quinta-feira, 15 de maio de 2014

Política e Psicanálise


Comento tardiamente o artigo de João Rego: O político, o homem e a razão cética, publicado na revista eletrônica Será? João Rego tem com freqüência citado Freud, notadamente O mal-estar na civilização (este termo, aliás, mereceria um artigo esclarecedor), para definir sua compreensão da política e questões de fundo social discutidas nessa revista. Sua perspectiva me parece decorrer, antes de tudo, da sua qualificação como analista e portanto leitor da obra de Freud. A representação corrente da psicanálise é muito deformadora dos seus fundamentos, já que tende a restringir sua validade e exercício à relação clínica entre o analista e o paciente. Há portanto quem ignore, inclusive muitos praticantes da psicanálise, suas ambições explicativas mais amplas. Se perdemos de vista essa dimensão, não podemos sequer imaginar o impacto exercido pela psicanálise no movimento intelectual do século 20. Um verso de Auden, um dos que foram profundamente influenciados por ela, condensa em poucas palavras o que estou aqui sugerindo: Freud tornou-se um clima de opinião. Traduzo assim livremente, e sem aspas, o que ele expressa num poema em memória de Freud pouco depois de este morrer.
É certo que a formação de Freud prende-se de imediato às ciências naturais (generalizo para simplificar a exposição) num estágio de desenvolvimento dessas ciências tão acelerado que do seu bojo brotou a ideologia do cientificismo. Explicando-a grosseiramente, reduzia tudo à ciência. De acordo com essa perspectiva ideológica, a ciência era o fundamento do progresso humano e, no limite, tendia a explicar tudo. Na periferia da cultura européia, é o caso do Brasil, intelectuais como Euclides da Cunha validaram a inviabilidade racial do povo brasileiro baseados nessa ideologia espúria. Sabemos que retificou esse erro, mas não ao ponto de suprimir graves ambivalências e contradições observáveis na sua inquestionável obra-prima. Também Freud pagou tributo ao cientificismo, como é patente nos textos em que interpreta obras artísticas. Diria que o que salva Freud dos erros dessa ideologia é sua formação humanística e sua intuição profunda da natureza indomesticável das pulsões humanas. É graças a essa concepção que, sobretudo na sua obra tardia, retoma de forma explícita questões sócio-culturais como as que João Rego ressalta no seu artigo.
Acho que uma apreciação psicológica da política é fundamental. Freud é uma das matrizes modernas dessa abordagem, embora nunca tenha escrito estritamente sobre o assunto. Visando sugerir a fecundidade dessa perspectiva interpretativa, lembraria os muitos analistas e comentadores da psicanálise que a exploraram de forma explícita. Evito citar nomes, pois há uma infinidade deles. Uma das limitações sérias de muitos dos nossos estudos sobre a política, em particular a brasileira, deriva dessa omissão de uma concepção psicológica do ser humano. João Rego tem esboçado com pertinência essa dimensão interpretativa no que escreve para a revista Será?
Retomando um pouco seu argumento, ele se baseia antes de tudo em O mal-estar na civilização para expor argumentos que o leitor apressado pode simplesmente interpretar como pessimistas ou até niilistas. Um argumento que me parece central na obra de Freud acima citada consiste na ideia de que há no ser humano um cerne biológico indomesticável pela civilização. É isso o que explica o título da obra. Também explica a recusa de Freud a uma noção otimista do progresso humano, apesar de ocasionais ambivalências contidas no conjunto da sua obra. Explica por fim sua recusa a qualquer utopia. Convenhamos: se acreditava na natureza indomável do egoísmo e da agressividade humana, como validar ou propor qualquer projeto utópico?
Freud procede no livro a uma breve crítica do comunismo. Observa que este supõe a crença na propriedade como fundamento dos males humanos. Suprimida a propriedade, instituída a igualdade social na espécie, realizaríamos afinal a utópica reconciliação da humanidade. Para mim, isso não passa de substituto secular da religião. Baseado na psicanálise, Freud desqualificou esse experimento histórico em 1930, ano em que publicou O mal-estar na civilização. Bertrand Russell o precedeu nessa objeção certeira. Em 1921 foi à Rússia conhecer de perto a revolução em processo. Conheceu Lênin pessoalmente. Depois do que observou, escreveu um livro contra o comunismo que mesmo na liberal Inglaterra o deixou política e intelectualmente quase isolado. A prova de que ambos estavam certos, Freud e Russell, depois da catástrofe que foi a experiência comunista ao longo do século 20, não é mais questão de teoria, mas sim de ideologia. Os fatos históricos estão aí para quem queira avaliar os fundamentos utópicos do comunismo.
A conclusão acima que, embutida na obra de Freud, também serve para validar a razão cética contida no título do artigo de João Rego, suprime o solo de onde brotam nossas ilusões mais tenazes. Ousaria acrescentar que pode ir além validando uma concepção niilista, se como tal entendemos a insolubilidade da condição humana. Na visão de Freud, Deus está morto, como antes, com implicações distintas, também afirmaram Dostoiévski e Nietzsche. Até no âmbito terapêutico Freud assinalou que tudo que a psicanálise poderia fazer seria substituir nossa miséria psíquica por uma neurose suportável. Friso traduzir livremente de memória o que ele escreveu. Acrescentou ainda que “civilização é repressão”. Embora tenha pioneiramente lutado para promover condições culturais passíveis de aliviar o peso insuportável da repressão sexual numa época profundamente diferente da permissividade hoje reinante, nunca relutou na defesa da civilização. Nesse sentido e em muitos outros que omito num breve artigo, a substância da sua obra e de sua orientação ética são incompatíveis com o espírito do presente. Isso explica em parte a compreensão deformadora da sua obra.
Em suma, Freud foi um gênio, um conquistador (termo de sua eleição) de territórios insondáveis do nosso psiquismo. Por isso a substância da sua obra é tão indigesta para o mundo regido pelo hedonismo e a permissividade em que vivemos. É também indigesta para os que não suportam viver privados do consolo de ilusões salvadoras ou o peso da existência humana sem a consolação de uma utopia passível de dissolver a tensão insolúvel entre desejo e realidade. Também por isso o veio aberto por João Rego pode fecundar leituras mais agudas da política e da nossa retorcida natureza.

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