segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A Valsa de Jobim


Quando em teus braços dançava
A valsa de Tom Jobim
A vida se iluminava
Na festa e dentro de mim.

Quando na noite te amava
Inconsciente do fim
Sempre em teus braços lembrava
A valsa de Tom Jobim.

Quando por fim te perdi
E a noite baixou em mim
Quanto mais triste sofri
Mais consolou-me Jobim.

Tudo passou e no entanto
A valsa ficou em mim
Como se a perda no canto
Salvasse você em mim.
22 de outubro 2014.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

No Mural do Facebook


A morte de Nicolau Sevcenko
Em meio à comoção nacional provocada pela morte chocante de Eduardo Campos, tomo conhecimento, graças uma postagem de Randal Johnson, da morte de Nicolau Sevcenko. Ambos morreram no mesmo dia. É compreensível que a repercussão da morte de Eduardo Campos praticamente reduza a de Sevcenko a uma reportagem de pé de página, se posso me valer desta metáfora grosseira. Ainda assim, ou sobretudo por isso, importa ressaltar aqui a importância da sua obra. Tive apenas dois encontros com Sevcenko: o primeiro na Universidade de Londres, quando ele fazia seu pós-doutorado dividindo sala com Eric Hobsbawm; o segundo, alguns anos mais tarde em São Paulo, quando o procurei na sua sala da USP. Embora mal o tenha conhecido, marcou-me a memória sua cultura exposta sem afetação numa conversa casual, assim como seu espírito acolhedor e amável. O Brasil perde um grande historiador, um dos mais notáveis no âmbito da história cultural. (14 de agosto 2014)

Racionalidade e paixão:
Penso ser muito difícil articular um discurso racional na tribuna livre que são as redes sociais. As pessoas se manifestam sobre tudo, opinam irrefletidamente sobre tudo, em particular sobre temas que provocam reações passionais imediatas: política, religião, família, sexo, preconceito etc. Não bastasse a natureza intrínseca dos temas, a irracionalidade e a intolerância das opiniões é agravada pela leviandade com que muitos opinam, leviandade que com freqüência desliza para o desrespeito grosseiro. Por isso reluto sempre em entrar nessas discussões. Ao invés de concorrerem para o entendimento e a opinião esclarecida e isenta, servem apenas para agravar nossa intolerância e os preconceitos que tantos supostamente combatem.
Observando melhor, quase tudo acaba em repetição de clichê. As pessoas ficam repisando a frase dita por Eduardo Campos: “Não vamos desistir do Brasil” com o mesmo automatismo mimético dos que repetiam a frase sem sentido de Galvão Bueno quando o Brasil foi desclassificado pela França: “Faltou atitude”. Um povo politicamente organizado, e é isso o que mais importa para mudar verdadeiramente o Brasil, é um povo que pensa e ao pensar conquista sua autonomia. Confesso pensar que estamos muito longe disso. A forma como reagimos à morte chocante e dolorosa de Eduardo Campos constitui, antes de tudo, uma evidência da nossa orfandade política, da nossa incapacidade de nos organizarmos para além das figuras míticas do Mártir, do Salvador, do Pai protetor. No avesso disto, como é próprio do discurso maniqueísta, elegemos as figuras do Tirano, do Conspirador, do Pai punitivo. Ousar pensar, como dizia Kant, não é uma palavra de ordem. Ninguém pensa obedecendo a palavras de ordem. Ousar pensar é exatamente o contrário disso. Ousar pensar é educar-se para a autonomia, a coragem de ser e viver de acordo com convicções próprias. Conheço raríssimas pessoas capazes disso. (19 de agosto 2014)

A cegueira da paixão
Há alguns dias postei um comentário geral considerando a relação entre razão e paixão. Os comentários que provocou ajudaram-me a esclarecer melhor meu pensamento, além de os próprios comentadores melhorarem ou explicitarem melhor o que intentei dizer. Debate que se desdobra nestes termos me parece necessário e educativo para nossos livres exercícios de discussão nas redes sociais. É movido ainda por essa intenção que retomo o assunto afirmando que há muito desisti de discutir opinião política que não passa de cegueira da paixão. Dando um exemplo concreto, e ainda em curso no Facebook, acompanhei as repercussões e interpretações da série de entrevistas realizadas pelo Jornal Nacional com os principais candidatos à presidência da República. É impressionante como as opiniões se contradizem. Dão até a impressão, quando salto de um partidário para outro, que falam de assuntos antagônicos ou de algo que simplesmente não vi. Em circunstâncias dessa natureza, acho que debater é pura perda de tempo, argumentar para ir a lugar nenhum. Se não obedecemos a um critério mínimo de consenso entre realidade objetiva e opinião, a discussão perde sentido e com freqüência serve apenas para agravar mal-entendido e intolerância.
Comentando meu post acima mencionado, Ester Aguiar observou que a política é feita de paixão. Concordo, mas faço uma ligeira correção: sem dúvida, a paixão prevalece na política, mas ela precisa ser sempre temperada pela razão, pelo exercício da argumentação crítica. Do contrário, tudo acabaria em divergência insolúvel. Se as partes envolvidas não convergem num consenso mínimo sobre a natureza do que se discute, tudo acaba em opiniões que se anulam, isto é, a minha opinião vale tanto quanto a que nega a minha. Infelizmente, não posso demonstrar melhor essas apreciações abstratas cotejando as entrevistas do Jornal Nacional com uma amostragem significativa das reações que suscitaram. Portanto, confio na reflexão que o leitor crítico poderá fazer a partir do meu ponto final. (21 de agosto 2014)

O voto da necessidade
Há quem se surpreenda, ou simplesmente não compreenda, o fato de Dilma Roussef continuar subindo nas pesquisas de intenção de voto. A julgar pelos dados dessas pesquisas, a reeleição de Dilma é praticamente certa. Isso ocorre num contexto de crise econômica evidente. Basta conferir os próprios dados oficiais, escândalos de corrupção, antes de tudo o saque colossal aos fundos da Petrobrás, e o agravamento dos nossos problemas crônicos: saúde, educação, transporte, mobilidade urbana, violência crescente e outras pragas. Por que no entanto Dilma continua subindo? Porque grande parte dos brasileiros vota ainda atada ao cabresto da necessidade. Trocando em miúdos, o Bolsa Família continuará sendo a fonte de legitimidade eleitoral do PT. É razoável que sob o arrocho da necessidade o povo seja e continue indiferente aos problemas que somente importam para a fração esclarecida e privilegiada da sociedade. Enquanto tivermos um povo excluído dos benefícios efetivos da modernidade, quem lhe garantir o pão e o circo da necessidade continuará empunhando as armas do poder. Quanto à civilização, talvez no século 21, se o Brasil e o mundo ainda existirem. (2 de outubro 2014)

O voto da necessidade II
Neste país do atraso
É sempre a necessidade
O que decide eleição.
Por isso o Bolsa Família
É o partido maravilha
Do povo de pé no chão.

O voto de consciência
Com sua fé ou ciência
Com seu motivo ou razão
É sempre minoritário.
Embora seja tão vário
Nunca ganhou eleição.

Portanto, a eleição real
Com o seu bem e o seu mal
Vai ser na urna o que é.
O sonho é a esperança
Que nunca na vida alcança
Os fatos dos quais dou fé.
(4 de outubro 2014)

Inocência ou autoengano?
Prometi-me não mais me meter nas disputas políticas dos facebuqueiros. Lembrando o verso de Dante: guarda e passa. Mas a inocência ou autoengano com que tantos discutem e brigam por candidatos e partidos é tão absorvente quanto foi a torcida durante a Copa do Mundo. Pois é, o espírito é o mesmo e por ser o mesmo minha comparação é intencional. Não sei se as pessoas estão falando do que não sabem ou preferem a consolação do autoengano. Hoje Anco Márcio Tenório Vieira postou no mural uma reportagem publicada na Folha de S. Paulo que diz o que o eleitor informado, bem poucos, já sabe. Não importa o fato de Dilma Roussef ou Aécio Neves vencer. Os reais vencedores serão os de sempre: as grandes empresas financiadoras, notadamente as empreiteiras, que são de resto as grandes corruptoras do Brasil. Quantas vezes foram sequer investigadas? Bolsa Família é um paliativo que garante o voto dos milhões de necessitados. Quanto às grandes reformas, dívida histórica do Brasil, continuarão sendo objeto de lero-lero de campanha eleitoral. Já sei de cor todo esse discurso. Quem quer ver a realidade já sabe, pois desde a minha infância ouço os políticos prometendo investir no que de fato importa: saúde, educação, transporte, segurança, infraestrutura produtiva...
Quem fala em reforma do Estado? Quem tem ideia do que deveria ser? Quem fala em reforma fiscal e urbana quando vivemos em cidades que são verdadeiros acampamentos urbanos? Quem fala em reforma política num país cuja democracia representativa tem 32 partidos políticos? Isso não é democracia, é circo ideológico. Os governos continuam sendo prepostos das montadoras e empreiteiras que devastam o que antes conseguimos construir como cidade digna deste termo. Mas todo mundo aqui no Facebook continua torcendo e brigando como se Dilma e Aécio fossem dois times antagônicos. Os torcedores do futebol, pelo menos, não caem na ilusão de supor que a vitória do seu time vai mudar o Brasil. O que os move é a paixão pelo futebol. Nosso eleitor de Facebook, no entanto, repisa a cada eleição a ilusão de que o seu Fla ou o seu Flu vai mudar o Brasil. O Brasil vai continuar sendo o bananão que sempre foi, isto é, muda pontualmente aqui e ali, mas o enredo básico continua sendo o mesmo. Como não suportamos encarar essa realidade, nem lutar adequadamente para transformá-la, continuamos encenando esse grande circo carnavalesco a cada eleição. Prefiro o futebol, que pelo menos não finge ser algo além de circo. (9 de outubro 2014)

O Debate Político nas Redes Sociais
A qualidade do debate eleitoral que há meses envenena as redes sociais ratifica uma verdade que poucas pessoas se dispõem a admitir: nossos governantes têm a cara de quem os elege. Se eu ainda precisasse de uma razão para continuar fiel a meu ceticismo, veria cinco minutos de debate entre os candidatos ou leria a sério as promessas que fazem, tão velhas quanto nossas mazelas insolúveis. Lendo de passagem muitos dos ataques que partidários de Dilma lançam contra Aécio, e vice-versa, lembrei-me do que diziam de um velho corrupto: o político paulista Ademar de Barros. Maluf é seu herdeiro, assim como muitos de todas as partes e partidos do Brasil. Diziam que Ademar roubava, mas fazia. Uma variante inconfessada da nossa leniência ou cumplicidade com a corrupção é esta: o PT é corrupto, mas o PSDB é muito mais – e vice-versa, claro. Quando as pessoas debatem apoiando-se implicitamente neste argumento, que mais dizer? Diante disso, talvez convenha conferir legalidade à corrupção. Assim os corruptos seriam poupados dos linchamentos e mentiras de que tanto se queixam, ofensivos à respeitável imagem social que querem ostentar. Vamos organizar um movimento para legalizar a corrupção, gente. Assim todos nos entenderemos e ninguém precisará mentir tanto para fingir ser o que não é. (17 de outubro 2014)

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Águas Atlânticas


I - O Vento

Amo o vento.
O rumor do vento nos coqueirais.
Amo a memória do vento
O retinir dos cristais.
O vento sopro de um tempo
Carne gemente no cais.
Amo o que o vento carrega
Nódoa do fim
Nunca mais.

II – O Vento

O vento não tem memória
Em mim é que ela se faz.
O vento é só o vento que sopra.
Sou eu quem nele projeta
Memória, desejo e o mais
Que o converte em natura humanizada.
O vento é o vento mais nada
O nada qual nada eu sou.
Tenho desejo, memória
Sou mente e imaginação.
Mas onde raia o sentido
No nada que é o ser do vento
No vento que é minha razão?


III

Amo ninguém.
A vida já me pesa.
Pesam-me os anos vividos.
Pesa-me o tempo acordado.

Amo a paisagem além da janela aberta:
O ocre dos telhados manchando a verde
majestade dos coqueirais.
Amo o mar invisível.
Amo sobretudo a brisa que dos longes o anuncia.
Amo ninguém: assim ficou minha vida.

Porto de Galinhas, 23 de junho 1998.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Ela e o Tempo


Ela que era tão bela
Agora mira a janela:
Não aparece ninguém.
Janela da internet
Da casa ou kitnet:
Vagões vazios de um trem.

Ela que tanto reinou
Nas casas festas salões
Não viu que o tempo passou
Pulverizando ilusões.

Agora o espelho revela
A idade que borra e apaga
A chama da linda vela
Caída ao chão da sacada.
Tempo, sufocas Narciso
Com um travo cruel de riso.

Ela que era tão bela
Fecha em silêncio a janela
Que antes a iluminava.
E eu choro por mim e ela
Pois vi morrer a estrela
Que sobre a noite pairava.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Mioca e Nino


Iam a caminho da praia, já noite fechada, quando ouviram um sopro débil vindo do beco escuro. Detiveram-se, deram alguns passos em direção ao beco. Ouviram outro sopro, este bem nítido: miau... Apuraram a vista e logo divisaram, no canto da parede, a gatinha encolhida e assustada. Depois de alguma hesitação, Marilena, tocada pela visão da gata encolhida e abandonada no beco, estendeu as mãos trazendo-a para perto de si.
“Minhoca. Agora você se chama Minhoca”. Batizou-a assim sem refletir.
Logo Cláudio, que a tudo assistia silenciosamente, corrigiu-a: “Não é Minhoca. Ela tem cara de Mioca. Não acha?”. Marilena assentiu e logo trocaram a caminhada na praia pelo socorro a Mioca. Voltaram para casa sentindo os pelos úmidos e sujos da gatinha cujos olhos assustados seguiam fixos e tensos os movimentos dos pais adotivos. Sim, sem que nada discutissem ou acordassem, desde já Marilena e Cláudio sabiam que iriam doravante cuidar de Mioca.
Mal chegaram em casa, cuidaram de lavá-la. Mioca trazia nos pelos e em todo o corpo as marcas sujas das ruas, dos buracos onde por certo se refugiou de longos dias de abandono. Marilena sentira o tremor do seu corpo magro, o arrepio dos pelos ao contato com seu próprio corpo. Imaginaram, ela e Cláudio, que sobrevivera a muitas privações. Depois do longo e cuidadoso banho, enxugaram-na com carinho e por fim lhe serviram leite e carne moída. Apesar da fome, Mioca começou comendo ainda desconfiada, olhos fixos em Marilena e Cláudio. Depois de se afastarem discretamente, temendo ainda assustá-la, deixaram-na comendo na cozinha e foram cuidar das medidas práticas para alojá-la na casa. No fundo do armário embutido, que era quentinho e recolhido dentro do quarto que compartilhavam, arrumaram o cantinho onde Mioca passaria a viver. E assim Mioca ganhou um lar e pais.
Na manhã seguinte, tão logo acordou, Marilena acercou-se do quartinho de Mioca, já de olhos abertos, sempre fixados nela com um misto de desconfiança e temor. Depois de tomá-la nos braços para levá-la à cozinha, notou-lhe o corpinho quente, como se estivesse febril. No decorrer do dia, apesar dos cuidados que lhe dispensaram, Marilena e Cláudio notaram que a temperatura do corpo indicava o estado febril que desde cedo lhes inspirara desconfiança. Resolveram então ligar para Rosa, a veterinária do bairro que uma amiga, protetora de gatos e animais de estimação, lhes indicara.
“Ela está realmente muito febril”, observou Rosa visivelmente preocupada. Depois de examiná-la demoradamente, enquanto Marilena e Cláudio aguardavam inquietos, Rosa decidiu que o mais seguro seria ficar com ela durante o dia na clínica para proceder a um diagnóstico mais preciso. Quando voltaram à tarde, Rosa lhes disse que o estado febril de Mioca era indício de uma enfermidade mais grave do que de início supusera. Em suma, não haveria como curá-la sem submetê-la a uma cirurgia.
Mioca foi operada no dia seguinte. Voltou para casa nos braços de Marilena com o corpinho magro protegido por uma roupa cirúrgica. Marilena e Cláudio acomodaram-na no seu cantinho e desde então passaram a cuidar dela com amor inquieto e sempre vigilante. O pior é que continuava doente e a cirurgia não cicatrizava. Todos os dias precisavam remover com paciência e zelo a roupa cirúrgica para renovar a aplicação de medicamentos e ataduras. Mioca miava temerosa e encolhia-se desconfiada, o que dificultava os curativos obrigatórios feitos por Marilena com a ajuda de Cláudio.
O tempo passou e nada de Mioca ficar curada. Diante disso, Marilena e Cláudio precisaram recorrer a outros veterinários indicados por Rosa, que se confessou incapaz de prover a cura necessária. Por isso numa certa manhã Marilena e Cláudio acomodaram Mioca numa cestinha confortável e bem aquecida e levaram-na de carro para ser examinada por Carmen, professora-veterinária da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Notando a expectativa apreensiva com que aguardavam a conclusão do exame, Carmen disse sorridente para Marilena e Cláudio:
“Pois é, amor dá trabalho. Qualquer amor, inclusive de bicho”.
“É o que vivo dizendo a Marilena, que aliás me dá muito mais trabalho do que Mioca”, respondeu Cláudio com laivos estudados de rabugice que sempre provocavam risos em Marilena e nos amigos já afeitos a seu humor travosamente divertido.
Ao fim dos exames, apesar do clima descontraído desatado pela conversa errática e carregada de simpatia recíproca, Carmen não lhes deu solução nem sossego. Seria preciso submeter Mioca a mais uma cirurgia. Depois desta vieram outras, assim como novas idas e vindas à Rural. Em casa, Mioca continuava submetida aos curativos diários. Apesar do cuidado amoroso com que lhe ministravam medicamentos e medidas de assepsia preventivas de agravamento da infecção, Mioca sempre se contraía temerosa.
Não obstante a constância e o amor de Marilena e Cláudio, bastante para desatar-lhe o olhar antes fixo e assustado, Mioca parecia viver assombrada por temores insondáveis. Se acaso recebiam uma visita, ela se entocava no seu cantinho. Como viviam rotineiramente reservados, as visitas eram raras. A mais freqüente era a de Gastão Fortuna, cuja notória avareza inspirava recorrentes piadas à língua cortante de Cláudio. Marilena ria com ambos. À medida que a amizade entre ela e Gastão se estreitava, apesar de ela aprender a defender-se da avareza dele escondendo algumas garrafas de vinho para forçá-lo à contrariedade de trazer alguma, Marilena foi gradualmente substituindo a reserva inicial pelo tom brincalhão e zombeteiro de Cláudio. Assim, a presença ocasional de Gastão somou-se ao ambiente da casa. Até Mioca, que sempre corria para a sua toca tão logo via Gastão entrando, até ela foi se resignando ao convívio com Gastão como se dissesse: entre tantas desgraças, que mal me pode fazer mais uma que de resto não me fere o corpo? Numa noite extraordinária, com a sala cheia de convidados alegremente bebendo e tagarelando, Mioca entrou na sala, para espanto risonho dos pais, e saltou sobre o corpo de Gastão. Como o feito inusitado não lhe custou nenhum dinheiro, Gastão riu com gosto enquanto alisava os pelos do corpinho magro e castigado de Mioca. Foi uma cena memorável na crônica daquela família minúscula cujo centro expectante era a possibilidade da cura de Mioca.
Econômico até no gasto dos afetos, Gastão Fortuna contava meticuloso os investimentos que fazia no convívio dos amigos. Talvez por isso fosse observador atilado dos comportamentos. Assim, passou a perceber o quanto a presença de Mioca curiosamente humanizara Cláudio. Pois este nunca fora de gastar muito afeto, nunca dele repontavam os desmandos carentes e efusivos do brasileiro movido pela indisciplina e o excesso. Suas motivações, distintas das de Gastão, emanavam de fontes improváveis, talvez de certa disposição cética que não raro deslizava para modos de cinismo pouco condizentes com as naturezas mais amorosas. Esse grão de amor e desvelo entrou-lhe na casa depois que passou a viver com Marilena. À percepção de Gastão, todavia, o vinco de ternura, de vulnerabilidade afetiva, isso proveio de Mioca arrastando pelos cantos da casa o seu martírio miado, sua dor renovada a cada cirurgia, a cada curativo, a cada infecção renitente e renovada. O certo é que passou a sofrer no cotidiano, Marilena ainda mais, a doença incurável de Mioca. Embora tanto dela cuidassem, tanto fizessem para curá-la, os fracassos das cirurgias sucessivas findou por abatê-los em certos momentos. Uma noite, enquanto bebiam vinho conversando sobre a sorte infeliz de Mioca, Cláudio acabou desabafando:
“Se Mioca não ficar curada, ou infelizmente um dia morrer dessa doença, não mais cederei à tentação de trazer outro gato para a nossa casa”.
Marilena assentiu, embora no fundo sentisse que aquela onda quieta e secreta de amor materno circulante no seu ser não seria abafada pelos desastres provenientes do seu amor por Mioca. Resignaram-se a sofrer por Mioca, a continuar lutando para curá-la, mas ficou ajustado que depois dela nenhum outro gato entraria no seu mundo privado.
9h da noite. O interfone toca. Cláudio e Marilena olham-se intrigados. “Quem será, Leninha?”
A voz do porteiro: “Professor, seu Gastão e uma amiga dele perguntam se podem subir”.
“Agora essa, Leninha. Basta a gente se esquecer de passar a chave na porta e logo Gastão vem se enfiando casa adentro. Filho da puta!”
Cláudio lembrou-se a tempo de pedir a Marilena para esconder as garrafas de Bordeaux e os dois litros de Jack Daniel`s comprados naquela manhã no Carrefour. Tinham feito a feira etílica precisamente naquele dia. Quando Marilena levantou-se para remover as garrafas da mesa, Gastão e a amiga entraram.
“Ora viva! Temos bebida fina na mesa. Isso quer dizer que chegamos na hora exata”. Abraçou Cláudio, que remoia o desejo de estrangular o sovina impertinente, e disse para Marilena: “Marilena, esta é Miss Haig, minha amiga de aventuras literárias e sobretudo de copo”.
Marilena trocou dois beijos convencionais com Miss Haig e foi logo perguntando:
“Seu nome é mesmo Miss Haig?”
“Não. Na verdade me chamo Maísa. Fui rebatizada por um amigo de Gastão cujas garrafas de Haig bebi com tanta avidez que ele, por vingança ou troça, passou a me chamar assim. Eu e Gastão gostamos tanto da brincadeira que prontamente adotamos minha nova identidade. Como acho que a nossa identidade é uma ficção ou mera convenção social, troquei de nome tão à vontade que passei a me reconhecer como Miss Haig. Portanto, querida, fique à vontade para me chamar Miss Haig. Aliás, já que temos Jack Daniel`s na mesa, não faço nenhuma discriminação. Sou pluralista em matéria de uísque.”.
Depois do primeiro gole, Gastão desviou o rumo da conversa para justificar a inconveniência da visita: “Cláudio, você sabe que sou um humanista, talvez o último. Preocupa-me ver você e Marilena fechados nessa devoção anti-humanista à doença de Mioca. Quero resgatar vocês para o convívio humano, para os inefáveis prazeres do convívio humano”.
Mais uma vez Cláudio ficou com os inefáveis de Gastão atravessados na garganta. Se havia um adjetivo que Gastão usava com reiteração perdulária, era por certo inefável. Na voz de Gastão, os poetas pernambucanos eram inefáveis, fossem quem fossem. O que parecia importar para seu gosto poético era o timbre do registro de nascimento. Se era poeta pernambucano, era com certeza autor de poemas inefáveis. Inefável era também o futebol de Gérson e, no presente, de Toni Kroos, o cérebro da seleção alemã. Inefável era a música de Roberto Carlos. Inefáveis eram os vinhos franceses, que por alguma razão insondável bebia sempre nas adegas alheias.
Depois de muita bebedeira e tagarelice, Mioca entrou na sala cosendo o corpinho frágil pelos cantos da parede. Para surpresa de Marilena e Cláudio, voltou a saltar sobre a barriga de Gastão cujo humanismo estava bêbado demais para afagar-lhe os pelos. Mioca recolheu sua ousadia, escorregou do sofá para o chão e se foi de volta para o seu refúgio novamente cosendo o corpo aos cantos da parede. Cláudio observou a cena acabrunhado e por fim cuspiu entredentes: “Monstro sovina!”
Gastão e Miss Haig saíram tarde da noite, ambos visivelmente embriagados. Cláudio e Marilena, exaustos e também bêbados, foram dormir desejando que a blitz da tolerância zero no trânsito obrigasse o casal de salteadores a engolir o bafômetro.
No dia seguinte, ainda remoendo as agruras da véspera e a ressaca, tiveram que pegar a estrada, pois Mioca precisava submeter-se a uma nova cirurgia na Rural. O trânsito estava mais infernal do que o previsível. Assim, a viagem foi longa e lentíssima, exigindo de ambos uma paciência excepcional. Na verdade, Cláudio logo esgotou a que lhe restava e danou-se a maldizer a imobilidade progressiva do trânsito recifense. Não fosse o amor que devotavam a Mioca, jamais atravessariam quilômetros esburacados e intransitáveis para alcançar um destino tão distante. Mas Mioca precisava daquele sacrifício e o amor custa caro, lembrou Cláudio rosnando contra o ruído das buzinas impacientes.
Voltaram já no início da noite. Mioca, acomodada na sua cestinha confortável, miava miúdo, por certo sentindo dores provocadas pela nova cirurgia à medida que o efeito do anestésico regredia. O desejo de Marilena e Cláudio era dar conta das necessidades imediatas, tomar um banho e depois cair na cama. Mas estavam tão exaustos, tão estressados pelos rigores do dia e da véspera que decidiram caminhar um pouco no calçadão da praia. Assim talvez relaxassem e pudessem voltar para afundar no sono restaurador de que tanto precisavam.
Iam a caminho da praia, próximos ao beco escuro de onde há meses recolheram Mioca, quando de repente ouviram um sopro nítido provindo do mesmo lugar: miau. Detiveram-se, deram alguns passos em direção ao beco escuro e logo divisaram um gato lindo de pelos negros e abundantes. Miau, miau, repetiu o gato olhando-os com a confiança dos deserdados aventureiros e saudáveis. Cláudio não se conteve:
“Nino. O nome dele é Nino, Leninha. O nome desse moleque safado é Nino”.
Marilena assentiu: “Que gato lindo, Cláudio. Vamos levá-lo para casa”.
E assim Nino entrou afinal nesta história que começa com quatro patas de gato e acaba com oito. O resto não conto. Adianto apenas que o final não foi feliz, pois Mioca continua vivendo seu martírio sempre amorosamente assistida por Marilena e Cláudio. Em compensação, Nino tem beleza e saúde para humilhar Mioca e de resto provar que no reino da natureza, assim como no dos humanos, a justiça é um acidente e assim as desgraças e fortunas estão sempre desigualmente distribuídas. Aliás, já que falei em fortuna, Cláudio e Marilena mandaram Gastão Fortuna e Miss Haig ir beber noutra bodega. Já que até o amor custa caro, preferiram sensatamente gastar o que têm e podem com a doença incurável de Mioca. Nino compensa as perdas.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Sus! é o SUS


O político ou publicitário que rebatizou o sistema de saúde brasileiro é por certo um erudito. O que não sei é se tramou a sigla sombria movido pela ironia sádica ou a compaixão cristã, uma das virtudes brasileiras que Gilberto Freyre louvava num dos seus surtos líricos. Como não sou erudito (tendo bem mais para o erro dito), vou logo desmanchando o mistério diante do leitor intrigado ao ler o título desta crônica. Descobri há muitos anos, quando era leitor apaixonado da poesia de Manuel Bandeira, esta interjeição intrigante: sus! Ele a enfiou num dos seus poemas, cujo título já não lembro. Fui do poema ao dicionário e assim fiquei sabendo que sus quer dizer eia, ânimo, coragem!
Os azares da vida e da idade tangeram-me ontem e hoje para o posto médico do bairro. Parado diante da fachada aterrorizante - recoberta por sujeira, buracos e ferrugem – li num arrepio a sigla do Sistema Médico de Saúde: SUS. A interjeição há tanto esquecida, eco do poema de Manuel Bandeira, repicou na minha memória. Armando-me de coragem, sobretudo resignação, subi lentamente a escada que conduz ao primeiro andar. Sus!, segui subindo os degraus toscos enquanto suava escada acima. Do térreo vazavam, através de uma porta, o ruído e a poeira de uma reforma. Onde quer que eu ande constato esta verdade dolorosa: vivemos arruinando a civilização que fomos incapazes de construir. Chego afinal à sala de espera e deparo o quadro previsível: gente pobre e feia, gente resignada e sofrida, gente vergada ao peso da opressão social que a castiga do berço ao túmulo. Enquanto uns tagarelam na sala quente e desconfortável, outros quedam desanimados, como que imersos num pesado torpor. A única coisa que me surpreendeu foi o fato de não divisar um aparelho de TV pendurado na parede ou preso a um cabo suspenso do teto. Sus!
Minha reação habitual é murar-me no meu egoísmo humilhado. Mas logo me lembrei de que o remédio mais eficaz para nossa dor egoísta é a dor alheia. Assim, virei-me para as pacientes mais próximas e comecei a entabular conversa. Logo fiquei sabendo que a Dra. Vera falta com freqüência. Como é de praxe nos consultórios, públicos ou privados, ninguém dá satisfação ao paciente, que no Brasil justifica o substantivo. Paciente no Brasil, notadamente do SUS, existe para isso mesmo: para ser paciente, apanhar calado, esperar sentado ou de pé exposto à vontade e aos caprichos médicos com a resignação fatalista de boi de matadouro. A Dra. Vera falta há três semanas e há três semanas dona Maria vem, espera e depois faz o caminho de volta resignada a voltar na próxima semana amparada pela esperança de que na próxima vez a Dra. Vera virá aliviá-la das suas dores. Sus!
Se eu fosse psiquiatra do SUS, prescreveria para meus pacientes este remédio milagroso: se quer esquecer sua desgraça, abra os ouvidos para ouvir a desgraça alheia. Não digo que se compadeça dela, já que nosso egoísmo é cada vez mais espesso e rugoso; basta ouvi-la com atenção suficiente para esquecer a própria. É um santo remédio e não custa nada. De quebra, o paciente infeliz que verte sua dor no nosso ouvido atento fala de si comovido com a nossa atenção. Quem não quer e precisa ser ouvido, ainda mais na adversidade? Abra os ouvidos para a dor do paciente ao lado e logo você esquecerá a sua. Foi o que fiz e assim perdi noção do tempo escoado naquele ambiente desolador.
Quando dei por mim, sentindo dor na minha coluna egoísta, foi porque gritaram meu nome do corredor. A Dra. Virgínia atendeu-me muito atenciosamente. Nada fez por mim, nem o SUS permitiria que fizesse, mas me atendeu com atenção e respeito. Preencheu um formulário informando-me de que estava me encaminhando a um oftalmologista, pois nada poderia fazer para desembaraçar os trâmites do meu processo. É claro que antes do oftalmologista virá uma nova fila cedo da manhã para obter uma ficha, se evidentemente muitos outros pacientes não se anteciparem ao meu relógio. Depois disso, outras horas de espera, outros transtornos previstos e imprevistos. Encurtando a consulta, como felizmente tenho o privilégio de trocar a burocracia fria e sórdida do SUS pelo dinheiro que gastarei comprando tudo no mercado, despedi-me da Dra. Virgínia com um buraco no bolso, mas muitas horas de vida e indignação poupadas. Sus! é preciso ser muito pobre ou demasiado avarento para obter remédio caro no SUS, ou qualquer outro serviço. Sus!
Quem diz que o Brasil é uma democracia social, ou que Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Roussef (arengas ideológicas à parte) elevaram-no a esta invejável condição, é inconsciente, iludido ou beneficiário irresponsável do sistema de dominação há séculos instaurado neste cativeiro tropical. Quem louva nossa suposta democracia social é quem nunca precisa mourejar dependendo de transporte coletivo, depositar sua segurança nas nossas instituições públicas, educar-se nas nossas escolas públicas, adoecer assistido pelo SUS. Sus! pois a servidão social continua viva e poderosa neste país formado sob os tacões do Estado patrimonial, do colonialismo e da escravidão.
Recife, 2 de setembro de 2014

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Máximas e Mínimas XII


Os sonhadores sonham com a inconsciência de que há sonhos que produzem pesadelos.
Cheguei enfim à idade em que as mulheres amáveis me vêem fotografado à beira mar e dizem: “Que bela foto! Que bela paisagem marítima!”
A vaidade é uma doença incurável que se agrava com o passar dos anos.
Somente um materialista grosseiro acha que pão é necessidade e circo é apenas diversão e alienação política.
A única contribuição da Inglaterra à história do futebol foi o pontapé inicial.
Cheguei afinal à idade em que entro na fila dos idosos sem que ninguém proteste chamando-me de fura-fila.
Se os ingleses pecam por excesso de civilização, os brasileiros pecam por excesso de esculhambação.
Intercâmbio cultural:
Os melhores daqui vão para lá
Os piores de lá fogem pr`aqui.
O que caracteriza o cético autêntico é o estado de dúvida permanente inspirada pela busca da verdade decorrente da argumentação racional. Por isso seus principais inimigos são o dogmático, o crédulo e o cínico.
A saudade é uma traição da memória.
Uma das poucas virtudes da democracia é provar que não há diferença significativa entre Fernando Collor e Luís Inácio Lula da Silva. Basta elegê-los para a presidência e ver o que fazem no exercício do poder.
Não é por não acreditarem em belas abstrações como “a grandeza do futuro do Brasil” que não levo a sério os políticos brasileiros. Queria apenas que acreditassem e lutassem por um futuro melhor para os seus filhos. Essa forma salutar de egoísmo traria benefícios enormes para o país. Infelizmente, até o egoísmo deles é cego.