segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Transitivo



Fernando, acaso duravam
No coração transitivo
(antes tão dócil, cativo)
As mulheres que te amavam?

Que duração teve o amor
Esse amor muitos, plurais
Que até doendo, na dor
Pede amor mais, inda mais?

Mas que importa, que importa
Dure tão pouco a canção?
O coração tem mil portas
E a vida muito desvão.

Recife, 21 de dezembro de 1987.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

No fim do dia



No fim do dia repasso
As horas do tempo ido
De tudo retendo um traço
Do meu relógio partido.

Era barato, de feira
O meu relógio perdido
Colhido em meio à poeira
Do meu caminho sofrido.

E entanto houve um tempo
Em que o espelhei sob a luz
Que era sonho e alento
Soprando auroras azuis.

Não era felicidade
O que na aurora luzia
Mas uma outra cidade
No dia que se expandia.

A inconsciência das horas
E a juventude do dia
Diziam: vive, lá fora
Um outro céu se anuncia.

Até na dor, no deserto
Essa promessa sustinha
De longe quanto de perto
A luz que era só minha.

E assim vivi de enganos
De asilo na minha ilha
Enquanto o passar dos anos
Roubou-me fêmeas e filhas.

Agora no fim do dia
Medindo o tempo perdido
Nenhum consolo ou poesia
Retém meu fardo puído.

De sobra ficou-me a noite
A sua concha e abrigo
E o velho relógio gasto
O fim já mede comigo.

Recife, 23 de agosto de 2011

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Cultura, identidade e globalização


Cultura Brasileira, Identidade Cultural e Globalização

Chego ao texto conclusivo da série de textos relativos à cultura brasileira e no entanto pouco considerei a situação presente da cultura brasileira e sua relação muito complexa com a questão da identidade cultural e a da globalização. Como penso que seria uma omissão no mínimo criticável, tentarei adiante considerar alguns aspectos dessas relações complexas sem nenhuma pretensão de resolver problemas ou fornecer respostas suficientes. Como o leitor decerto notará, os textos precedentes concentram-se no estudo das origens e da formação da cultura brasileira. Dado que elaborei o plano do conjunto de artigos relativos à cultura brasileira conferindo prioridade a conceitos básicos e à forma como alguns dos grandes representantes da tradição do pensamento social brasileiro os abordaram, suponho haver coerência no conjunto dos textos postados. Além disso, caberia também adiantar que este é um artigo de composição livre, inspirado nas minhas observações e nas muitas leituras que fiz sem anotações ou a intenção de escrever sobre o assunto.

Além do que já expus sobre a cultura brasileira, importaria acrescentar que o conceito é muito discutível, assim como os dois outros que dão título a este texto. As pessoas tendem a falar de cultura brasileira, mesmo pessoas muito educadas e até especialistas, como se o conceito indicasse uma realidade uniforme ou pelo menos coerente. Na verdade, isso está bem longe da verdade. Toda cultura, sobretudo as culturas do nosso tipo, estão expostas a variações no tempo e no espaço, além de se diferenciarem internamente. Há pouco propus a duas turmas minhas da Universidade Federal de Pernambuco que descrevessem uma viagem importante na vida de cada membro das turmas relacionando o local visitado (cidade, vila ou país) com características culturais de Recife. Para minha surpresa, os alunos me forneceram nas descrições feitas um rico material etnográfico, isto é, relativo à descrição de costumes e valores culturais observados nas viagens que fizeram. A maioria das descrições era relativa a cidades do interior de Pernambuco. Um dos aspectos mais interessantes dos trabalhos consistia precisamente na constatação da grande variedade de costumes, hábitos de vida e valores culturais relativos à religião, culinária, vestuário, educação, formas de entretenimento, cenas de rua etc.

Mencionei o exemplo acima para sugerir o quanto a cultura recifense, e mais amplamente pernambucana, contém de diversidade. Essa diversidade depende de muitos fatores, entre eles os de classe, espaço, tempo, modos de tradição... Tudo isso importa para sugerir o quanto é difícil fixar conceitos como os que dão título a este texto. No entanto, falamos e ouvimos correntemente falarem de cultura brasileira, cultura pernambucana, cultura nordestina, como se fossem realidades facilmente apreensíveis e consensualmente aceitas. Isso não é verdade nem tenho a pretensão de apresentar a verdade sobre esses assuntos. Por isso afirmei já no parágrafo inicial que meu objetivo não é resolver problemas ou fornecer respostas suficientes. Meu objetivo principal é propor claramente muitas dessas questões e assim induzir o leitor a refletir sobre elas, considerar respostas possíveis, procurar estudar e compreender melhor o que não tem respostas definitivas e absolutas.

Na década de 1970, como consequência da instituição dos programas de pós-graduação em diversas universidades brasileiras, surgiram várias obras nas quais os autores se propunham apresentar análises ideológicas da realidade social brasileira e de muitas das obras que aqui tenho estudado ou mencionado. O livro que provavelmente alcançou mais repercussão dentro dessa corrente foi o do historiador Carlos Guilherme Mota: Ideologia da Cultura Brasileira. Um dos principais objetivos do autor é exatamente questionar o conceito de cultura brasileira. Embora seja pouco preciso na abordagem deste assunto, e de modo algum forneça ao leitor uma resposta satisfatória, seu objetivo principal é desmontar esse conceito que no seu entendimento não passa de uma construção ideológica. Tentando exprimir isso de forma mais clara, ele procura demonstrar que o conceito de cultura brasileira é uma representação criada por certos intelectuais ligados às classes dominantes cujos interesses moldam a realidade deformada do conceito.
Criticando antes de tudo Gilberto Freyre, em quem identifica antes de tudo o grande ideólogo das oligarquias tradicionais e decadentes do Nordeste, Mota é incapaz de reconhecer ou admitir que uma obra como Casa-Grande & Senzala, por exemplo, está muito além da expressão de interesses de classe e poder, muito além de ser uma mera projeção ideológica dos interesses parciais da classe social à qual Gilberto Freyre pertence, assim como outros explicadores do Brasil estudados no livro.

A relação entre realidade social e ideologia é muito complexa. Além de não ser a questão mais importante deste artigo, não tenho também uma teoria definitiva sobre ela, nem sei de ninguém que tenha proposto uma teoria universalmente aceita. Minha intenção ao mencionar o livro de Carlos Guilherme Mota foi apenas assinalar uma corrente de estudos existente nessa área, além de novamente explicitar a complexidade dos assuntos que estou considerando. Noutras palavras, meu alvo é a cultura brasileira. Falo de cultura brasileira como algo que efetivamos existe, mas me parece impossível determinar exatamente o que seja esse objeto. Por isso observei noutros artigos aqui postados sobre cultura minha convicção de que o conceito de cultura brasileira, assim como o de identidade cultural, é uma construção ideal, um conceito que compreende aspectos seletivos da realidade dependentes da perspectiva do autor que considera o problema.
Mencionei acima a grande diversidade da cultura pernambucana que constatei ao ler os trabalhos de duas turmas da Universidade Federal de Pernambuco. Observei como essa surpreendente diversidade se opõe à noção corrente do conceito de cultura pernambucana, que representa este objeto, a cultura pernambucana, como se fosse algo uniforme e coerente, algo facilmente apreensível pela observação e também pelo conceito. É certo que agora se fala muito em diversidade cultural, a começar pela própria secretaria de governo que se chama, aliás, Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. A mídia, mais do que essa secretaria e a propaganda oficial, encarregou-se de difundir essa noção que virou portanto moda ou lugar comum. Agora todo mundo fala em diversidade cultural, em carnaval multicultural e expressões afins. Isso parece sugerir que somos todos muito conscientes e tolerantes com relação à grande diversidade da nossa cultura. No entanto, não encontramos nenhuma tolerância nos que defendem ardentemente uma concepção regionalista da cultura.

Já registrei noutros textos aqui postados o exemplo de Ariano Suassuna, talvez o melhor que se possa considerar. Afinal, além de ser um grande escritor e intelectual de imenso prestígio, ele é o mais radical defensor dos valores regionais da cultura, o grande ideólogo e porta-voz da cultura nordestina. Mais exatamente, ele defende um tipo de regionalismo conservador, preso a raízes ibéricas da nossa cultura conservadas em áreas do sertão muito pobres e por isso mantidas à margem da cultura típica do mundo moderno. É difícil encontrar nas atitudes públicas e pronunciamentos de Ariano Suassuna o espírito de tolerância e diversidade corrente nos lugares comuns da propaganda oficial, nos clipes publicitários, no discurso da mídia. Ele se pronuncia nitidamente contra tudo que é expressão da cultura de massas, tudo que é expressão da cultura contemporânea produzida e veiculada pela tecnologia, pelo capitalismo de consumo, pelas forças da globalização econômica e cultural. Indico sumariamente este exemplo apenas com a intenção de sugerir a complexidade das questões concernentes a este artigo: o conceito de cultura, o de identidade cultural, o de globalização.

Se passamos à consideração do outro conceito – o de identidade cultural, já estudado no artigo referente ao modernismo, ao regionalismo e à identidade cultural – esbarramos no mesmo tipo de dificuldade. Falamos correntemente de identidade na mídia e na propaganda oficial como se estivéssemos falando de um conceito claro, uniforme e de fácil compreensão. Se no entanto começamos a analisar alguns fatos relacionados ao conceito, logo nos deparamos com grandes dificuldades. Se nossa cultura é evidentemente marcada por sua grande diversidade de valores e práticas, como determinar uma identidade uniforme, ou pelo menos objetivamente apreensível? Diante de dificuldades dessa ordem, volto a afirmar minha convicção de que esses conceitos são construções ideais, isto é, não correspondem a nenhuma realidade objetiva, a nenhuma coisa que possamos precisamente determinar no âmbito da realidade observada.

É claro que podemos indicar com segurança alguns traços gerais da nossa cultura – da pernambucana ou mais amplamente da brasileira – que são compartilhados por todos ou pelo menos pela maioria. É o caso, por exemplo, da língua. Este é um traço cultural fundamental que todos compartilhamos, isto é, todos falamos a língua portuguesa. Mas mesmo esta é extremamente diferenciada nas suas formas de expressão que se manifestam no uso que dela fazemos. Quero dizer, a língua que identifica todos os brasileiros varia de acordo com a classe social, a região, padrões de educação etc. Logo, até esse valor compartilhado por todos os brasileiros está sujeito a variações do tipo que acabo de indicar. Se considerarmos o caso da religião, as variações e até mesmo as divergências e conflitos de crença e valor são ainda maiores. Bastaria pensarmos numa questão polêmica como a do aborto para observarmos a grande variedade de pontos de vista de diferentes tipos de brasileiros. Poderia acrescentar muitos outros exemplos, uma infinidade deles, para sugerir o quanto é complexa essa noção de identidade cultural, o quanto ela supõe tanto valores afins e compartilhados quanto valores conflitantes e inconciliáveis. O que podemos em suma observar é que felizmente prevalece na organização da sociedade uma situação de consenso sem a qual a sociedade não se sustentaria, isto é, nossos modos correntes de convívio e interação não se sustentariam.

Restaria por fim tecer algumas considerações gerais sobre a globalização. Para começar, a própria periodização do conceito é muito discutível. Há estudiosos que datam o processo de globalização a partir dos grandes descobrimentos, em particular do descobrimento da América. Este fato histórico representou, entre outras coisas, a expansão do capitalismo europeu para as Américas, assim como para outras partes do mundo. No que nos interessa, transportou para o mundo onde vivemos o capitalismo, a religião, a ciência e a técnica então desenvolvidas pelos portugueses. Mais do que isso, trouxeram os conquistadores da América e do Brasil todo um complexo de expressões culturais de procedência europeia que se chocaram mas também se mesclaram com valores culturais nativos produzindo a partir daí uma cultura nova. Advirto o leitor para o fato de que já considerei essa questão nas suas linhas gerais no artigo relativo à cultura brasileira e suas matrizes. Outros estudiosos, no entanto, datam o processo de globalização a partir do século 18, tendo como marcos o Iluminismo, a Revolução Industrial, originária da Inglaterra, e a Revolução Francesa. De fato, são marcos históricos fundamentais para a fundação do mundo moderno, em particular do que hoje correntemente designamos como globalização. Não vou explorar essa questão, até porque não tenho a competência do historiador e do estudioso da história econômica e social para melhor esclarecer os problemas que ela envolve. O que objetivo ressaltar é apenas a complexidade do conceito de globalização, que já se manifesta na sua periodização.

O fato talvez mais destacável, quando consideramos o problema da globalização, consiste na sua realidade objetiva. Quero dizer, noutras palavras, que ela é um fato. Em graus variáveis, a globalização está presente em todo o mundo. Está presente no Recife, assim como em Pesqueira, Londrina, Ouro Preto, nas praias distantes dos grandes centros urbanos, nas cidades e vilas remotas dos sertões e agrestes, na China, no continente africano... Está presente nos polos mais avançados do capitalismo paulista, assim como na floresta amazônica. O que varia é o grau de manifestação dessas forças globalizadoras. A ciência e a técnica, ou a chamada civilização técnica, e a revolução comunicacional que liga em tempo real o mundo inteiro são provavelmente as expressões mais fortes disso que designamos como globalização. Este, sabemos, é um fato histórico sem precedente. Como tal, ele mudou de forma profunda a realidade social e nossas formas de relacionamento. A simples existência de um curso de letras à distância, como este que me associa a alunos que nunca encontrei nem provavelmente encontrarei, constitui mais uma evidência do que acabo de afirmar.

Durante milênios os seres humanos se comunicaram diretamente, tendo a proximidade física ou espacial como fundamento da interação social. Depois das invenções tecnológicas que hoje viabilizam os contatos à distância, ou as relações virtuais, houve uma transformação radical nos nossos modos de relação humana. É provável que hoje a maioria de nós, habitantes do mundo urbano familiarizados com a televisão e a internet, mantenha contatos antes de tudo virtuais. Essa nova realidade provocou mudanças culturais e produziu novas formas de interação social que não posso infelizmente considerar de forma mais detida numa explanação geral desse desconcertante mundo novo. Além do alcance confessadamente modesto deste artigo, não disponho de conhecimentos para explorar a fundo as questões culturais implicadas nesse processo que chamamos de globalização. Por isso quase que me limitei a assinalar sua realidade objetiva, além de ressaltar sua complexidade, isto é, a própria complexidade do conceito. Reiterando o que afirmei no início, e agora concluindo, meu propósito principal foi acentuar a complexidade dos conceitos relativos a este texto. Foi ainda explicitar problemas, torná-los mais evidentes com a intenção de induzir o leitor a refletir melhor sobre a complexidade aqui indicada. Portanto, este texto é antes um texto relativo à explicitação de problemas e reflexões do que um texto de respostas e soluções fáceis.

Recife, junho de 2011.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Continente e ilha



Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world.
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity. (Yeats)

As explosões irromperam
numa luminosa manhã de setembro.
No cerne da ilha fabulosa
cerne do capital globalizado
dois modos de barbárie se entredevoram.

Recolhido na concha de sua ilha mítica
Senile vê aterrado as torres colossais se desmanchando.
A Caixa de Pandora enfim se rompe
cegando sobre as águas envenenadas
a face hedonista de Narciso.

Paralisado contra o vento fervente que o açoita
Senile vê em ondas
imagens da barbárie renascida.
Pandora rediviva na prosa niilista
do bruxo do Cosme Velho
agita as fúrias insones:
levo na minha bolsa os bens e os males
e o maior de todos, a esperança,
consolação dos homens.

No princípio era o caos
e agora a ele regredimos.
Nostromo, o coração das trevas
já não pulsam confinados na turbulência da periferia
drenada pela vontade de potência do capital
e das capitais do mundo.
Caliban e Próspero são o meu semelhante
e estão em toda a parte.
Civilização é uma flor precária
adubada no sangue da barbárie
e tangida pelos ventos da tormenta.

As torres se desmancham
soterrando o lago azul de Narciso
varrendo num sopro gelado
os cenários estéreis e histéricos do hedonismo midiático.
E entanto a barbárie segue seu curso
pois que a própria brutalidade do terror
logo se dissolve em espetáculo.
O fanático truculento que arquiteta
os infernos invocando forças divinas
é já herói, amanhã mito
incendiando a imaginação delirante
de massas famintas ávidas de sangue.
As fúrias insones
desencadeadas da Caixa de Pandora
de novo sacodem o mundo inaugurando
formas inusitadas de destruição.

Erguido contra os ventos que varrem as colinas de Insulândia
Senile vê dentro da névoa
as terras devastadas do continente.
Nas cores da manhã sangrenta
espetados no fundo rubro do horizonte
surdem os sinais do naufrágio que avança.
Transido entre a ilha mítica
e o continente inescapável sabe Senile
que nada nem ninguém estará a salvo
que até nas ilhas míticas
fecharam-se as rotas de fuga.

Mais que uma guerra desterritorializada
sem combatentes definíveis
mais que o terror elevado à escala global
Senile identifica no conflito
a luta cega de dois modos de barbárie na aparência antagônicos.
Se em um o atraso, a miséria
somados a forças elementares de resistência à mudança
produzem a violência extremada em terror
no outro o triunfo da tecnologia
e a reificação universal das relações humanas
geram a opulência privada de sentido
o niilismo prático e inconsciente
o predador consumista encolhido
no minimalismo da barbárie narcisista.

E Senile recua e se recolhe
no útero de sua ilha mítica
sabendo embora que todas as vias
de fuga estão fechadas e Insulândia
eleva-se indefesa diante da fúria
que ruge no continente.

A noite, uma noite sem tempo
recobre agora os céus do continente
estendendo suas trevas sobre o mar e a ilha.
Um longo cortejo de sombras
move-se contra o fundo onde o clarão dos mísseis
e outras máquinas mortíferas irrompem
no deserto do continente devastado.

Senile apura a retina
e as sombras se vão gradualmente definindo.
São os homens
seus semelhantes que correm
e correm e prosseguirão correndo através dos séculos.
Correm como um cortejo de condenados a correr
sem direção e sem propósito.
Correm e entanto correm
como se na corrida cega portassem uma verdade.
E assim se chocam uns contra os outros
e se combatem e se destroem
como se o sentido da verdade que invocam
na supressão do outro se afirmasse.
E difícil senão impossível é ainda
dormir em paz em Insulândia.

Recife, 30 de outubro de 2001.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Narciso em Insulândia



Ela aportou em Insulândia numa tarde de dezembro
Quando o sol dos trópicos banha as águas atlânticas
Com sua luz de ouro e fogo.
Senile, o habitante de Insulândia,
Acolheu-a entre perplexo e tenso
Seu coração insular inflado de presságios
Como as nuvens de Insulândia
emitindo sinais de tempestade e cólera
Nas madrugadas de junho.
Viera de longe, da costa americana
A pele e os cabelos longos
Traindo sua ascendência nórdica.

À noite, sentados ao pé do fogo
Ela lhe falou do mundo de que fugia.
Globalisation, she said
Is killing the very core of cultural diversity.
The real name of the Devil is American capitalism
Driven by greed and fierce competition.
Ouvindo-a desfiar dentro da noite de Insulândia
Seu desarraigamento e seu sonho de um mundo reencantado
Senile, ainda vulnerável à humanidade assimilada no continente,
Foi dormir tocado pela fantasia
De uma humanidade refeita em Insulândia.

Os dias e a matéria convivida
Cedo dissolveram na imaginação de Senile
O sonho de uma Insulândia duplicada
Em unidade amorosa.
Ela acordava sempre deprimida
Ausente de Senile
Da ilha que figurava como um poço sem fundo
Hostil ao mundo impassível
À sua demanda de unidade mística.
A indiferença das águas
Sobre as quais debruçava a face vazia
Feria-lhe a carne estéril de desejos destrutivos.

Narciso transtornou a solidão de Senile
Sua paisagem moral de bicho insular
Conciliado com o mundo idêntico às medidas de Insulândia.
Narciso sofria a ausência de espelhos
Um mundo encadeado em reflexo, vitrine
Fluxo incessante de imagens
Tecido sem pausa e sem silêncio
Oco escorrer de corpos, ruídos e sons agônicos
Propagados em miríades de telas, fauna noturna
Estádios explodindo em shows de rock e rapina.

Na pausa da noite, órfã sob os céus indiferentes
Narciso voltava-se para Senile
Oprimida pela carência de âncora
Ilha suspensa sobre seu mundo náufrago.
Mirava-o aflita
Sem que todavia a face dele a refletisse.
Debruçava-se sobre a superfície opaca
E recuava retesada em ondas destrutivas:
The world is sheer hell
And K. is kaos.

Sem suportes no tempo
Privada de um antes e um depois
Narciso braceja no nada cinzento do presente.
Como então compreenderia
A solidão de Senile
Iluminada pela memória da carne?
A recusa de Senile
Amparada na convicção de uma vida melhor?

Os sonhos sonhados por Narciso
São um fluxo de pesadelo e desejo de morte.
The world, she says, will end in fire or ice storm
With a bang or a whimper
And that´s all
And that shakes my body
With an unbearable feeling of terror and despair.
Se a ameaça do fim
E e sopro destrutivo da barbárie movem Senile
E suas linhas de fuga para Insulândia
Narciso a tudo assiste nas águas intransparentes do espelho-mundo
Seu ser profundo a densidade de uma vitrine de butique
Girando drogado nas danceterias frenéticas.
Things fall apart and you can do nothing
Except getting fun at the Fun House
And dancing rock and maracatu over the volcano.

Narciso longamente lavava os pesadelos noturnos
E a depressão imóvel sobre espelhos cegos
Nas águas de Insulândia.
Senile esmorecia e se alumbrava sob as árvores
Vendo-lhe o corpo nu
A pele leitosa tingida pelo sol dos trópicos
A nudez reconciliando-a com a verdade precária da carne.
E o alumbramento se fazia regressão à natura
Agitando o canibal em Senile.
A lei primeva do homem
Reposta no desejo represado de Senile.

Naquela noite
O uivo do Lobo de Pindorama
Crispou de gozo e medo a carne de Senile.
Eis que o possuía a força cega da lei primeva
O desejo de devorar carne da mesma espécie.

Senile abateu-a com três golpes precisos e letais.
A luz da fogueira, queimando no ar deserto de Insulândia,
Cozia a carne retalhada de Narciso.
Senile banqueteou-se até raiar nos mares
A luz enxuta da manhã.
A porção mais deleitável concentrava-se nas coxas.
Mordendo-a e lentamente mastigando-a
Senile sentiu correr-lhe o corpo
O gozo inefável do Lobo
Nunca antes em si sabido ou intuído.

Por fim, saciada a fome
Sugada no poço a gota última
Do êxtase irrepetível
Ouviu Senile o uivo do Lobo de Pindorama:
Sometimes you must be cruel, my dear hunter,
In order to be kind.
Então ele palitou os dentes
E as águas de Insulândia refletiram no fundo azul
A superfície iluminada de um sorriso sagrado.

Insulândia se reconstelou
Nos seus elementos mais puros e inativos.
Reintegrado ao ventre harmônico da ilha
Senile adormeceu sob o brilho das estrelas impassíveis.

Recife, 20 de dezembro de 1999.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Insulândia



Nas águas represadas entre a lua e o farol
Fundou sua ilha chamada Insulândia.
Há muita música no mundo.
As mais belas, e são tantas,
Povoam o ar azul de Insulândia.
Embora ame os homens que deram forma à música
Jamais lhe ocorreu o desejo de conhecê-los
Saber quem são e como vivem.
Ele sabe que o melhor desses homens
A humanidade iluminada que transportam
Vive na música, não na vida que viveram.

Há grandes livros no mundo.
Alguns habitam a biblioteca de Insulândia.
Ele viajou através dessas obras
Nelas fruindo uma forma de mais elevada humanidade.
Os homens que as produziram
Vivem lá fora e longe
Num mundo inacessível a Insulândia.
Ele não viajaria um quilômetro
Sequer atravessaria uma ponte
Para tocar e conhecer esses homens.
Pois os livros de Insulândia cedo o ensinaram:
Esses homens não valem um capítulo ou um verso
Da humanidade que escreveram.

O habitante de Insulândia
Viu e amou muitos quadros.
Espelhados no olhar da memória
Esses quadros se fazem habitantes de Insulândia
Sem que consigo transportem, sequer sugiram,
A mancha de tinta nos dedos que os pintaram
A humana ferramenta que lhes comunicou
Um sopro de vida definitiva.

Há filmes, muitos filmes e peças em Insulândia.
Projetados numa tela privada
Ou ouvidos numa fita que lhe pontua
Frequentes caminhadas através da ilha
Abrem-lhe um horizonte impraticável
No mundo das relações vivas e convividas.

Os luares de Insulândia
Ou o cheiro forte da terra molhada
Trazem-lhe um sopro sofrido de amor e mulher.
Ouve-se então
Na voz da brisa que viaja para o continente
O uivo do lobo deserto
A tristeza da carne ralando o nervo e a epiderme.
Mas cedo se pacifica
E cessa a dor do que falta
E ele se reintegra na memória da carne
Outrora amada e já perdida.
Mas a memória é também um modo de ganho
Atualização do amor e da carne
Sobrevivos no balanço dos bens gastos e retidos.

Insulândia é habitada por um homem
Um único homem.
Desesperançado do semelhante
Falível e insensato como ele
Vem longamente aprendendo
Que o melhor dos homens
Radica nas obras que inventaram.
E o amor mais alto é só memória da carne.

Recife, 12 de Dezembro de 1999.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Shakespeare para leigos



Ron Rosenbaum é uma das grandes expressões do jornalismo cultural. Importaria de pronto ressaltar que me refiro a algo bem distinto do que no Brasil entendemos por jornalismo cultural. Aludo ao jornalismo cultural compreendido na linha da tradição anglo-saxônica, que produziu autores do porte de Mencken, Edmund Wilson, Lionel Trilling, George Orwell, Frank Kermode, Melvyn Bragg, Michael Ignatieff... O que os distingue dos nossos, assim como os biógrafos de lá nitidamente se distinguem dos daqui, é a excelência da formação intelectual, não raro solidamente enraizada numa tradição acadêmica que nunca tivemos nem teremos. Isso explica grosseiramente a excelência do jornalismo cultural praticado em terras anglo-saxônicas. As guerras de Shakespeare, objeto desta resenha, constitui uma expressão singular dessa tradição.

O objetivo substancial de Rosenbaum é traduzir Shakespeare para o entendimento do leigo, de gente como eu e provavelmente como o leitor que me acompanha. Como sabemos, Shakespeare ocupa lugar supremo no cânone da literatura universal. Um dos seus estudiosos mais devotos, Harold Bloom, escreveu em 1998 um livro de mais de 700 páginas no qual escrutina e interpreta o conjunto da sua obra visando provar que ele é simplesmente o inventor do humano (Shakespeare, the invention of the human, título do livro). A tese de Bloom é extremamente ousada, pois consiste na convicção, argumentada ao longo do livro, de que Shakespeare recriou a língua inglesa e, feito ainda mais extraordinário, fundou a noção de natureza humana tal como hoje a compreendemos. Rosenbaum contesta de passagem esta tese qualificando-a simplesmente como tola (ver p. 44). De fato, endossar a tese de Bloom significaria menosprezar todas as extraordinárias invenções literárias e filosóficas anteriores a Shakespeare. Se isso fosse verdade, que lugar Homero, Sófocles, Platão, Virgílio, Dante e tantos outros passariam a ocupar na tradição cultural?

Rosenbaum introduz na obra algumas digressões autobiográficas que nada encerram de complacência narcisista, como é rotineiro na atmosfera cultural em que vivemos. Ele o faz com o propósito de explicar sua desilusão com a carreira e o ambiente acadêmico onde se forjam os altos, complexos, eruditos e não raro bizantinos estudos e interpretações da obra e da vida de Shakespeare. Sua desilusão foi tão grande que, sem meias medidas, assim se expressa:
“Pude experimentar o barato da adrenalina jornalística quando recebi credenciais de imprensa para cobrir a Convenção Democrática de Chicago de 1968 para um diário local. E sair daquele tumulto capaz de mudar a história e voltar ao cinismo barato da cultura acadêmica foi intensamente desanimador. O que havia de errado com aquela gente?, perguntei primeiro. E depois: o que havia de errado comigo? Por que ficava ali?” (p.21).

A citação que acabo de fazer é relevante por me parecer que condensa a orientação intelectual seguida por Rosenbaum e os dois livros mais importantes que escreveu e foram traduzidos no Brasil: Explaining Hitler (título brasileiro: Para entender Hitler) e este que aqui comento. Apesar da sólida formação acadêmica que assimilou, de sua precoce iniciação nos estudos literários e particularmente shakesperianos, Rosenbaum consagrou-se à elaboração de obras que acima qualifiquei como jornalismo cultural e é colaborador de periódicos renomados como New York Times Magazine, The New York Observer e The New Yorker.

O objetivo que o motivou a trabalhar durante sete anos na composição deste livro sobre Shakespeare é o mesmo que antes demoradamente o ocupou na ambiciosa empresa de explicar Hitler. As questões fundamentais que pulsam nas raízes destes dois livros – o que é exatamente shakesperiano, como explicar a singularidade shakesperiana da obra desse gênio supremo e, por outro lado, o que é o mal radical, como explicar o mal em Hitler, o que ele simboliza como expressão da maldade humana? – resultam irrespondidas e são certamente irrespondíveis. Quero dizer, faltam-nos poderes intelectuais e filosóficos, éticos, como queiramos chamá-los, para respostas satisfatórias ou definitivas. Nesse sentido, por razões radicalmente distintas, Shakespeare e Hitler são enigmas que nenhum oráculo tem o poder de decifrar. Este é um dos méritos de ambos os livros: guiar-nos até onde possível através dessas sendas e enigmas insondáveis. O leitor carente de verdades últimas, ou meramente dogmático, pode depreciar obras dessa natureza, ou simplesmente desprezá-las por não lhe fornecerem as certezas cômodas que busca. O leitor que tenho em mente, penso que também Rosenbaum, é um outro, é o leitor que busca, investiga e luta tenazmente com e contra a opacidade dos sentidos humanos para saber até onde é possível saber. Não tenho dúvida de que esse tipo de leitor muito se beneficiará da leitura de ambos os livros de Rosenbaum.

O que ele, Rosenbaum, ambiciona, assim entendo, é traduzir no melhor sentido da obra de jornalismo cultural as questões – ou as guerras, como ele as intitula – que cercam o estudo e o sentido da obra e da vida de Shakespeare. Essas questões ocupam há séculos estudiosos eruditos, especialistas acadêmicos que em alguns casos se debruçam uma vida inteira sobre os textos de Shakespeare visando esclarecer as versões e variações que as circunstâncias históricas impuseram à obra na sua passagem através dos séculos. Para adentrar essa selva, o leitor precisa conhecer conceitos e fatos elementares que o livro generosamente lhe fornece: em que circunstâncias a obra de Shakespeare foi escrita, como os textos eram impressos na sua época, o que é edição em Quarto, Fólio e coisas afins. Outras questões por ele minuciosamente abordadas: qual o verdadeiro Hamlet? Qual é a verdadeira última fala do rei Lear no fecho da tragédia, quando retém nos braços moribundos o corpo de Cordélia, sua filha adorada? A essas e muitas outras questões relativas à obra, ao texto e seu significado acrescentam-se as questões de fundo biográfico que prendem e apaixonam os estudiosos. Como sabemos, até Freud entrou nessa dança ao atribuir a Shakespeare uma identidade e posição social comprovadamente ficcionais.

Já de partida, Rosenbaum adota a posição que me parece correta diante da relação entre o autor e a obra, a biografia e o texto. A prioridade que ressalta é a obra. A biografia importa apenas na medida em que concorre para esclarecê-la. Ademais, a vida de Shakespeare foi muito nebulosa. Embora exista já uma infinidade de biografias suas (bastaria dizer que eu, um leigo apaixonado, possuo cinco), muito da sua vida é simplesmente ignorado, ou objeto de especulações, umas engenhosas, outras apenas delirantes. A qualidade da adaptação cinematográfica de um curto período da sua vida contido no filme Shakespeare in Love, escrito por Tom Stoppard e Marc Norman, e o sucesso extraordinário alcançado por este filme, premiado aliás com sete Oscars relativos a algumas das categorias mais prestigiosas do prêmio, concorreu para ampliar o interesse constante pela vida e a obra de Shakespeare. Na verdade, segundo palavras do próprio Rosenbaum, o sucesso alcançado por este filme deflagrou uma autêntica moda shakesperiana.

Como convém ao espírito do tempo, importa salientar que a obra de Shakespeare, em termos de vendagem e influência, é segunda apenas para a Bíblia. Além do fato de haver produzido uma obra que no conjunto é de uma genialidade singular e objetivamente incomparável, Shakespeare é beneficiado pela circunstância de ser antes de tudo um autor dramático, um autor da literatura que é escrita com o fim último e fundamental de ser representada. Portanto, a disseminação universal da tecnologia audiovisual contribuiu de forma decisiva para difundir sua obra numa escala inconcebível para qualquer outro gênio da literatura narrativa, aquela produzida antes de tudo para ser lida.

Como conceber, por exemplo, a obra de gênios como Cervantes, Dostoiévski, Charles Dickens, Marcel Proust, Tolstói, Henry James, Machado de Assis, Joseph Conrad e tantos outros para o cinema hoje transportado, graças ao DVD, para dentro de nossas casas? É claro que todos os autores que acabo de citar tiveram parte da sua obra adaptada para o cinema. Mas como comparar Guerra e Paz, por exemplo, com qualquer das medíocres adaptações de que já foi vítima? Não importando o gênio de quem os transporte para a tela ou o palco, a grandeza desses autores reside na forma irredutível das narrativas que genialmente criaram. Essa forma não tem simplesmente correspondente audiovisual. Ora, Shakespeare é nesse sentido, dada a razão aqui exposta, um privilegiado. Portanto, o lugar único que ocupa na história da arte e da cultura universal somente seria ameaçado se o público mais cultivado que existe trocasse a sua obra impressa, e sobretudo representada, pelo feijão com arroz melodramático que a televisão todos os dias oferece à massa dos telespectadores.

Voltando ao livro, se é que dele indevidamente saí, o mérito maior de Rosenbaum consiste em traduzir no estilo e na linguagem do melhor jornalismo cultural as “guerras” que cercam a obra e a vida de Shakespeare. Travadas com paixão e devoção maníaca nos círculos rarefeitos da alta cultura acadêmica, lastreada em métodos e sobretudo linguagem e estilo de composição impermeáveis ao leigo, elas escapam à compreensão e ao interesse do público geral. O objetivo de Rosenbaum é, portanto, erguer uma ponte entre os altos círculos da erudição shakesperiana e o leigo culto, o apreciador da obra que, não obstante autenticamente a ela vinculado, compreende-a e traduz numa dimensão muito distinta daquela forjada pelo especialista erudito. Convém lembrar, a esse propósito, que a mera intencionalidade da obra que ressalto neste parágrafo é por si só digna do mais alto apreço.

Talvez o mérito maior da tradição do jornalismo cultural que tende a progressivamente desaparecer, a tradição espelhada na obra dos jornalistas culturais mencionados no parágrafo inicial desta resenha, consistisse na consciência que tinham esses escritores e críticos de exercerem uma função cultural formativa de incalculável efeito democratizador da cultura. Eles eram, noutras palavras, mediadores esclarecidos, herdeiros portanto da melhor tradição iluminista, entre a obra e o público leigo, o público culto, sinceramente devotado aos valores da cultura intelectual, mas por variadas circunstâncias incapacitado de dominar os códigos originários complexos da tradição intelectual e estética. Essa questão tornou-se nitidamente crucial no momento, entre os fins do século 19 e as primeiras décadas do século 20, quando irromperam os movimentos de vanguarda na literatura, na pintura, na música, teatro... Foi nesse contexto que críticos como Edmund Wilson, bastaria pensar nesta obra fundamental da crítica literária que é Axel´s Castle, exerceram um papel decisivo no sentido de tornar as obras do alto modernismo literário compreensíveis ao leigo.

Devido a razões culturais complexas que não posso considerar nesta resenha, essa figura do intelectual público tende a desaparecer. Uma das razões desse desaparecimento decorre dos processos de especialização acadêmica que converteram o intelectual num funcionário preso a critérios de produção e avaliação que, em termos práticos, dissociaram sua atividade intelectual da sociedade, notadamente daquele leitor em larga medida formado e orientado por intelectuais públicos ou jornalistas culturais do tipo acima citado. Talvez a melhor ilustração desse meu argumento no contexto cultural brasileiro seja Otto Maria Carpeaux. Intelectual de origem e formação europeia, Carpeaux transportou para o Brasil toda a sua extraordinária erudição e generosamente disseminou-a nas páginas dos periódicos brasileiros durante décadas. É difícil avaliar a importância preciosa de tudo que dele herdamos.

Ao escrever obras como Para entender Hitler e As guerras de Shakespeare, Ron Rosenbaum felizmente demonstra que essa tradição não foi extinta; demonstra, noutras palavras, que é possível traduzir muitas das questões complexas que cercam a obra e a vida de Shakespeare em termos acessíveis ao leigo. Convém todavia alertar o leitor para o fato de que, não obstante tudo que nesse sentido realiza ao longo dessa obra volumosa, Rosenbaum não tem como poupar o leitor de muitas páginas tecidas de minúcias e especulações que honestamente me parecem irrelevantes, ou apenas interessantes para quem se compraz com as bizantinices e xaropadas da erudição estéril.

Ron Rosenbaum. As guerras de Shakespeare. Tradução: Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Liberdade e identidade



Meus sentimentos de estrangeiro tendem a acentuar-se durante o carnaval. Sendo uma das mais profundas e extensivas expressões da cultura brasileira, portanto um dos seus momentos de suprema integração social, não é de estranhar que estados subjetivos dessa natureza se agravem imprimindo transparência à linha fronteiriça entre o eu e o outro coletivo, entre minha brasilidade gauche, sempre distanciada e dissonante, e o espírito gregário e ruidoso do povo brasileiro.

Isso se repete, em tom às vezes ainda mais exacerbado, durante a Copa do Mundo. Este, aliás, será um ano – junho e julho, mais exatamente – que me submeterá a mais uma dessas provas de brasilidade a contrapelo, de celebração futebolística contrafeita, já que sempre vivida com reserva, quando não com franca resistência à integração dissoluta no corpo da massa infranqueável ao exercício da individualidade e da alteridade.

Meu estranhamento desdobra-se ainda nas festas de fim de ano, além dos festejos do meio do ano, como é o caso das festas juninas que já tive a esperança de ver superadas pela dinâmica urbana do país. A mídia e a indústria da publicidade, entretanto, operaram recentemente no sentido de ativá-las integrando-as ao circuito do consumo e deslocando-as dos arraiais e da geografia rural para os shopping centers; para o cerne, portanto, do espaço onde se desenvolve a cultura urbana. Fenômenos dessa natureza sugerem a complexidade da dinâmica sociocultural do capitalismo em países do tipo do Brasil.

Será necessariamente negativo ou indesejável o estado de estranhamento dentro do meu próprio país? Minha amiga Vivian Schelling, culturalmente dividida numa linha de intersecção simbólica que compreende Alemanha, Espanha, Inglaterra e Brasil, muitas vezes se queixou nas nossas conversas londrinas da sua personalidade culturalmente dividida. Talvez por isso tanto se voltasse para o seu curto passado brasileiro, vivido entre o Rio e São Paulo, tingindo-o com cores idealizadoras.

Será assim indesejável ou negativo esse processo de interna divisão cultural? Se todos tendessem a comportar-se como Vivian, diria que o mundo contemporâneo, pelo menos o ocidental, estaria saturado da infelicidade gerada pela divisão cultural das personalidades. Dado isso como um fato, seria igualmente compreensível a representação regressiva e idealizadora do passado pré-moderno. Foscamente dividido por essas fronteiras que demarcam a linha da modernidade e a da pré-modernidade, o Brasil se prestaria a acomodar na sua geografia cultural o olhar nostálgico do pós-modernista contrafeito.

Recuando entretanto para a modesta e palpável dimensão da minha subjetividade, não me vejo como um infeliz ou carente de identidade socialmente integrada. Sem pretender subestimar o fardo que é viver regido por valores que não alcançam o estatuto de valor dominante na minha cultura de origem, sempre discriminei esse peso negativo do positivo. Tanto quanto aquele, este se constitui na expressão da minha personalidade como consequência muitas vezes consciente e até previsível dos conflitos implícita ou explicitamente travados no cerne da minha subjetividade que compreende valores coletivos, alguns imperativos, mas também valores individualmente selecionados.

É nessa linha de tensão em que se relacionam o eu-Fernando e o outro-coletivo que se define a minha subjetividade. Antes de concebê-la como mera expressão individual e reflexa da sociedade, aprendi que é possível investir-me do poder e da liberdade de traçar uma linha de diferença e individualidade diante dos mecanismos sociais tendentes a produzir o conformismo e a indiferenciação. Dependo evidentemente da sociedade em que vivo para me constituir enquanto entidade autônoma e individualizada sem que entretanto isso de modo algum pressuponha o consentimento ou dócil aderência aos valores dominantes.

Se um homem não é capaz de demarcar sua diferença contra o outro coletivo, não pode legitimamente falar de si próprio como um ser livre. É por isso que um dos problemas mais inquietantes da cultura contemporânea, regida pelas agências geradoras dos valores difundidos em alta e sistemática escala pela mídia, é a ilusão da autonomia e da liberdade individual. Digo ilusão porque a noção de liberdade vendida pela mídia é objetivamente uma forma de conformismo e escravização aos ditames do mercado. Seja você mesmo: beba coca-cola. Esta frase, mote publicitário do produto que anuncia, sintetiza à perfeição o que intento traduzir neste parágrafo.

Essa cultura da mídia, fundada no princípio da permissividade, da completa dessacralização dos valores coletivos, exerce a forma mais insidiosa de dominação, já que é abstrata e assim nunca se materializa num indivíduo ou instância concreta. Costumo ainda hoje lembrar um episódio que tipifica este fenômeno. Quando ensinava sociologia no curso de arquitetura da UFPE costumava selecionar alguns filmes para debatê-los com os alunos. Vimos, certa vez, Sociedade dos poetas mortos (Dead Poets Society). Um dos alunos, aliás dos mais inteligentes da turma, observou que a diferença essencial entre a escola tradicional retratada no filme e a contemporânea consistia no fato de que naquela os alunos não eram livres, enquanto o eram nesta.

Ora, o que o episódio ilustra é a crença espontânea na liberdade. Dissolvendo o princípio necessário da autoridade no seio da permissividade mercadológica, a mídia despersonaliza a liberdade dissociando-a de qualquer forma concreta de autoridade. Lembrei ao meu aluno que uma das características positivas da sociedade tradicional residia no fato de a autoridade se encarnar na figura concreta do pai, da mãe, do professor, etc. Na medida em que era visível e concreta, era por conseguinte mais fácil identificá-la e opor-lhe resistência, sobretudo nas circunstâncias em que deixava de ser autoridade para converter-se em dominação autoritária.

O próprio processo de conquista da identidade individual, um fato imperativo na vida de qualquer pessoa formada nos quadros da cultura ocidental, me parece que resultava menos problemático no âmbito de uma cultura em que a autoridade estava concretamente materializada na ação de alguns agentes sociais básicos. Na medida porém em que a autoridade tende a se tornar abstrata dissolvendo-se na ideologia da permissividade, que nunca se pronuncia no imperativo nem é veiculada por agentes identificáveis com a autoridade indesejada e hostilizável, a sensação de desorientação e impotência, sobretudo do jovem, tende a acentuar-se. Falando de modo interrogativamente concreto: contra quem conquistarei minha liberdade? A quem opor minha resistência e meu desejo de afirmação individual, minha sede de liberdade, em suma? Como reivindicar minha liberdade numa cultura onde pai e mãe não apenas estão esvaziados de autoridade, mas se tornaram presas dóceis, meros financiadores da liberdade mercadológica?

Ser livre hoje talvez signifique a recusa de ir ao shopping center comportando-se como o avesso da máquina dócil imantada à engrenagem do guichê e do cartão de crédito. Ser livre hoje talvez signifique dizer não ao carnaval, ou antes brincá-lo sem subordinar-se aos invisíveis mecanismos de pressão que nos reduzem a um número estatístico ou a uma cota negociada no mercado de ações, ou ainda a um flash sonhado na telinha da rede Globo.Ser livre talvez signifique ser ninguém ou nada no caldeirão antropofágico do capitalismo de consumo, variante tropical, Pernambuco, Brasil.

Diário - Recife, 22 de Fevereiro de 1998.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Solange longe



Na tarde um sino tange
E andam cantigas da infância.
Na tarde andas, Solange
E és bem maior que a distância.

Queria a luz da poesia
Que a alma recolhe e tange
E no silêncio irradia
Teu claro nome, Solange.

Mas tão calado e pequeno
Tão de ti perto e tão longe
Que meu insensato aceno
Nunca te alcança, Solange.

E voas para Paris
Para longe, muito longe.
Meu coração sem país
Quer um país: é Solange.

Que dilatada fronteira
Cinge o humano destino
Andas ausente e inteira
Partes no bronze do sino.

Na tarde um murmúrio tenso
De morte, talvez de vida
E eu sem país sigo e penso
Que meu nome é despedida.

São Paulo, outubro de 1979.