Ron Rosenbaum é uma das grandes expressões do jornalismo cultural. Importaria de pronto ressaltar que me refiro a algo bem distinto do que no Brasil entendemos por jornalismo cultural. Aludo ao jornalismo cultural compreendido na linha da tradição anglo-saxônica, que produziu autores do porte de Mencken, Edmund Wilson, Lionel Trilling, George Orwell, Frank Kermode, Melvyn Bragg, Michael Ignatieff... O que os distingue dos nossos, assim como os biógrafos de lá nitidamente se distinguem dos daqui, é a excelência da formação intelectual, não raro solidamente enraizada numa tradição acadêmica que nunca tivemos nem teremos. Isso explica grosseiramente a excelência do jornalismo cultural praticado em terras anglo-saxônicas. As guerras de Shakespeare, objeto desta resenha, constitui uma expressão singular dessa tradição.
O objetivo substancial de Rosenbaum é traduzir Shakespeare para o entendimento do leigo, de gente como eu e provavelmente como o leitor que me acompanha. Como sabemos, Shakespeare ocupa lugar supremo no cânone da literatura universal. Um dos seus estudiosos mais devotos, Harold Bloom, escreveu em 1998 um livro de mais de 700 páginas no qual escrutina e interpreta o conjunto da sua obra visando provar que ele é simplesmente o inventor do humano (Shakespeare, the invention of the human, título do livro). A tese de Bloom é extremamente ousada, pois consiste na convicção, argumentada ao longo do livro, de que Shakespeare recriou a língua inglesa e, feito ainda mais extraordinário, fundou a noção de natureza humana tal como hoje a compreendemos. Rosenbaum contesta de passagem esta tese qualificando-a simplesmente como tola (ver p. 44). De fato, endossar a tese de Bloom significaria menosprezar todas as extraordinárias invenções literárias e filosóficas anteriores a Shakespeare. Se isso fosse verdade, que lugar Homero, Sófocles, Platão, Virgílio, Dante e tantos outros passariam a ocupar na tradição cultural?
Rosenbaum introduz na obra algumas digressões autobiográficas que nada encerram de complacência narcisista, como é rotineiro na atmosfera cultural em que vivemos. Ele o faz com o propósito de explicar sua desilusão com a carreira e o ambiente acadêmico onde se forjam os altos, complexos, eruditos e não raro bizantinos estudos e interpretações da obra e da vida de Shakespeare. Sua desilusão foi tão grande que, sem meias medidas, assim se expressa:
“Pude experimentar o barato da adrenalina jornalística quando recebi credenciais de imprensa para cobrir a Convenção Democrática de Chicago de 1968 para um diário local. E sair daquele tumulto capaz de mudar a história e voltar ao cinismo barato da cultura acadêmica foi intensamente desanimador. O que havia de errado com aquela gente?, perguntei primeiro. E depois: o que havia de errado comigo? Por que ficava ali?” (p.21).
A citação que acabo de fazer é relevante por me parecer que condensa a orientação intelectual seguida por Rosenbaum e os dois livros mais importantes que escreveu e foram traduzidos no Brasil: Explaining Hitler (título brasileiro: Para entender Hitler) e este que aqui comento. Apesar da sólida formação acadêmica que assimilou, de sua precoce iniciação nos estudos literários e particularmente shakesperianos, Rosenbaum consagrou-se à elaboração de obras que acima qualifiquei como jornalismo cultural e é colaborador de periódicos renomados como New York Times Magazine, The New York Observer e The New Yorker.
O objetivo que o motivou a trabalhar durante sete anos na composição deste livro sobre Shakespeare é o mesmo que antes demoradamente o ocupou na ambiciosa empresa de explicar Hitler. As questões fundamentais que pulsam nas raízes destes dois livros – o que é exatamente shakesperiano, como explicar a singularidade shakesperiana da obra desse gênio supremo e, por outro lado, o que é o mal radical, como explicar o mal em Hitler, o que ele simboliza como expressão da maldade humana? – resultam irrespondidas e são certamente irrespondíveis. Quero dizer, faltam-nos poderes intelectuais e filosóficos, éticos, como queiramos chamá-los, para respostas satisfatórias ou definitivas. Nesse sentido, por razões radicalmente distintas, Shakespeare e Hitler são enigmas que nenhum oráculo tem o poder de decifrar. Este é um dos méritos de ambos os livros: guiar-nos até onde possível através dessas sendas e enigmas insondáveis. O leitor carente de verdades últimas, ou meramente dogmático, pode depreciar obras dessa natureza, ou simplesmente desprezá-las por não lhe fornecerem as certezas cômodas que busca. O leitor que tenho em mente, penso que também Rosenbaum, é um outro, é o leitor que busca, investiga e luta tenazmente com e contra a opacidade dos sentidos humanos para saber até onde é possível saber. Não tenho dúvida de que esse tipo de leitor muito se beneficiará da leitura de ambos os livros de Rosenbaum.
O que ele, Rosenbaum, ambiciona, assim entendo, é traduzir no melhor sentido da obra de jornalismo cultural as questões – ou as guerras, como ele as intitula – que cercam o estudo e o sentido da obra e da vida de Shakespeare. Essas questões ocupam há séculos estudiosos eruditos, especialistas acadêmicos que em alguns casos se debruçam uma vida inteira sobre os textos de Shakespeare visando esclarecer as versões e variações que as circunstâncias históricas impuseram à obra na sua passagem através dos séculos. Para adentrar essa selva, o leitor precisa conhecer conceitos e fatos elementares que o livro generosamente lhe fornece: em que circunstâncias a obra de Shakespeare foi escrita, como os textos eram impressos na sua época, o que é edição em Quarto, Fólio e coisas afins. Outras questões por ele minuciosamente abordadas: qual o verdadeiro Hamlet? Qual é a verdadeira última fala do rei Lear no fecho da tragédia, quando retém nos braços moribundos o corpo de Cordélia, sua filha adorada? A essas e muitas outras questões relativas à obra, ao texto e seu significado acrescentam-se as questões de fundo biográfico que prendem e apaixonam os estudiosos. Como sabemos, até Freud entrou nessa dança ao atribuir a Shakespeare uma identidade e posição social comprovadamente ficcionais.
Já de partida, Rosenbaum adota a posição que me parece correta diante da relação entre o autor e a obra, a biografia e o texto. A prioridade que ressalta é a obra. A biografia importa apenas na medida em que concorre para esclarecê-la. Ademais, a vida de Shakespeare foi muito nebulosa. Embora exista já uma infinidade de biografias suas (bastaria dizer que eu, um leigo apaixonado, possuo cinco), muito da sua vida é simplesmente ignorado, ou objeto de especulações, umas engenhosas, outras apenas delirantes. A qualidade da adaptação cinematográfica de um curto período da sua vida contido no filme Shakespeare in Love, escrito por Tom Stoppard e Marc Norman, e o sucesso extraordinário alcançado por este filme, premiado aliás com sete Oscars relativos a algumas das categorias mais prestigiosas do prêmio, concorreu para ampliar o interesse constante pela vida e a obra de Shakespeare. Na verdade, segundo palavras do próprio Rosenbaum, o sucesso alcançado por este filme deflagrou uma autêntica moda shakesperiana.
Como convém ao espírito do tempo, importa salientar que a obra de Shakespeare, em termos de vendagem e influência, é segunda apenas para a Bíblia. Além do fato de haver produzido uma obra que no conjunto é de uma genialidade singular e objetivamente incomparável, Shakespeare é beneficiado pela circunstância de ser antes de tudo um autor dramático, um autor da literatura que é escrita com o fim último e fundamental de ser representada. Portanto, a disseminação universal da tecnologia audiovisual contribuiu de forma decisiva para difundir sua obra numa escala inconcebível para qualquer outro gênio da literatura narrativa, aquela produzida antes de tudo para ser lida.
Como conceber, por exemplo, a obra de gênios como Cervantes, Dostoiévski, Charles Dickens, Marcel Proust, Tolstói, Henry James, Machado de Assis, Joseph Conrad e tantos outros para o cinema hoje transportado, graças ao DVD, para dentro de nossas casas? É claro que todos os autores que acabo de citar tiveram parte da sua obra adaptada para o cinema. Mas como comparar Guerra e Paz, por exemplo, com qualquer das medíocres adaptações de que já foi vítima? Não importando o gênio de quem os transporte para a tela ou o palco, a grandeza desses autores reside na forma irredutível das narrativas que genialmente criaram. Essa forma não tem simplesmente correspondente audiovisual. Ora, Shakespeare é nesse sentido, dada a razão aqui exposta, um privilegiado. Portanto, o lugar único que ocupa na história da arte e da cultura universal somente seria ameaçado se o público mais cultivado que existe trocasse a sua obra impressa, e sobretudo representada, pelo feijão com arroz melodramático que a televisão todos os dias oferece à massa dos telespectadores.
Voltando ao livro, se é que dele indevidamente saí, o mérito maior de Rosenbaum consiste em traduzir no estilo e na linguagem do melhor jornalismo cultural as “guerras” que cercam a obra e a vida de Shakespeare. Travadas com paixão e devoção maníaca nos círculos rarefeitos da alta cultura acadêmica, lastreada em métodos e sobretudo linguagem e estilo de composição impermeáveis ao leigo, elas escapam à compreensão e ao interesse do público geral. O objetivo de Rosenbaum é, portanto, erguer uma ponte entre os altos círculos da erudição shakesperiana e o leigo culto, o apreciador da obra que, não obstante autenticamente a ela vinculado, compreende-a e traduz numa dimensão muito distinta daquela forjada pelo especialista erudito. Convém lembrar, a esse propósito, que a mera intencionalidade da obra que ressalto neste parágrafo é por si só digna do mais alto apreço.
Talvez o mérito maior da tradição do jornalismo cultural que tende a progressivamente desaparecer, a tradição espelhada na obra dos jornalistas culturais mencionados no parágrafo inicial desta resenha, consistisse na consciência que tinham esses escritores e críticos de exercerem uma função cultural formativa de incalculável efeito democratizador da cultura. Eles eram, noutras palavras, mediadores esclarecidos, herdeiros portanto da melhor tradição iluminista, entre a obra e o público leigo, o público culto, sinceramente devotado aos valores da cultura intelectual, mas por variadas circunstâncias incapacitado de dominar os códigos originários complexos da tradição intelectual e estética. Essa questão tornou-se nitidamente crucial no momento, entre os fins do século 19 e as primeiras décadas do século 20, quando irromperam os movimentos de vanguarda na literatura, na pintura, na música, teatro... Foi nesse contexto que críticos como Edmund Wilson, bastaria pensar nesta obra fundamental da crítica literária que é Axel´s Castle, exerceram um papel decisivo no sentido de tornar as obras do alto modernismo literário compreensíveis ao leigo.
Devido a razões culturais complexas que não posso considerar nesta resenha, essa figura do intelectual público tende a desaparecer. Uma das razões desse desaparecimento decorre dos processos de especialização acadêmica que converteram o intelectual num funcionário preso a critérios de produção e avaliação que, em termos práticos, dissociaram sua atividade intelectual da sociedade, notadamente daquele leitor em larga medida formado e orientado por intelectuais públicos ou jornalistas culturais do tipo acima citado. Talvez a melhor ilustração desse meu argumento no contexto cultural brasileiro seja Otto Maria Carpeaux. Intelectual de origem e formação europeia, Carpeaux transportou para o Brasil toda a sua extraordinária erudição e generosamente disseminou-a nas páginas dos periódicos brasileiros durante décadas. É difícil avaliar a importância preciosa de tudo que dele herdamos.
Ao escrever obras como Para entender Hitler e As guerras de Shakespeare, Ron Rosenbaum felizmente demonstra que essa tradição não foi extinta; demonstra, noutras palavras, que é possível traduzir muitas das questões complexas que cercam a obra e a vida de Shakespeare em termos acessíveis ao leigo. Convém todavia alertar o leitor para o fato de que, não obstante tudo que nesse sentido realiza ao longo dessa obra volumosa, Rosenbaum não tem como poupar o leitor de muitas páginas tecidas de minúcias e especulações que honestamente me parecem irrelevantes, ou apenas interessantes para quem se compraz com as bizantinices e xaropadas da erudição estéril.
Ron Rosenbaum. As guerras de Shakespeare. Tradução: Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011.
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