidade corrente, forjada pelo hedonismo consumista, alude a esses processos, diria que à realidade em geral, como se tudo dependesse do nosso desejo e vontade e toda fruição de prazer não implicasse algum tipo de preço ou consequência. Basta olhar à volta com um mínimo de atenção para perceber que tudo isso não passa de grosseira inconsciência ou mera ilusão vendida pelo mercado, única ideologia soberana no nosso tempo. As mudanças implicam custos, frequentemente altos e dolorosos. Qualquer mulher que ousou transpor a fronteira do passado patriarcal sabe o quanto precisou lutar e sofrer para conquistar direitos e privilégios hoje generalizados. Reiterando outro lugar comum, no capitalismo não existe almoço gratuito. Há quem atribua a frase a Margaret Thatcher. Como se tornou lugar comum, já não importa a fonte, mas a verdade do que diz. Acrescentaria apenas que o dito não se aplica tão somente ao capitalismo, mas a qualquer regime necessário de organização da vida coletiva. Em suma, tudo tem preço e alguém tem sempre que pagar a conta.

Muito do patriarcalismo que moldou nossa mentalidade está ainda infelizmente muito vivo. Parece-me ilusório acreditar que esse passado negativo pode ser superado dentro do horizonte previsível. O Brasil é um país de ritmos de mudança notavelmente lentos. Mesmo nos momentos de crise provocados por intensa pressão social, no geral predominam as forças conservadoras. Não é acidental o fato de o mais importante e influente intérprete do Brasil ser um intelectual de perfil nitidamente conservador. Refiro-me sabidamente a Gilberto Freyre. É inegável que foi antes de tudo um genial inventor do Brasil, uma personalidade extremamente complexa e contraditória, assim como a obra definitiva que legou à posteridade. Não tenho dúvida, entretanto, de que nele e na sua obra, pois que são em muitos sentidos inseparáveis, prevalecem os valores do Brasil patriarcal, que ele captou e interpretou de forma absolutamente única. Portanto, quem como eu aspira ao ideal de viver num país mais igualitário e civilizado, lutando ou não para mudá-lo, vai ter que esperar ainda muito tempo. Como a longo prazo todos estaremos mortos, lembrando uma frase antes muito citada, não estarei por aqui quando o Brasil, o eterno país do futuro, escrever nas suas fronteiras o romance que tanto sonhei ler, idealmente adicionando-lhe uma frase que gravasse minha passagem por esse mundo.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Memórias de um leitor I


Eu era cego e não sabia. Embora estudante aplicado na infância, conhecia apenas os livros adotados na escola que bem pouco educava, como é ainda a norma neste Brasil indiferente à necessidade de uma reforma profunda do nosso sistema educacional. Menino de rédea solta, criado como Deus criou batata, a frase ouvi-a do meu próprio pai, vivia pintando o sete e até o oito. Brás Cubas dos canaviais, como qualquer filho de proprietário um pouco acima da miséria, pintava e bordava acima da lei num mundo sem lei. Perdido dentro de uma família sem lei nem rei, fazia o que queria e sobretudo o que não sabia. Eu era cego e não sabia. A literatura, no sentido em que dela aqui tratarei, não existia na escola que frequentei. Nossa escola era e é ainda tão pobre, tão impermeável à literatura, que precisei descobri-la por mim próprio fora da escola. O fato me faz lembrar um dos deliciosos aforismos de George Bernard Shaw: Minha educação somente foi interrompida durante os anos em que frequentei a escola. Cito de memória, daí a omissão das aspas.

Voltando aos trilhos do meu raciocínio, eu era cego e não sabia. Um dia, graças a um acaso milagroso, descobri a literatura. Como narrei essa descoberta num outro texto de memórias postado no meu blog (remeto o leitor curioso à crônica de memórias Minha avó Hannah), retomo o fio da minha memória de leitor escavando outras memórias do meu baú já empoeirado. Descobri a literatura por conta e risco próprios, privado de um mentor capaz de me guiar, de iluminar o mundo da imaginação explorado e escrito pelos incontáveis escritores que fundaram a tradição letrada da humanidade. Isso quer dizer que adentrei a literatura através da primeira porta aberta pelo acaso. Mergulhei no mundo dos símbolos impressos simplesmente lendo o pouco que havia à mão, herança ociosa do meu tio Edmundo - já que cultuada, mas ignorada pela família. A estante fechada, com seus símbolos lacrados, era um talismã da família, um medalhão nobilitador da cegueira da família, que era também minha própria cegueira.

Comecei a ver e decifrar o mundo dos símbolos a partir do dia em que abri a estante e estendi a mão da intuição cega em direção ao primeiro livro que removi da estante e comecei a ler. Já não me lembro qual foi. O que sei é que a partir daquele momento um mundo incogitável e maravilhoso se apossou da minha imaginação. A literatura descortinou-me um mundo que transfigurou a rotina opressiva da família residente no Recife, assim como a rotina ainda mais opressiva de Igarapeba, a vila onde vivi meus primeiros anos conscientes ou memoráveis. Lá vivia todas as férias escolares. É certo que Igarapeba era um mundo fascinante para um menino sem rédeas, privado da polícia de hábito imposta pelos pais e outros agentes socializadores dos pequenos selvagens que fomos. Uma infância sem pais, com sua polícia e controle, grava carências definitivas na nossa experiência de desamparo, mas pode propiciar uma forma única de liberdade. Daí afirmar que cresci sem rédeas. As da religião eram também muito frouxas e assim fui poupado das figurações aterrorizantes do inferno e outros castigos insondáveis.

Mais que um mundo maravilhoso, a literatura revelou-me a alteridade. Foi ali, na solidão povoada da minha cadeira de leitura, que o outro se foi desdobrando em camadas infinitas à minha sede de imaginação e descoberta do mundo. O outro simbolizava outras possibilidades de vida, outras culturas e modos de ser, um mundo infinito quando cotejado com os horizontes mesquinhos da vila da minha infância, do próprio Recife ainda tão provinciano, fechado no seu culto de tradições que nos retêm prisioneiros do provincianismo. Esse provincianismo tão tenazmente cultuado estreita e deforma nossa percepção do mundo e no limite delira atado a expressões de bovarismo cultural simplesmente ridículas. Sem que então o soubesse, comecei a escapar dessa prisão quando soltei minha imaginação e minha sede de estranhamento através das páginas que me abriram as fronteiras da Europa, do mundo medieval reinventado pela imaginação romântica, da península ibérica, da Rússia, dos Estados Unidos, das fronteiras redesenhadas por guerras de conquista e resistência. Foi também uma descoberta chocante considerar o quanto, através da história humana, grupos e povos guerreiam e se entredevoram em nome dos mais belos idéias: Deus, a religião, que provocou tantas guerras e intolerância, a liberdade e os ideais utópicos. Como não temer e duvidar da espécie depois de despertar para todos esses horrores?

O ser humano, não importa de que latitude ou tempo, é espontaneamente etnocêntrico. Sua medida do mundo, seu poder de apreensão da realidade, esgota-se nas fronteiras da sua cultura. Somos assim e talvez poucos tenham a coragem de ser diferentes, a coragem de ultrapassar a fronteira do mesmo, controlável e conhecido, para defrontar a estranheza do outro, impregnar-se de modos de humanidade que ignoramos e por isso inspiram medo e rejeição. Confesso que não fugi a esta norma. Noutras palavras, internalizei os preconceitos e superstições dominantes no meio social em que me formei ou deformei e cegamente agi movido por eles. Rebento de uma cultura patriarcal, impregnada de violência e práticas obscurantistas, herdei e afirmei na ação a ideologia inconsciente justificadora da desigualdade brutal que caracteriza ainda nossa sociedade; assimilei passivamente a realidade da subordinação opressiva da mulher, da criança, do negro, do homossexual... Em suma, agi cegamente seguindo os preconceitos e idéias feitas instituídos.

Cresci num mundo dominado por homens rudes, no geral iletrados. A violência assaltava de múltiplas formas o tédio do cotidiano. Ainda menino, assisti a muita briga de bêbado, notadamente aos domingos, dia de feira, quando a população dos sítios e propriedades vizinhas acorria à rua central da vila para negociar a rala agricultura de subsistência da região e intercambiar produtos parcamente ofertados pelo comércio regular. Essas transações se faziam em meio ao ruído dos feirantes e ao consumo incontinente de cachaça. Um nada e logo os ânimos se exaltavam, não raro descambando para a luta física. Nos casos extremos, brigava-se com ponta de faca. Havia ainda a matança brutal de bois no matadouro à beira do rio. Assisti a essas cenas, apenas uma prática rotineira para os que delas viviam. A imagem de um boi sendo abatido a machadadas, e em seguida sangrado, perseguiu-me durante vários dias e desde então passei a evitar o matadouro nos dias em que abatiam animais.

Foi através das portas e janelas abertas pela literatura que passei a reconhecer a alteridade, a possibilidade de ser outro, de viver numa outra ordem de realidade. Mas não faltou quem se empenhasse em me fechar essas vias de liberação subjetiva. A resistência procedia antes de tudo do próprio universo familiar. Que pais e adultos não encaram com inquietação, não raro com oposição determinada, a ameaça representada por um menino ou adolescente questionador das verdades consagradas? A linguagem da mesmice e do conformismo está facilmente ao alcance de quem se sente ameaçado pelos desviados que ousam sacudir o sono da rotina, o movimento previsível e sólido da repetição. Há todo um vasto e diferenciado léxico à mão dos guardadores da ordem ilusória e mistificadora do mundo. Basta abrir a boca apontando com dedo acusador o desviante: sonhador, romântico, ingênuo, desmiolado, doente, anormal, doido, comunista, ateu, desvairado, anarquista, desequilibrado... Digito termos ao acaso, indiferente até às linhas de gradação semântica que prendem essa rede da linguagem discriminadora e intolerante.

Saio do terreno das abstrações acima assinaladas para ilustrar, com base na memória da minha infância e adolescência, a mudança de consciência e modos de ser que devo à literatura. Começo pela sexualidade supondo não precisar justificar sua centralidade na nossa condição humana. Nenhum adulto, nem mesmo meu pai, prestou-me qualquer orientação e esclarecimento a respeito do que todo menino e adolescente vive como expressão da sua sexualidade. Nisso, como em tudo mais, tive que fazer algo de mim e por mim por conta e risco próprios. Os desejos que na adolescência irromperam no meu corpo e na minha consciência foram tão perturbadores e intensos que temi não ser “normal”. Alguns eram tão antagônicos às noções correntes aprovadas e aprendidas no meio social, na família, que acabei me debatendo em aflições e incertezas agravadas pelo fato de não ter com quem discuti-las, aclará-las, dar-lhes um sentido que me enquadrasse na normalidade do mundo. Foi graças à literatura, com seus multifacetados personagens e enredos, que descobri aliviado a possibilidade de outros modos de normalidade, a complexa e liberadora percepção da inesgotável variedade dos modos de ser humano.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

O Preconceito do Preconceito


Já houve quem observasse, não sem razão, que o brasileiro é portador do pior tipo de preconceito: o de acreditar que não tem preconceito. Por que é o pior? Porque a consciência do que somos, a consciência do que pensamos e sentimos é o primeiro passo necessário para que mudemos o que temos de pior. O preconceito – de raça, de gênero, de classe, de região e nacionalidade – está entre o que temos de pior. Ele alimenta, nas condições sociais rotineiras, as atitudes de discriminação e intolerância contra o outro objeto do preconceito. Nos tempos de crise, ele é instrumento pernicioso a serviço de ideologias e grupos sociais intolerantes e violentos.
Um exemplo da inconsciência do nosso preconceito extraído do balaio onde ajuntei uma infinidade: a senhora recifense, mãe de duas adolescentes louras e lindas, orgulhosa de dizer que não tinha preconceito racial. Um acaso feliz – ou infeliz, depende do ponto de vista – fez com que um dia as filhas se apaixonassem por dois negros. O mundo caiu sobre a consciência perplexa da mãe, que mobilizou todas as suas forças e recursos para suprimir a paixão inter-racial. Não obstante, continuou afirmando de pés juntos que não alimentava nenhum preconceito de cor, apenas não tolerava que suas filhas se apaixonassem por negros.
O nordestino é o judeu brasileiro na história dos nossos preconceitos. Sei que a analogia é um tanto forçada, mas quase todas o são. Não faltam explicações históricas e sociológicas, também psicológicas, para a frequência desse tipo de preconceito. A educação e o esclarecimento, que supõem a assimilação do saber necessário à compreensão racional desse tipo de preconceito, sem dúvida muito importam para que modifiquemos nossas disposições preconceituosas. Como acima observei, a consciência é o primeiro passo necessário para a correção dessas distorções que intervêm na nossa apreensão racional da realidade. O problema é que preconceitos e estereótipos alimentam-se de paixões correntemente manipuladas por grupos sociais interessados em assegurar na sociedade posições de poder econômico e político. Mais grave ainda é considerar que são sintomas da agressividade constitutiva da nossa natureza.
Se a educação e o esclarecimento fossem suficientes para abolir o preconceito, como explicar que ele exista em toda sociedade conhecida, não importando o grau de difusão dos processos educativos nela observável? O exemplo histórico mais conhecido, também o mais terrível, é fornecido pelo advento do nazismo na Alemanha. Sabemos que oficiais de alta cultura, educados na tradição do mais alto humanismo germânico, oprimiam judeus nos campos de concentração enquanto à noite se comoviam em casa ouvindo Bach e Mozart, lendo Goethe e mirando-se como modelo de uma supremacia racial e civilizacional destinada a imperar sobre o mundo. Sei que o termo que acabo de empregar, “oprimiam”, soa como um eufemismo, como uma expressão amena para sugerir os horrores produzidos nos campos de concentração. O fato sugere a complexidade espantosa do ser humano capaz de habitar essas duas ordens de realidade em princípio antagônicas. O mesmo valeria para as sociedades escravocratas. O Nordeste brasileiro constituiu um dos mais completos exemplos dessa história. Bem poucos se davam conta do antagonismo entre a escravização do negro e a instituição da religião católica, que prega a igualdade universal dos seres humanos.
Se no Brasil a polaridade corrente, em termos de preconceito regional, compreende o Sul, notadamente São Paulo, e o Nordeste, nos EUA a relação se inverte, pois lá o Sul é objeto de preconceito dos nortistas. Convém frisar que me refiro a inversão em termos de poder. A raiz histórica dessa polaridade procede do fato de que nos EUA a escravidão e a economia de base agrária concentraram-se no Sul, enquanto a economia industrial e moderna desenvolveu-se sobretudo no Norte do país.
Como o nordestino é vítima corrente do preconceito sulista, antes de tudo paulista, é compreensível que reaja enquanto vítima denunciando a violência do mais forte. Se no entanto queremos ir mais fundo na consideração do preconceito, precisaremos reconhecer que, numa outra perspectiva, o nordestino sai da posição de vítima para se converter em agente do preconceito ou agressor. O preconceito de gênero, por exemplo, é provavelmente mais forte no Nordeste, onde o patriarcalismo fincou raízes muito mais profundas e duradouras. Esse tipo de preconceito, como sabemos, visa a mulher, vítima sobretudo de violência doméstica e da misoginia comum nos círculos machistas. Sabemos ainda que esse tipo de preconceito, estendido na forma de preconceito sexual no sentido amplo, envolve também homofobia, ou a intolerância investida contra o homossexual. Outra forma corrente de preconceito, ainda na ordem das diferenças regionais ou espaciais, remete à discriminação imposta pelo elemento citadino ou urbano ao rural. O termo matuto, muito corrente no Nordeste, está impregnado de discriminação. O matuto simboliza o oposto de todos os valores culturais positivos atribuídos ao habitante da cidade grande.
Como todo país de largo passado colonial, de resto ainda bem vivo no presente, o Brasil sofre de uma angústia de reconhecimento e identidade diante do estrangeiro, sobretudo o estrangeiro norte-americano e europeu. É fato que nossa imagem nesses países não passa de estereótipo grosseiro. Há até quem pense, refiro-me a gente que estuda nas melhores universidades do mundo, que o espanhol é a língua oficial do Brasil, que somos um país africano, que temos apenas futebol, carnaval e mulher submissa e gostosa e desfrutável. Seria injusto atribuir a persistência de preconceitos tão ofensivos e infundados apenas ao etnocentrismo estúpido dos países cultural e economicamente dominantes. Nós próprios, sejamos honestos, concorremos para a difusão e persistência desses preconceitos quando, em nome da afirmação de uma discutível identidade cultural, projetamos de nós próprios uma imagem exótica baseada em tradições e elementos diferenciais pré-modernos. Um único exemplo: a publicidade oficial brasileira já espalhou pelo mundo fotos de mulheres mulatas, rabudas e desfrutáveis como atrativo turístico.
Teresa Sales discordou de mim ao ler acima o adjetivo “rabudas”. Entre outros argumentos ponderáveis, salientou o fato de que destoava do meu estilo. Dei-lhe pronta razão, que aqui explicito, embora omita os detalhes do que discutimos receoso de alongar desnecessariamente o ensaio. Importa no entanto frisar que, embora concordando com ela, insisto em manter o adjetivo. Usei-o de forma deliberada, acrescentaria expressivamente necessária, pois o adjetivo traduz o sentido preciso do cartaz da publicidade oficial mencionada no parágrafo acima. Sendo mais exato, vi-o no próprio consulado do Brasil em Londres, por volta de 1990. Difundido internacionalmente pela extinta Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), enquadrava num close that speaks volumes (abuso agora do eufemismo) o traseiro de uma mulata. O sentido da foto, ou propaganda, está de tal modo impregnado no imaginário erótico brasileiro e estrangeiro que me dispenso de esmiuçá-lo, já que é de fato um estereótipo cultural vivíssimo da sexualidade brasileira, ou da docilidade desfrutável da mulher brasileira.
Como conversa puxa conversa, e memória puxa memória, minha discussão com Teresa me fez lembrar um outro fato que reforça a linha do argumento desfiada nos parágrafos precedentes. Na década de 1990, quando cresceu a afluência de turistas europeus para o Nordeste, um dos principais periódicos nordestinos (o Diário de Pernambuco ou o Jornal do Commercio) estampou na primeira página da sua edição de domingo: “A Europa se curva ao Nordeste”. Sabe o leitor atento que a manchete é uma variação do nosso orgulho ressentido de país colonizado quando algum triunfo ou virtude brasileira imposta ao europeu vinga nosso passado. O mais significativo, no entanto, é que o texto da reportagem tratava explícita e prioritariamente de turismo sexual. Um dos turistas entrevistados (italiano ou alemão) louvava (era o tom da reportagem, não minha memória nem o estilo com que a reproduzo) a sensualidade submissa e quente da mulher pernambucana.
A última campanha presidencial deu margem a conflitos que expressam antes de tudo interesses momentâneos dos grupos em luta pelo poder. Apesar de todo o barulho eleitoreiro e marqueteiro dos militantes e profissionais da política, há bem pouca diferença ideológica entre o PT e o PSDB, entre Dilma Roussef e José Serra. Em meio a tanta disputa contaminada e antes de tudo dirigida por interesses políticos e econômicos, o caldo transbordou sobre o solo de antigas e enraizadas disputas regionais saturadas de preconceito. É nesse contexto que a polêmica entre São Paulo e o Nordeste, tendo o preconceito como cerne da disputa, é periodicamente retomada. Há quem assim esqueça de que a própria propaganda política alimentou nossos preconceitos correntes. Os dois candidatos concorrentes à presidência, inspirados pelo pragmatismo desonesto, diluíram o debate em torno da questão do aborto, outra deplorável evidência dos nossos preconceitos inconscientes e não raro hipócritas.
Sou absolutamente favorável à luta contra o preconceito, contra todo tipo de preconceito, que deve ser denunciado e desmascarado. A educação e a opinião esclarecida são parte crucial dessas formas de participação e luta nos conflitos sociais. Sendo ainda mais preciso, argumento baseado na perspectiva do racionalismo universalista. Sei que essa perspectiva está em baixa, obstruída e combatida por toda forma de particularismo nacional, regional, religioso, racial, de gênero etc. Sei ainda que é ilusório acreditar na instituição de uma ordem humana universal isenta de preconceito e dominação. Não obstante, continuo fiel a meu racionalismo universalista. Por quê? Ora, porque estou convencido de que conceitos como os de humanidade, nação, identidade etc, são antes de tudo construções míticas ou pelo menos abstrações inevitáveis, isto é, não têm existência empírica ou factual. O que é o brasileiro, por exemplo? Qual a sua identidade? O brasileiro que mentalizamos ou conceituamos é produto de projeções imaginárias, o que não quer dizer que seja puramente fictício. Já que estamos no terreno das ilusões necessárias, dado que não podemos viver sem elas, fico com a ilusão do racionalismo universalista.
Mito por mito, como já escrevi num outro contexto argumentativo, prefiro o do universalismo. Ele se baseia na unidade biopsíquica do ser humano, não na pluralidade inegável das culturas. Cada uma tem seus modos próprios de expressão e linguagem, de relação com os universos da natureza e da cultura. Uma coisa é reconhecer essa pluralidade efetiva, outra, bem distinta, é propor uma teoria relativista segundo a qual cada cultura é única e portanto intraduzível em qualquer outro código. Reconheço a singularidade de cada cultura, mas isso não me impede de conferir prioridade àquilo que identifica em escala universal a espécie humana. Somente dentro desse quadro argumentativo podemos coerente e efetivamente defender valores humanos transcendentes a cada cultura. Se o critério é este, o de cada cultura particular, como argumenta o relativista, então ficamos de mãos atadas para defender qualquer valor prescrito, por exemplo, na Declaração dos Direitos Humanos.
O mito universalista tende a produzir políticas e formas de relação entre culturas baseadas na tolerância e no respeito a valores universais que nos facultam tomar posição efetiva contra valores particularistas que em termos práticos agridem os direitos do indivíduo. A questão momentosa envolvendo a iraniana Sakineh, à qual dediquei um artigo intitulado Universalismo versus Relativismo, ilustra muito bem essa questão. O mito universalista, se não quer se confundir com o humanismo ingênuo, compreende a natureza agressiva do ser humano, raiz psicológica do preconceito.
Reiterando uma frase que se tornou lugar comum, o mundo em que vivemos é uma aldeia global. A universalização dos meios de comunicação de massa, assim como dos processos de produção econômica e circulação da mercadoria, dissolveu as fronteiras tradicionais entre culturas e nações. Este fato impõe cada vez mais a necessidade do intercâmbio entre culturas, a necessidade de formas de consciência distintas daquelas forjadas pela ideologia nacionalista, assim como por qualquer outra ideologia particularista. Sei que os processos universalizantes acima indicados de modo algum suprimem relações de dominação e poder entre as nações. O que me parece evidente é que precisamos propor novas formas de relação e consciência opostas à opressão que nunca se baseou puramente em relações de dominação colonial ou imperialista, como os nacionalistas supõem e não raro usam esse argumento para justificar ou mascarar relações internas de dominação.
Quanto ao preconceito, ele continuará vivo. Seria ilusório acreditar que o simples aperfeiçoamento dos meios de educação e esclarecimento são suficientes para suprimi-lo. Como acima ressaltei, nem isso é suficiente para suprimi-lo nem é suficiente a perspectiva racional e universalista. O preconceito alimenta-se antes de tudo de paixões humanas postas a serviço de interesses políticos e econômicos. O que nesse ponto destaco de positivo é o fato de que hoje nenhuma nação do Ocidente, aqui compreendidas suas extensões periféricas, adota políticas de Estado baseadas no preconceito ou qualquer outro tipo de intolerância. Essa é uma conquista que credito ao mito baseado numa perspectiva universalista, também à difusão do saber sócio-antropológico na sociedade contemporânea.
Por mais que avancem, e felizmente têm avançado, as políticas de tolerância e respeito pela diferença são insuficientes para suprimir o preconceito. Portanto, precisamos realisticamente aceitar que ele é parte da nossa natureza agressiva, que precisa de justificação ideológica para impor a dominação violenta contra o outro. É dessa energia psíquica do ser humano que os grupos políticos se valem para promover conflitos sociais que por sua vez revertem em benefício dos que mandam, dos que exercem o poder na sociedade.

domingo, 7 de abril de 2013

Egoísmo


Durante muito tempo subestimei a centralidade do egoísmo na organização biopsíquica do ser humano. Esse é um fato correntemente reprimido na noção que temos do que somos e de como nos relacionamos com o outro, assim como com a realidade em geral. Formado dentro da tradição cristã em cujas raízes pulsa um humanismo sentimental e idealizador da natureza humana, cresci embalado pela crença na minha própria bondade. Por extensão, também na bondade do meu semelhante. Sei que simplifico a representação da natureza humana dentro da tradição cristã, pois não esqueço de que ela convive com uma representação também negativa e falível do ser humano. Medindo-me bem melhor do que de fato era, expressava inconscientemente meu narcisismo, além de um desejo de ilusão que anulava ou coloria a percepção rotineira de nosso egoísmo impregnado de maldade.

Essa representação da natureza humana é patente na nossa idealização da infância, no mito baseado na pureza e inocência da criança. Ora, a observação mais elementar demonstra precisamente o contrário. É impressionante nossa cegueira diante da maldade que tão corriqueira e espontaneamente se manifesta no comportamento da criança. Bastaria observar, por exemplo, o que acontece em qualquer família de filho único quando nasce um segundo, isto é, um competidor do amor e atenção até então absolutos desfrutados pelo primogênito, até então rei ou rainha do lar. Além de observar essa realidade rotineira em muitas famílias depois que lavei os olhos da minha percepção ingênua, tolhida pela necessidade de idealizar a infância, acrescentei a essa matéria empírica relatos de amigas que me esclareceram sobre o egoísmo cruel desfechado contra a irmã que vinha ao mundo para subtrair-lhes a condição de rainha do lar, objeto absoluto do amor dos pais.

Conto uma que vale por muitas. Minha amiga, hoje médica e filha de uma psicanalista, também minha amiga, contou-me esta história exemplar que acabou convertida em brincadeira muitas vezes repetida no nosso convívio prazeroso. Era filha única quando, aos 3 anos, nasceu não apenas uma, mas duas gêmeas. Destronada, começou a hostilizar as irmãs recém-nascidas. Um dia a mãe, ocupada em amamentar as gêmeas, tentava conter seus ciúmes, seu desejo imperioso de amor exclusivo advertindo-a para o fato de que, privadas de amamentação, as gêmeas morreriam. “Ah, é, mãe? Então não amamenta não”.

Isso rendeu-nos bom motivos de gargalhada, um riso então esclarecido pelo egoísmo competitivo que se manifesta já na origem da nossa vida. Mas quantos pais e adultos não continuam testemunhando histórias desse tipo com a inocência cega ou a inconsciência passiva dos que se deliciam pontuando complacentemente: “como minha filha é engraçada, como as crianças são deliciosamente inocentes”. Será isso pura e simples insciência do universo infantil ou sintoma do narcisismo que nos tolhe a percepção realista e desilusória da nossa natureza?
Também a observação de grupos de crianças, do modo como convivem na família, na escola, nas brincadeiras e projeções do seu imaginário infantil, são reveladores da nossa poderosa disposição para o mal já pronunciada na infância. Bertrand Russell foi um filósofo racionalista de extraordinária lucidez. No entanto, só muito tardiamente se apercebeu desses traços do nosso egoísmo votado ao mal, à competição e fantasias de destruição do outro. Já por volta dos 50 anos, fundou com Dora Russell, sua segunda mulher, uma escola pioneira na Inglaterra. O propósito de ambos era instituir uma educação libertária inspirada em modelos educacionais supostamente científicos que marchavam, em síntese, contra a tradição vitoriana asperamente repressiva. Quando no entanto se deu conta de que os “anjinhos” aos quais aspirava converter em seres saudáveis e liberados de padrões repressivos tendentes apenas a produzir o mal eram capazes de misturar alfinetes à sopa dos coleguinhas à hora da refeição, precisou revisar toda sua concepção pedagógica.

Crianças são espontaneamente cruéis. São cruéis entre si, no convívio que travam tecido por brincadeiras de nítido fundo sado-masoquista. O bullying, palavra que designa um fenômeno psicossocial que ingressou no circuito da mídia de forma muito positiva, constitui evidência exemplar das nossas disposições agressivas. O romance O Senhor das Moscas (Lord of the Flies), de William Golding, retrata em clima de antiutopia imaginária o que seria uma sociedade composta por crianças isoladas numa ilha. Esta obra, e sei de muitas outras de sentido semelhante dentro da tradição literária e cinematográfica, desdobra-se no avesso de todas as idealizações da infância nutridas pela tradição religiosa, pedagógica, antes de tudo por nossa natureza narcisista.

É também oportuno mencionar duas teorias que muito concorreram para reforçar nossa idealização da condição humana: o marxismo e o culturalismo que se tornou moeda corrente no discurso sobre o egoísmo e o mal nas nossas relações sociais. Segundo a primeira, de nítido viés historicista, não existe a natureza humana enquanto tal, mas apenas variantes humanas produzidas pelas condições materiais e históricas das relações humanas. É essa concepção que induz Marx, Engels e seus seguidores a projetarem num futuro incerto a sociedade ideal, um ideal de humanidade reconciliada segundo o qual transitaríamos do reino da necessidade para o reino da liberdade. Nesse ideal paradisíaco, transposto do céu para a terra, seriam abolidas as classes sociais e portanto todas as manifestações da opressão e do mal decorrentes da injusta e cruel divisão da humanidade entre senhores e escravos, entre capitalistas e proletários e variantes antagônicas equivalentes. Logo, a representação do mal e da injustiça como constitutivos da nossa condição humana não passaria de metafísica ou justificação ideológica da desigualdade e da opressão de classe.

Quanto à segunda, o culturalismo, postula a cultura como fundamento último da nossa natureza mutável na medida em que mudam as culturas. Seguindo coerentemente esse princípio, todo mal, toda injustiça, tudo que há de negativo no ser humano seria atribuível às condições da cultura. Esse culturalismo, quando progressista, postula a mudança cultural como meio eficaz de transformação positiva das relações humanas; quando conservador, opõe-se veementemente à mudança cultural encarando-a sempre como uma ameaça às constantes humanas, à identidade de um determinado grupo ou sociedade.

O que ambas teorias, a marxista e a culturalista, compartilham é a convicção de que não existem constantes humanas também decorrentes da nossa natureza biológica. Claro que a inversão de ambas, substituídas por uma concepção puramente biológica, incorre no mesmo excesso teórico determinado por um princípio monista ou absoluto. Num extremo teríamos o historicismo econômico-social ou cultural; noutro, o extremismo biológico. Ora, acredito que a verdade não radica nem num extremo nem no outro. A verdade é que nossa natureza humana resulta da articulação complexa entre natureza e cultura. Noutros termos, nem somos determinados pelas condições materiais da nossa existência social, postulado do marxismo, nem pelas condições culturais, postulado do culturalismo, tanto o de corte progressista quanto o conservador. Por fim, também não somos redutíveis à nossa natureza de fundo biológico. A chave de tudo, que todavia não abre porta ideal nenhuma, consiste na complexa interação dos fatores naturais com os culturais. Dentro dessa moldura teórica, acredito que temos alcançado realizar em graus variáveis estados mais ou menos imperfeitos de organização humana. Solução última, sonho de todo utopista, isso não existe.

Seria também preciso frisar que há certa sabedoria no nosso egoísmo, ou pelo menos inconsciente dispositivo de autossobrevivência. Isto é, nosso egoísmo nos poupa do sofrimento decorrente da empatia e simples compaixão diante da miséria corrente do nosso semelhante. Como suportá-la se nossas forças altruístas, se nosso senso de compaixão nos inclinassem ativamente para a miséria alheia? Nosso sofrimento e nossa culpa seriam insuportáveis se verdadeiramente empatizássemos com a dor e o sofrimento que a todos os momentos irrompem à nossa volta. É talvez por isso, e nisso há algo de saudável força de preservação do nosso ego, que de ordinário sofremos apenas diante do sofrimento daqueles que amamos, sejam parentes, amigos, o cãozinho de estimação...
Novamente, a formulação acima não deve ser compreendida em termos absolutos. Embora movidos por nosso egoísmo espontâneo tendamos bem mais para o polo da sobrevivência e do interesse enraizado nas nossas disposições egoístas, quantos exemplos extraordinários e desconcertantes não temos de sacrifício, renúncia e empatia com a dor e a necessidade do outro humano? Que medida humana poderia afinal esgotar nossa humanidade inexplicável?

Salvador, 7 de fevereiro de 2011.

domingo, 11 de novembro de 2012

Nós e os índios


César Melo (professor de literatura luso-brasileira, Universidade de Chicago)

1.
Em nenhum lugar do Brasil, a invisibilidade do índio talvez seja tão visível quanto na Avenida Paulista, em São Paulo. É ali, em frente ao Parque Trianon, dando de cara com o MASP, no meio de pessoas apressadas falando ao celular, buzinas de carros, barulho de motor e poluições de vários tipos, que fica localizada a estátua de Bartolomeu Bueno Dias, também conhecido como Diabo Velho (Anhanguera). Bartolomeu foi um bandeirante, conhecido matador de índio e saqueador de tribo. No entanto, se formos ao Houaiss e procurarmos o verbete “bandeirante”, nenhum desses significados estará lá – o que diz muito também de nosso silêncio e indiferença em relações aos índios. No dicionário, você descobrirá que “bandeirante” é sinônimo de “paulista”, além de significar “aquele que abre caminho; desbravador; precursor; pioneiro”. Os bandeirantes seriam uma espécie de “vanguarda” da colonização, o que casa bem com um lugar como São Paulo, cujos políticos ainda hoje se utilizam da infeliz metáfora da “locomotiva do Brasil” para definir o estado.
Vanguarda, desbravamento, locomotiva, non ducor duco (que está na bandeira da cidade de São Paulo e quer dizer “não sou conduzido, conduzo”) são signos que fazem parte de um mesmo campo discursivo: o do progresso arrojado. Se houve algum progresso no Brasil, esse foi o progresso da colonização, ou melhor, a progressão bandeirante lenta e contínua para o oeste, escravizando indígenas, apropriando-se dos recursos de sua terra, aniquilando sua cultura. Avançamos na terra e na cultura dos outros. Progresso, progressão, invasão. E continuamos fazendo isso: seja com os Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul; seja com os desalojados das construções da Copa do Mundo; seja com os índios da bacia Xingu que serão desterrados pela Usina de Belo Monte. As elites brasileiras continuam progredindo em cima de terras, pessoas e direitos.
Não nos enganemos. Nosso imaginário desenvolvimentista – essa necessidade e desejo de crescer e expandir em moto-contínuo – está calcado no espírito do bandeirantismo, que nada mais é a lógica do colonizador. Bartolomeu Bueno da Silva nos representa mais do que gostaríamos.
2.
Como aprendemos na escola secundária, os romances Iracema (1865) e O Guarani (1857) de José de Alencar são considerados ficções fundacionais da nação. Embora sejam textos fortemente ideológicos – uma vez que deliberadamente escamoteiam a violência genocida do encontro colonial para narrar tal encontro numa moldura conciliatória –, carregam em si um núcleo de verdade: o desejo do letrado brasileiro – o narrador dessa história dos vencedores – de moer qualquer traço de alteridade cultural no moinho da ocidentalização. Nas palavras certeiras de Alfredo Bosi, o indianismo alencarino não passava de um mito sacrificial dos índios, no qual estes só atingiriam a nobreza quando fossem capazes de se auto-imolar. Os índios Peri, de O Guarani, e Iracema, personagem central do romance homônimo, se tornam heróis na medida em que se anulam e se sacrificam em gesto de servidão aos colonizadores portugueses. Peri se converte ao cristianismo para se unir à portuguesa Cecília e, com ela, formar o povo brasileiro. Iracema trai o seu povo tabajara para ficar com o lusitano Martim. Do fruto desse encontro, nasce Moacir, o primeiro brasileiro. Depois de cumprida sua missão no processo civilizatório brasileiro, Iracema morre. O indianismo alencarino foi assim um elogio à submissão do indígena à sabedoria europeia. Bom índio é aquele que se ocidentaliza. Que muda de lado. Que nega seu povo. Que está disposto a aniquilar a sua cultura, e até a vida, para contribuir com a nação.
Um pouco mais de cem anos depois, João Guimarães Rosa, no conto “Meu tio o iauaretê”, se propõe a questionar essa relação colonial, evocando uma outra lógica. Se os mestiços “alencarinos” são cristianizados e ocidentalizados, o que aconteceria se o mestiço escolhesse o outro lado da mistura que o compõe?
“Meu tio o iauaretê” conta a história de Tonho Tigreiro, caçador de onças, contratado por um fazendeiro, Nhô Nhuão Guede, para desonçar um certo território. Em outras palavras, o caçador é chamado para livrar o terreno das onças, permitindo que aquele pedaço de terra possa ganhar uma utilidade econômica. Desonçar a terra faz parte de uma operação bandeirante (sem trocadilhos). No entanto, de tanto viver isolado dos homens, o caçador começa a ter mais simpatia pelas onças do que por gente, e passa a defendê-las. O caçador escolhe claramente um lado: o das onças, da natureza, dos animais, enfim, o lado da terra onde vive. É o mesmo “lado” que os índios defendem no seu esforço de resistência aos (neo)bandeirantes que invadem sua terra. Daí a conclusão da leitura que antropólogo Eduardo Viveiros de Castro faz do conto rosiano:
Não é um texto sobre o devir-animal, é um texto sobre o devir-índio. Ele descreve como é que um mestiço revira índio, e como é que todo mestiço, quando vira índio – isto é, quando se desmestiça– o branco mata. Essa é que é a moral da história. Muito cuidado quando você inverter a marcha inexorável do progresso que vai do índio ao branco passando pelo mestiço. Quando você procura voltar de mestiço para índio como faz o onceiro do conto, você termina morto por uma bala disparada por um revólver de branco.
Tudo que foge da lógica da anexação, da incorporação, da integração, é eliminado. Brasileiro gosta de mistura, desde que ninguém ameace a nossa cosmovisão e epistemologia ocidentais.
3.
Em Tristes trópicos, Claude Levi-Strauss lembra de uma conversa que teve com o embaixador do Brasil na França, Luís de Sousa Dantas, ocorrida em 1934, na qual o diplomata brasileiro havia comunicado a Levi-Strauss que não existiam mais índios no Brasil. Haviam sido todos eles dizimados pelos portugueses, lamentava Sousa Dantas. E assim concluía: o Brasil seria interessante para um sociólogo, mas não para um antropólogo, pois Levi-Strauss não encontraria em nosso país um índio sequer. Nós não sabemos se Sousa Dantas nega a existência dos índios por ignorância, ou simplesmente para ocultar um aspecto do país que o diplomata brasileiro certamente considerava “arcaico”, uma vez que a existência de “primitivos” não bendizia os padrões civilizatórios da nação diante de um estudioso europeu.
Mas quem de nós nunca agiu como Sousa Dantas? Qual foi o brasileiro que, no exterior, nunca se indignou com uma pergunta de um gringo mal-informado que sugeria que nós tivéssemos hábitos próximos ao dos índios? Eis o motivo de nossa indignação: como podem nos confundir com tupiniquins (palavra usada pejorativamente por nós brasileiros para nos definirmos como povo atrasado), se nós somos industrializados, urbanizados, temos carros, trânsito infernal, sofremos com poluição e tomamos Prozac para resolver nossos problemas emocionais? Em outras palavras, como podem nos acusar de “primitivos” se desfrutamos de todas estas maravilhas da civilização moderna?
Se por um lado, hoje, os brasileiros sabemos da existência empírica dos índios, por outro lado, negamos sua existência como nossos contemporâneos, e essa é a raíz da indignação diante de uma possível confusão entre nós, brasileiros, e um povo que, na cabeça de tantos, ainda não evoluiu. Ora, de todos os esforços pedagógicos para descolonizar o imaginário brasileiro, talvez esse seja o mais importante: de mostrar como nós precisamos urgentemente do diálogo com os índios. Devemos abandonar a ótica paternalista (do Estado brasileiro) que infantiliza o índio, enxergando-o como artefato do antiquário nacional, que para alguns deve ser incorporado à nação, enquanto para outros deve ser preservado tal como está. Esse é um falso dilema, pois reifica o índio. Devemos, sim, estabelecer com os índios uma relação de interlocução, com a qual temos muito que aprender.
Nossa civilização criou formas de vida que beiram a inviabilidade. Emporcalhamos nossas cidades; poluímos nosso mar, nossos rios, nosso ar; destruímos nossa natureza; criamos necessidades que nunca serão preenchidas a contento, gerando inúmeras frustrações, tamanha é a roda-viva do consumismo que determina nosso estilo de vida. Segundo Celso Furtado (que hoje, graças a Dilma Rousseff, dá nome a um petroleiro), no seu O mito do desenvolvimento econômico, “[o] custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana.” Quanto mais universalizamos nosso consumismo predador, mais rápido destruímos nosso ambiente e planeta. O que teríamos a aprender, afinal, com os índios?
O que dizer de um povo que vive há milênios em co-adaptação com o ecossistema amazônico, tirando da floresta o sustento da vida, em vez de tirar a floresta de sua vida (uso aqui o jogo de palavras do próprio texto de Viveiros de Castro)? Os índios são radicalmente cosmopolitas. A palavra “cosmopolita” quer dizer “cidadão do mundo”. Cosmos, na filosofia grega significa “universo organizado de maneira regular e integrada”. Se permanecermos fiéis à etimologia da palavra, cosmopolita seria então o cidadão de um universo harmonioso (cosmo é o antônimo de caos). Por anos, filósofos antigos e modernos têm pensado o termo “cosmopolitismo” como uma técnica de convivência entre povos. O cosmopolitismo radical dos índios nada mais é que uma técnica de convivência e co-adaptação com o cosmo – o universo, o ambiente, o planeta. A destruição do planeta hoje parece mais plausível em decorrência da falta do cosmopolitismo radical dos índios do que do cosmopolitismo dos filósofos. O que teríamos a aprender com os índios? Algo muito simples e complexo: aprender a habitar o planeta.
4.
Pensar o índio no Brasil é particularmente difícil, pois as representações que temos do índio o colocam além da alteridade. O “outro” da cultura brasileira – narrada, claro, da posição do letrado urbano euro-brasileiro – é, com o perdão da redundância, outro. Ou melhor, são outros: o sertanejo, o retirante, o negro, o favelado.
Investigando sobre os motivos que levaram a esquerda brasileira a negligenciar o índio, Pádua Fernandes lembra que a esquerda revolucionária dos anos 70 – de onde saiu boa parte do Partido dos Trabalhadores – discutia a relação entre cidade e campo, mas era incapaz de pensar a floresta. Em parte, isso se deve à importação direta das categorias euromarxistas (e, claro, graças ao abismo das Tordesilhas, que separa o Brasil da América Hispânica; a esquerda brasileira nunca deu muita bola para o indo-socialismo do peruano José Carlos Mariátegui). No entanto, mais do que ser um problema de cegueira por parte de segmentos da esquerda, a invisibilidade do índio talvez remeta à maneira como pensamos o “povo” brasileiro, dentro do paradigma nacional-popular.
De acordo com esse paradigma, que estruturou a imaginação brasileira durante o século 20, o povo é o sertanejo de Os sertões, “rocha da nacionalidade”; o negro de Casa-grande & senzala e da vasta bibliografia sociológica e historiográfica que veio a seguir; os retirantes desesperados Manuel e Rosa de Deus e o diabo na terra do sol; o ingênuo Fabiano de Vidas Secas; a comovente Macabéa de A hora da estrela, além de tantos outros personagens e temas das nossas produções culturais. A consciência social do letrado urbano brasileiro foi construída a partir da ideia de que o povo brasileiro – na sua imensa maioria pobre, desassistido, negromestiço – necessita ser integrado à modernidade, à cidadania plena, a um sistema educacional justo e ao conforto material.
A eleição do presidente Lula em 2002 talvez tenha sido o evento mais importante de nossa democracia exatamente porque mexeu profundamente com nossa imaginação nacional-popular: pela primeira vez, o povo assumia o poder. Fabiano, Macabéa, Manuel e Rosa estavam todos representados na figura carismática de Lula. E não se pode negar que o governo Lula muito melhorou a vida do “povo brasileiro”, garantindo acesso a bens e direitos antes impensáveis. O progresso finalmente havia chegado ao andar de baixo, que agora podia comprar televisão, andar de avião e até passear de cruzeiro. Nunca antes na história desse país, o povo esteve mais integrado aos padrões de consumo do mundo civilizado.
O mesmo governo que tanto fez para tanta gente (e atuou como uma força descolonizadora no tocante às ações afirmativas e na introdução de história africana no ensino médio), é aquele que age como um poder colonizador na Amazônia, e aliado objetivo dos fazendeiros do agronegócio no Mato Grosso do Sul. Desse modo, o Estado e seus sócios ocupam a terra com prerrogativa desenvolvimentista, como se fosse um território vazio, pronto para o usufruto dos agentes econômicos. Nada muito diferente dos bandeirantes. O que antes vinha coberto com retórica de missão civilizatória cristã, agora é celebrado como a chegada do progresso. Nos dois tipos de bandeirantismo, a destruição vem justificada por um discurso de salvação. O índio que habita nessas terras é tratado simplesmente como obstáculo que deve ser removido em nome do progresso da nação (progresso no caso representa: carne de gado no Mato Grosso e energia elétrica para indústrias do alumínio na Amazônia).
O índio apresenta um desafio para o pensamento da esquerda no Brasil. Um desafio que ainda não foi pensado como desafio, pois a esquerda ainda enxerga a “questão indígena” como um problema que deve ser resolvido. O desafio, ao contrário do problema, não exige uma resolução, mas uma autorreflexão. Os índios nos fazem repensar nosso modo de vida, e até mesmo o conceito de nação. Como salientei, o índio não se insere na matriz nacional-popular que mobiliza tanto a nossa imaginação. E não se insere nela pois, ao contrário do retirante, do favelado, do pobre, do negro, o índio não está buscando integração à modernidade (a grande promessa do lulismo às massas). Os índios parecem querer reconhecimento do seu modo de vida (como se pode ver nessa entrevista de Davi Kopenawa). E, para viver do jeito que sabem viver, é necessário garantir as condições mínimas de possibilidade para sua vida: terra e rios que não sejam dizimados pela usina de Belo Monte, nem pelo garimpo; segurança e tranquilidade para não serem acossados pelos capangas do agronegócio, como no Mato Grosso do Sul. Essas são as grandes lutas hoje.
A luta pelos direitos indígenas vai muito além de uma quitação da nossa dívida histórica. Mais do que um acerto de contas com nosso passado, a garantia dos direitos constitucionais dos índios é imprescindível para o nosso futuro. Precisamos cada dia mais da sabedoria desses cosmopolitas radicais, se quisermos repensar e refundar os pressupostos de nossa existência planetária.