quarta-feira, 7 de maio de 2014

A Sabedoria de Montaigne II


Montaigne afirma e reitera sem meias medidas que é a si próprio que toma como medida da natureza inapreensível do sujeito. Até às bordas do Renascimento, assinalado no conjunto das mudanças que desencadeou como um verdadeiro abalo sísmico na história da humanidade, o mundo era ainda concebido como um cosmos, um todo ordenado em cujo centro pairava soberana a ordem teológica instituída pelo catolicismo. Quando a ciência se desprende da teologia e a Europa dilata os horizontes geográficos do mapa estendendo-os até à América, uma realidade absolutamente nova irrompe na realidade pensada pelos filósofos e governada pela nobreza e o clero. Esse abalo tremendo, apesar das temíveis forças de reação desencadeadas pela religião católica e por todas as instituições conservadoras do velho mundo, repercutiu inevitavelmente no âmbito da filosofia e demais campos de saber. Os ensaios de Montaigne são um sintoma e uma evidência dessas turbulências que na esfera religiosa se traduzem numa prolongada e devastadora guerra civil. Por pouco esta não provocou a desintegração da unidade nacional da França.
Montaigne viveu e pensou no centro desse furacão. Depois dele, um outro francês, Descartes, revisou radicalmente todos os fundamentos da filosofia que o precedeu para enfim propor um sistema de explicação racionalista do mundo fundado na evidência inabalável do eu pensante. Assaltado por tantas forças destrutivas da velha ordem, o edifício precário da filosofia por pouco não desmoronou escorado por crenças dogmáticas que a própria tentativa de reforma liderada por Lutero, Calvino e outros radicais concorreu para periclitar ainda mais. É dentro desse contexto de profunda crise histórica que Descartes postula o eu pensante como fundamento primário de certeza para daí deduzir todo um sistema de reconstrução da filosofia. Mas Montaigne veio antes, quando a crise, pelo menos no terreno religioso, era bem mais aguda. Além disso, como também antes observei, Montaigne nunca teve a pretensão de elaborar um sistema filosófico passível de reordenar o mundo sacudido pelas mudanças desencadeadas ao longo de dois séculos de mudanças observáveis no desenvolvimento da ciência, da religião e da arte. A irrupção devastadora da Reforma Protestante, instituindo a liberdade de interpretação dos textos sagrados, representou, entre outros conflitos, a pulverização de qualquer unidade de sentido no âmbito da hermenêutica filosófica e religiosa. Essas disputas logo transbordaram das abstrações semânticas e interpretativas para o solo cruento da história onde distintas seitas religiosas se entredevoraram em nome de Deus e de verdades absolutas que céticos como Montaigne reconhecem como relativas.
Foi dentro desse contexto turbulento acima esboçado que Montaigne viveu ao longo de quase toda a segunda metade do século 16. Uma das evidências de sua sabedoria consiste na liberdade subjetiva que preservou vivendo no centro do turbilhão que foi a guerra civil cujas sucessivas explosões impuseram à França estados de violência e divisão extrema. Embora católico confesso, Montaigne nunca se deixou contaminar pelo fanatismo religioso. Se na esfera pública declarava sua fidelidade à tradição católica, no pacto subjetivo que forjou para o exercício da sua subjetividade privada prevaleciam as práticas da liberdade tolerante e cética, tanto quanto as evidências disponíveis me autorizam deduzir. Eleito prefeito de Bordeaux, à revelia de sua vontade ou ambição, esteve à frente do poder na região onde era mais radical o conflito entre católicos e huguenotes, ou protestantes. A sabedoria com que se conduziu em meio a conflitos extremos evidencia-se no predomínio da tolerância que alcança articular entre facções belicosas. Apesar de as facções extremas – huguenotes versus a Liga católica – ameaçarem durante anos deflagrar mais uma vez na região uma guerra que entre tréguas precárias estendeu-se ao longo de toda a segunda metade do século, Montaigne e Matignon, chefe militar das forças reais na região, valeram-se astutamente da diplomacia e do poder intimidante, quando necessário, para manter a paz. Assim procedendo, asseguraram uma paz tensa, mas efetiva, em meio aos anos mais ferozes da guerra civil. Esse feito é ainda mais extraordinário se lembramos que teve como cenário a região onde os conflitos religiosos eram mais extremos.
Os fatos acima são suficientes para demonstrar que Montaigne não foi um filósofo contemplativo insulado na torre do seu castelo. Sua personalidade complexa e contraditória acomodava sem desequilíbrio sensível o homem recluso, voluntariamente recolhido à sua biblioteca, e o homem de ação cuja biografia registra não apenas uma relevante carreira militar, mas também o prazer de a viver, o prazer do convívio viril entre homens votados ao exercício da guerra e do combate armado. É certo, contudo, a julgar por suas próprias palavras, que nele prevalecia o homem tendente ao cultivo das letras e da filosofia. Afinal, não foi apenas por força da grande dor advinda da morte do seu amigo Étienne de La Boétie que aos 38 anos retirou-se da vida pública para devotar-se à solidão entre os livros. Este fato crucial, a perda do amigo que foi o bem mais valioso de sua vida, agravou os sintomas de melancolia que confessa num dos ensaios.
Parece-me importante salientar os fatos acima para que o leitor desprevenido não conclua indevidamente que Montaigne viveu a partir de então insulado na sua torre de marfim. Apesar de essas condições e o ambiente privado da torre e do castelo prevalecerem a partir de então; apesar de com o decorrer do tempo agravar-se a doença genética que por fim o matou, cálculo renal, Montaigne manteve intacto o elo substancial entre o estudo continuado dos sábios antigos que inspiraram sua sabedoria e a vida vivida orientada por seus princípios filosóficos. Estes ele os assimilou, num primeiro momento, imantado à tradição estoica. Esta, como bem ressaltou Pierre Villey num amplo e esclarecedor ensaio sobre a obra de Montaigne, Os ensaios de Montaigne, é mais perceptível nos primeiros ensaios. Segundo Villey, o estoicismo abraçado por Montaigne é fruto antes de sua imaginação de leitor do que propriamente de sua experiência e convicção profunda. Suponho que as exigências extremas do estoicismo, demandando da vontade uma energia e tenacidade em face da privação e da dor de existir raramente factíveis na nossa condição tão vulnerável e inconstante, contrariava as disposições temperamentais mais profundas de Montaigne.
Se de um lado esmerou-se no exercício da vontade, demonstrando diante da dor e da adversidade coragem e resistência dignas de um estoico, de outro tendia para o prazer de viver, para certa propensão hedonista inconciliável com o rigor austero do estoicismo. Isso por certo explica, retomando as ponderações de Pierre Villey, sua transição para a filosofia cética inspirada na leitura de Plutarco e sobretudo de Sexto Empírico. O que estes propõem a Montaigne como ideal de vida, e aqui confesso basear-me diretamente em Villey, é uma filosofia que corresponda às tendências predominantes do ser humano, não uma exigência de austeridade que no limite compromete o que há de saudavelmente humano em nós. O espírito de extrema austeridade dos estoicos é evidente, por exemplo, quando partindo do reconhecimento da realidade humana como uma experiência de sofrimento e transitoriedade postulam a indiferença em face da morte dos próprios filhos, dos que mais intimamente amamos. Como pregava um deles, abraça todos os dias o teu filho como se o fizesses pela última vez. Lembra-te de que ele e tudo são votados para a morte. Dessa compreensão da condição humana baseada numa negatividade extrema decorre a necessidade da constituição de uma vontade tenaz, uma vontade forjada com uma matéria que me parece exceder a medida humana razoável. Diria mais. Diria que essa filosofia tecida com preceitos tão extremos ultrapassa a fronteira de um pensamento heróico convertendo-se em arrogância e insensibilidade. É contra esses extremos da filosofia estoica que Plutarco se bate e aproxima Montaigne da sua obra, logo em seguida da de Sexto Empírico.
Foi dentro da moldura acima canhestramente esboçada que Montaigne produziu seus ensaios mais maduros e definitivos, isto é, afastando-se da vontade férrea do estoicismo ou de outro modo temperando-o com as virtudes mais amenas e humanas do ceticismo e do hedonismo. Caberia ainda realçar o papel que a filosofia cética desempenhou na sua vida e obra. No seu tempo, que foi de mudanças avassaladoras, como antes frisei, a Europa descortinou horizontes humanos e naturais até então desconhecidos. Noções secularmente estabelecidas são sacudidas pela revelação de outros modos de cultura, outros costumes, línguas e modos até antagônicos de ser. Essa realidade é patente, por exemplo, no ensaio sobre o canibalismo, fruto do contato de Montaigne com índios brasileiros conduzidos à França. A composição do ensaio, é também evidente, não decorreu apenas do contato ocasional que manteve com os índios e da conversa conduzida por um tradutor. Movido por sua curiosidade insaciável em face do outro, do estranho, até do intolerável para tantos que se sentem ameaçados pela irrupção do inusitado ou imaginariamente inconcebível, Montaigne leu a bibliografia disponível sobre a América colonizada pelos europeus. Dentre as leituras que fez, destacam-se as obras do protestante Jean de Léry e a do católico André Thevet. Segundo Sarah Bakewell, autora de How to Live, uma biografia acessível e muito bem escrita e documentada de Montaigne, preferiu a do protestante Léry: Histoire d´un voyage fait en la terre du Brésil.
O detalhe acima, integrado ao contexto de intolerância religiosa e cultural da época, constitui mais uma evidência da liberdade subjetiva de Montaigne. A esse propósito, importaria mencionar uma longa viagem que empreendeu, apesar da sua doença renal e das condições precárias da época, através da Suiça, Itália e Alemanha. Além de extrair da viagem o melhor que pôde, seguia fiel os passos de sua curiosidade isenta de intolerância e de muitos dos preconceitos correntes no seu tempo. Na Alemanha conversou com protestantes movido pelo desejo de melhor conhecer e compreender aqueles que eram em princípio seus inimigos religiosos. Conversou ainda com judeus, assim como assistiu a rituais judaicos em uma sinagoga e conversou com prostitutas – não como se fossem objeto de prazer mercantil, sublinho. Sua curiosidade admirável e incansável está muito próxima do que hoje reconhecemos como sendo o trabalho de campo de um etnógrafo. Em suma, conduziu-se dentro do espírito de humanismo radical contido na frase de Terêncio que tantos já citaram através dos tempos: nada do que é humano me é estranho.
Montaigne foi um sábio, um dos raros filósofos que leio persuadido de estar lendo um sábio cuja sabedoria é pautada pelo bom senso, a compreensão profunda de nossa natureza tão retorcida e fascinante, tão complexa e perturbadora. Foi ainda um homem consciente do lugar que ocupamos na ordem da natureza. Por isso educou-se inspirado pelo humilde e resignado acolhimento do que na vida e no seu próprio corpo é natureza. Aliás, suponho que um dos mais sérios obstáculos para que alcancemos seguir-lhe o exemplo reside no profundo afastamento, senão mesmo divórcio, que o desenvolvimento da ciência e da técnica introduziram entre o ser humano e a natureza. Além disso, passamos a habitar formigueiros humanos onde se empilham milhões de pessoas imersas da luz da aurora ao fim do dia em ambientes artificiais. Essa realidade nos privou, por exemplo, do contato espontâneo e até inconsciente não apenas com o mundo da natureza, mas com a própria natureza que somos e nos habita. Espero que o leitor não leia essas breves impressões como uma queixa de nostalgia, mas como a constatação sumária de transformações profundas que, sem exagero, modificaram nossa natureza cavando um abismo entre natureza e cultura, as duas metades que nos constituem e todavia hoje se movem dentro de nós como se fossem metades cindidas. Por isso chegamos a extremos insensatos como a supressão da consciência e acolhimento da velhice, da nossa gradual impotência em face do curso irreversível da natureza e por fim em face da nossa morte.
Esse vínculo substancial entre o homem e a natureza é constantemente exposto nos Ensaios. Melhor dizendo, constitui o próprio fundamento da sabedoria assimilada e vivida por Montaigne. Diante do fantasma da morte, por certo a fonte mais renitente de medo que provamos na nossa existência, confessava confiar à natureza e sua fatalidade o curso e resolução de um processo que só nos cabe acolher e serenamente esperar. Deixava que a natureza cuidasse do que estava além do seu comando e desejo. Como assimilar essa sabedoria em face da nossa mortalidade, em face do medo que nos induz a tramar mil formas de protelação e refúgio, de ilusão e recalque, contanto que evitemos pensar o inevitável, suprimir da corrente da consciência nosso fim último?
III

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