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quinta-feira, 11 de abril de 2013

Indivíduo e meio social


Há um desacordo irredutível entre o que somos por dentro, e até por fora, e o modo como a opinião alheia nos aprecia. Ser livre, na medida em que isso é possível, é libertar-se da tirania da opinião que não só nos vê como não somos, mas também nos escraviza à semelhança do que ela vê. Essa subordinação do indivíduo aos ditames da sociedade, ou do meio social, é corriqueira e de ordinário inconsciente, sobretudo num mundo governado pela ilusão da autonomia individual, por clichês publicitários segundo os quais somos livres para ser na vida o que quisermos. A medida da minha liberdade é a medida do meu desejo, eis o que a todo instante reiteram para nos venderem toda a sorte de produto. Lembrando Montaigne, convém não subestimar a medida da nossa cega adesão aos hábitos e convenções sociais. Por isso tantos reiteram impensadamente a ilusão de uma ordem de liberdade que não passa de automatismo induzido pela indústria do consumo.

Durante muito tempo de minha vida dei importância demasiada à opinião do outro, à sua apreciação equívoca, tantas vezes leviana e infundada, e às expectativas com que cercava minhas ações, não raro determinando-as, induzindo-me a fazer não aquilo que mais autenticamente me traduzisse, mas o que convinha à sua compreensão estreita, capricho ou mera rotina. Como se de algum modo assim me comandasse: seja assim simplesmente porque é assim que somos, ou porque se espera que assim sejamos. Foi talvez o excesso de desajuste prematuro dentro de uma comunidade mesquinha, ou a medida de uma excentricidade e estranheza que não escolhi, nem a princípio tive delas consciência, o que me impeliu a buscar vias de fuga e expressão humana orientadas para a realização do indivíduo chamado Fernando da Mota Lima.

Um dos fatos humanos que me persuadem da insuficiência das explicações sociológicas, embora seja eu um profissional desta discutível ciência, a sociologia, é a espantosa diversidade, e imprevisibilidade dos modos como o indivíduo reage às condições do meio. Quando o sociólogo teoriza sobre essa ordem de fatos sociais, invariavelmente sobrepõe o meio ao indivíduo. Isso independe de sua orientação teórica, que no contexto importa apenas para determinar os variáveis graus de subordinação do indivíduo ao meio, ou à sociedade. Admito que esta proposição geral é verdadeira quando aplicada à média humana convencional. Os indivíduos que todavia se distinguem em todas as formas de relação e expressão social distinguem-se precisamente por contrariarem a proposição acima enunciada.

Não me refiro apenas ao indivíduo identificado pela ação heroica ou a excepcionalidade que o diferencia da massa ignara e conformista. Longe de mim a intenção de reivindicar uma concepção sociológica do herói ou do indivíduo extraordinário. Se é fato que ambos ratificam minha tese, não é fato que neles prioritariamente me baseie para sustentá-la. Penso antes em indivíduos comuns, no sentido de que se dissolvem no anonimato das massas. Noutras palavras, não gozam de nenhum tipo de fama ou reconhecimento social que lhes transportem o nome e a identidade para além do círculo em que suas vidas se manifestam. Privados embora de fama, ou qualquer tipo de glória, esses indivíduos existem contrariando com sua existência distintiva o suposto império que o meio sobre eles exerce. Não chegam a constituir uma multidão, fato que por certo representaria uma constante ameaça à ordem convencional da sociedade, mas não são tão minoritários quanto presumem os cultores do indivíduo herói. Posso dizer que conheci vários nos meios e nas circunstâncias mais diferenciadas a até imprevisíveis. A experiência que neles identifico e assimilo não concorre em nenhum sentido sociológico para a elaboração de uma teoria passível de explicar os modos fundamentais da relação indivíduo e sociedade. Seria absurda tamanha pretensão. Meu simples propósito é alertar contra qualquer ambição de determinismo sociológico.

Se o argumento acima esboçado tem alguma consistência, insisto em sustentar que tem, meu ponto de vista em defesa de um certo quinhão de autonomia e liberdade individual funciona como um antídoto para qualquer concepção determinista, para qualquer perspectiva pessimista levada ao extremo da impotência individual em face dos poderes do mundo. Apesar de tudo, apesar antes de tudo do meu próprio ceticismo, nunca duvidei de que o indivíduo pode realizar na vida algum ideal de liberdade que o distinga do conformismo corrente, da adesão resignada à ordem social, à opinião servil que o quer ratificando as expectativas falsamente sólidas do teatro social que representamos.

Diário, Recife, 02 de agosto de 2004.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Deus me livre de ser mulher III


Concluo minha série de crônicas sobre as relações entre o homem e a mulher invocando razões sobremodo pessoais para gostar de ser homem. Antes de tudo, é por ser homem que posso amar a mulher num sentido incogitável para uma mulher. Não esqueço de que existe o amor lésbico, cada vez mais corrente. Confesso que sempre achei belo e delicado o amor entre mulheres. Talvez meu modo de figurá-lo seja apenas fantasioso, mas o fato é que sempre me sensibilizou. Nunca me incomodou, pelo contrário, saber que minhas namoradas, quando o amor lésbico era bem mais reprimido, tinham amigas lésbicas. Embora não tenha nenhum preconceito contra o homossexualismo masculino, nunca consegui fantasiá-lo ou simplesmente imaginá-lo revestido dos tons de beleza e lirismo que associo ao amor lésbico.

Já que comecei aludindo ao amor homossexual, aproveito a cadeia associativa (quase sempre meu processo de composição escrita, como ressaltei no segundo texto desta série) para declarar minha posição ética e ideológica acerca do assunto. Sou liberal. Não o confundam com o sentido recentemente adotado em sites de prostituição. Se bem entendo este novo sentido adicionado a um termo tão polissêmico e incompreendido, ser liberal é topar tudo, como antes se dizia nos ambientes de língua solta. Sendo mais preciso, talvez convenha dizer que é topar tudo, em particular sexo anal. Voltando ao sentido que tinha em mente e de resto aqui defendo, sou liberal dentro da tradição do liberalismo anglo-americano. No Brasil, infelizmente, liberal é quase sempre um insulto ideológico, mesmo depois que a hegemonia do pensamento de esquerda ficou confinada na academia, sindicatos e outros nichos da política avessa ao liberalismo e à direita em geral.

Liberalismo e socialismo são linhagens ideológicas que ganharam força na primeira metade do século 19. No decurso desse período eles se afastaram, já que a burguesia triunfante traiu os ideais progressistas contidos no liberalismo. Mas este, tão ou mais ambíguo do que o socialismo, desenvolveu a tendência com a qual me identifico: a que postula a igualdade de gênero, a autonomia do indivíduo perante o Estado, com certeza sua característica essencial, e a democracia social. A direita liberal tende a reduzir a democracia a fundamentos puramente econômicos, isto é, reivindica antes de tudo a autonomia do indivíduo perante o Estado como se tal autonomia se reduzisse à liberdade econômica. Neste sentido, concordo com a crítica curta e seca de marxistas e afins: de que me serve a liberdade para morrer de fome?

Ora, é justamente por lutar pela autonomia do indivíduo não apenas enquanto agente econômico, mas também enquanto cidadão e membro de um gênero, que o liberalismo esteve e está na raiz dos movimentos de liberação hoje mais ativos do que os movimentos políticos convencionais. Refiro-me, noutras palavras, ao feminismo, aos movimentos em defesa dos direitos das minorias etc. É pena que o desenvolvimento do liberalismo no Brasil, associado sobretudo aos movimentos de direita, nos impeça de reconhecer o papel decisivo que a tradição liberal desempenhou no sentido de ampliar a conquista e exercício dos direitos humanos. Por essas e outras, acima de tudo por considerar a representação político-partidária do liberalismo no Brasil, sempre me constrangeu afirmar minha filiação ao liberalismo. Tanto me constrangeu que somente há bem pouco tempo ousei declarar-me liberal. Friso ainda que, em termos de representação política oficial, não seguiria nenhum dos partidos que se declaram baseados em ideais liberais. Noutras palavras, liberalismo para mim é um conceito investido de conotações antes culturais do que políticas.

Retomo o veio do meu argumento relativo ao homossexualismo para salientar que é precisamente por me definir como liberal que me sinto livre para defender os direitos do amor homossexual, os direitos de todas as minorias, em suma, a autonomia do indivíduo perante o Estado. Especificando: autonomia política, econômica, religiosa, sexual etc. Saindo dessas abstrações que por vezes me confundem, pois bem pouco conheço a história das ideias políticas, há muito me espanta o fato de tanta gente ser moralmente tolerante, quando não cúmplice, de políticos comprovadamente corruptos, de criminosos cujas infrações à lei resultam em danos sociais devastadores e todavia ser impiedosa no exercício do preconceito contra o homossexualismo. Ainda que se admita que este é moralmente recriminável, que mal ele causa a mim ou a quem não o pratica? Nesse sentido, acredito que a intolerância encerra um ingrediente inequívoco de insegurança psicológica acerca do que somos. A norma que deveria reger nossa atitude moral perante o homossexualismo parece-me simples: na medida em que não interfira na liberdade do outro, o indivíduo é livre para fazer sexualmente o que quiser.

Dei tantas voltas, errei acima através de tantos becos que acabei perdendo a mulher de vista. Como dizia, preciso ser homem para desfrutar do privilégio de amar a mulher como somente o homem a pode amar. Minha grande ventura foi amar e ser amado pela mulher. É uma experiência indizível que, na medida do que pude e precisei, notadamente quando sofri a dor e a perda, quando precisei limpar a chaminé da minha memória atormentada pelo amor ido e perdido, tentei toscamente traduzir em poema, em prosa lírica, em estados de epifania irredutíveis à palavra. Além disso, senti-me sempre tolhido pela consciência de que trato de uma ordem de experiência privada. Quando falo de amor, implico o outro, a mulher que não me autorizou a identificá-la e despi-la nas linhas da minha crônica. Portanto, além de defender minha própria reserva, minha própria privacidade, importa ainda mais preservar a privacidade de quem amei, de quem mergulhou comigo nos labirintos inconfessáveis da carne, da intimidade inefável.

De resto, é devido às razões acima grosseiramente expostas que detesto a cultura da exposição narcisista dominante no cenário contemporâneo. Repisando um trocadilho preciso, as pessoas se evadem da privacidade com um gozo de ostentação e vulgaridade que me inspira aversão. Não vou, portanto, incorrer nas práticas que reprovo. Sendo assim, encerro minhas três crônicas num tom decerto banal para quem se meteu a levantar tanta poeira nas páginas precedentes. Seguindo com uma distinção que me parece oportuna, critico o discurso sobre o amor e o sexo na medida em que se confunde com a vulgarização que sempre o rebaixa, além de remover seus objetos da esfera privada para a exposição contaminada pelo exibicionismo, a vaidade, a inveja, a ostentação de poder, todos esses modos de ser negativos incompatíveis com o amor e o sexo tal como os entendo e procuro vivê-los.

Esclarecendo a distinção acima proposta, afirmo hoje que o amor precisa manifestar-se em palavra, precisa sempre prodigamente declarar-se ao outro amado. Num poema tardio (“Quero”, incluído em As impurezas do branco), Drummond enfatiza o quanto precisa do amor declarado, o amor traduzido em palavra à exaustão repetida. Somente assim, frisa o poema, o poeta se sente amado. Lendo um dia esse poema, lembrei-me do quanto durante muito tempo me deixei trair pelo engano de que o amor deveria manifestar-se em ato, não em palavra. A palavra é fácil e frequentemente falsa. Isso todavia não anula a necessidade que temos de acreditar no amor do outro porque ele o declara. Talvez precisemos desse tipo de certeza precária ou confirmação simplesmente porque somos demasiado vulneráveis à incerteza, duvidamos demais do amor, duvidamos ainda da medida em que o merecemos. Além do mais, não bastasse a dúvida latejando na raiz do ser, duvidamos da sua duração quando o acreditamos real. Ele é hoje, mas será também amanhã? Essa insensatez corrói o amor, chega com frequência a ameaçá-lo, mas é com toda essa fragilidade insensata que no geral amamos.

O que sei é que aprendi, decerto tardiamente, porém ainda a tempo, aprendi a dizer o amor. Quando doravante voltar a vivê-lo, pois há ainda tempo para amar e amar com a maturidade serena que em mim tenho lavrado, direi o amor sempre que possível e necessário, sempre até quando prescindível. Nossa experiência do amor, nossa carência dele, tudo isso é incerto demais, precário demais para que a gente se contente simplesmente em vivê-lo enquanto ato. O poeta tem razão: é preciso dizer sempre o amor, dizê-lo todos os dias, quando de fato amamos. Contudo, é preciso antes encontrar o amor. E a verdade que antes a mim me toca, que antes em mim me fere, além da que observo à minha volta, é que andamos pobres de amor, andamos desavindos do amor. Assim, como tem sido difícil valer-me do privilégio de ser homem para amar a mulher num sentido somente concebível para quem é homem!

Já que acima aludi a Drummond, que até em matéria de amor é mais meu poeta do que românticos extremos como Vinícius de Moraes, concluo citando a quadra inicial de um dos seus poemas que não me canso de ler:
“Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva”.
Recife, 7 de agosto de 2012.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

O peso da liberdade


Segundo a voz corrente, ser livre é fazer o que quiser. É uma concepção infantil da liberdade, mas como espantar-se diante do fato de ter largo curso, de ser a voz corrente? Afinal, a cultura hedonista que hoje rege nossa realidade baseia-se na infantilização das pessoas. Dizendo o mesmo de um outro modo, a cultura publicitária, presente até no nosso sono, para não dizer nos nossos sonhos acordados, repisa esse refrão para tudo vender. Repetindo o refrão, ser livre é fazer o que quiser, é realizar nosso desejo. Ora, essa concepção infantil da liberdade não resiste ao teste de realidade mais elementar, à prova mais corriqueira da realidade.

A liberdade é um bem precioso, mas é também um peso. Por que um peso, interroga perplexo o leitor infantilizado pela fumaça publicitária que permeia nossas vidas. Ora, porque ser livre é ser livre para escolher. Nossa vida, na medida em que é livre, supõe sempre o exercício de escolhas. Estamos sempre fazendo escolhas. E é precisamente dessa circunstância entranhada no ser e no exercício da liberdade que decorre seu peso sobre nossas vidas.

Vamos a alguns exemplos práticos. Somos livres para amar. Num mundo de tantas possibilidades, tantas tentações e encontros, a liberdade de amar é bem maior do que a observável em outros tempos e culturas regidas por códigos mais repressivos. Hoje um jovem de classe média urbana, por exemplo, é livre para transar com a namorada, em muitos casos dormir com ela na casa dos pais graças ao consentimento destes. É uma forma de liberdade desejável e fácil, já que consentida. Quando eu era jovem, precisei sair de casa, lutar arduamente para ter um lugar meu onde pudesse dormir com minha namorada, ou com quem mais desejasse. Ninguém me deu essa liberdade. Precisei conquistá-la e portanto sei o quanto me custou. Hoje o jovem de classe média para cima não apenas leva a namorada para a casa dos pais, mas também com frequência a engravida e os pais financiam também essa liberdade. Como estranhar que esse tipo de jovem, cuja liberdade é financiada pelos pais, diga irrefletidamente que ser livre é fazer o que quiser e quando quiser?

A digressão acima desviou-me do curso de meu argumento. Meu propósito, ao acentuar o peso da liberdade, era ir ao cerne do que compreendo como liberdade. O exemplo que dei é secundário, já que deriva do que agora deixarei claro. Ser livre é ser livre para escolher e escolher envolve sempre a exclusão de tudo que fica à margem da minha escolha. Quando escolho amar uma mulher, excluo automaticamente todas as demais possíveis. Quando escolho ficar em casa sexta-feira à noite lendo um livro ou escrevendo, excluo todas as possibilidades de vida que estão fora do meu apartamento. Quando escolho minha solidão, para nela realizar possibilidades impensáveis em qualquer forma de convívio, escolho-a porque ela importa para mim mais do que qualquer companhia disponível.

A condição fundamental para que me realize no exercício da minha liberdade de escolher consiste na adequação entre meu desejo e o objeto que escolho. Quantas pessoas escolhem em conformidade com esse princípio? Receio que bem poucas. Ademais, ainda que na minha escolha obedeça a este princípio, o objeto que escolho, se é humano, pode contrariar ou mesmo contradizer minha liberdade. Para que minha escolha me faça bem, idealmente me torne feliz, é preciso que eu queira verdadeiramente o que escolho, tão verdadeira e profundamente que a exclusão de tudo mais não me cause frustração ou arrependimento, suspensão relutante entre o que escolho e o que em consequência deixei de escolher.

Como conciliar a realidade efetiva da liberdade com a noção infantil acima indicada? De acordo com esta, faço o que quero como se isso significasse fazer tudo o que quero. Ora, ninguém faz tudo o que quer. Mesmo no estado idealmente mais livre, somos livres porque fazemos escolhas. É aí que muitas vezes sofremos entre o desejo e a possibilidade, entre a realidade da escolha e a realidade das possibilidades em princípio infinitas. É impossível escolher tudo que queremos e aquilo que mais queremos. A liberdade ideal, portanto, consiste na escolha daquilo que mais importa para a realização da nossa vida. Convém ainda acrescentar que não há nenhuma linha reta, nenhuma relação de necessidade entre minha escolha e meu desejo de felicidade. Não raro, o que mais desejo e escolho logo se converte em fonte de desastre e sofrimento. A liberdade não se dá, a liberdade se conquista, reza um lugar comum, no caso verdadeiro. Mas a liberdade que se conquista não é garantia de nada, muito menos de felicidade.

O fato é que a liberdade, como já frisei, é um bem precioso, mas também um peso. É por tanto pesar que a ela frequentemente renunciamos, não raro em nome dela. É por isso que nos deixamos docilmente governar por líderes baratos, reles políticos que apenas ambicionam o poder, o pior do poder. Curvamo-nos não apenas a esse tipo de governo, mas também ao governo do tirano cujo poder se sustenta apenas na nossa servidão voluntária, como há muito demonstrou Étienne de La Boétie.

“Ó liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome”. Esta citação, longe de ser um lugar comum, como a que acima introduzi, é de Madame Roland, que a pronunciou no auge do terror desencadeado pela revolução cujo ideal era esta santíssima trindade: Igualdade, Liberdade, Fraternidade. Madame Roland perdeu literalmente a cabeça, cortada pela guilhotina que suprimiu muitas outras cabeças gloriosas. Matamos pela liberdade, assim como também matamos em nome dela. Por ser tão imperiosa, dela frequentemente nos valemos para mascarar muitos dos nossos piores crimes. E quantas vezes, tendo-a a nosso alcance, não a rebaixamos à sarjeta das paixões humanas? Será que somos verdadeiramente capazes de realizar a liberdade nesse mundo humano tão imperfeito? Se o leitor acredita nesse mito, o da liberdade universal ou absoluta, convém começar a afiar a lâmina da guilhotina. Ou o fio da navalha, no caso de ser barbeiro.
Recife, 15 de junho de 2012.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Indivíduo e meio social


Há um desacordo irredutível entre o que somos por dentro, e até por fora, e o modo como a opinião alheia nos aprecia. Ser livre, na medida em que isso é possível, é libertar-se da tirania da opinião que não só nos vê como não somos, mas também nos escraviza à semelhança do que ela vê. Essa subordinação do indivíduo aos ditames da sociedade, ou do meio social, é corriqueira e de ordinário inconsciente, sobretudo num mundo governado pela ilusão da autonomia individual, por clichês publicitários segundo os quais somos livres para ser na vida o que quisermos. A medida da minha liberdade é a medida do meu desejo, eis o que a todo instante reiteram para nos venderem toda a sorte de produto. Lembrando Montaigne, convém não subestimar a medida da nossa cega adesão aos hábitos e convenções sociais. Por isso tantos reiteram impensadamente a ilusão de uma ordem de liberdade que não passa de automatismo induzido pela indústria do consumo.

Durante muito tempo de minha vida dei importância demasiada à opinião do outro, à sua apreciação equívoca, tantas vezes leviana e infundada, e às expectativas com que cercava minhas ações, não raro determinando-as, induzindo-me a fazer não aquilo que mais autenticamente me traduzisse, mas o que convinha à sua compreensão estreita, capricho ou mera rotina. Como se de algum modo assim me comandasse: seja assim simplesmente porque é assim que somos, ou porque se espera que assim sejamos. Foi talvez o excesso de desajuste prematuro dentro de uma comunidade mesquinha, ou a medida de uma excentricidade e estranheza que não escolhi, nem a princípio tive delas consciência, o que me impeliu a buscar vias de fuga e expressão humana orientadas para a realização do indivíduo chamado Fernando da Mota Lima.

Um dos fatos humanos que me persuadem da insuficiência das explicações sociológicas, embora seja eu um profissional desta discutível ciência, a sociologia, é a espantosa diversidade, e imprevisibilidade dos modos como o indivíduo reage às condições do meio. Quando o sociólogo teoriza sobre essa ordem de fatos sociais, invariavelmente sobrepõe o meio ao indivíduo. Isso independe de sua orientação teórica, que no contexto importa apenas para determinar os variáveis graus de subordinação do indivíduo ao meio, ou à sociedade. Admito que esta proposição geral é verdadeira quando aplicada à média humana convencional.

Os indivíduos que todavia se distinguem em todas as formas de relação e expressão social distinguem-se precisamente por contrariarem a proposição acima enunciada.
Não me refiro apenas ao indivíduo identificado pela ação heroica ou a excepcionalidade que o diferencia da massa ignara e conformista. Longe de mim a intenção de reivindicar uma concepção sociológica do herói ou do indivíduo extraordinário. Se é fato que ambos ratificam minha tese, não é fato que neles prioritariamente me baseie para sustentá-la. Penso antes em indivíduos comuns, no sentido de que se dissolvem no anonimato das massas. Noutras palavras, não gozam de nenhum tipo de fama ou reconhecimento social que lhes transportem o nome e a identidade para além do círculo em que suas vidas se manifestam. Privados embora de fama, ou qualquer tipo de glória, esses indivíduos existem contrariando com sua existência distintiva o suposto império que o meio sobre eles exerce. Não chegam a constituir uma multidão, fato que por certo representaria uma constante ameaça à ordem convencional da sociedade, mas não são tão minoritários quanto presumem os cultores do indivíduo herói. Posso dizer que conheci vários nos meios e nas circunstâncias mais diferenciadas a até imprevisíveis. A experiência que neles identifico e assimilo não concorre em nenhum sentido sociológico para a elaboração de uma teoria passível de explicar os modos fundamentais da relação indivíduo e sociedade. Seria absurda tamanha pretensão. Meu simples propósito é alertar contra qualquer ambição de determinismo sociológico.

Se o argumento acima esboçado tem alguma consistência, insisto em sustentar que tem, meu ponto de vista em defesa de um certo quinhão de autonomia e liberdade individual funciona como um antídoto para qualquer concepção determinista, para qualquer perspectiva pessimista levada ao extremo da impotência individual em face dos poderes do mundo. Apesar de tudo, apesar antes de tudo do meu próprio ceticismo, nunca duvidei de que o indivíduo pode realizar na vida algum ideal de liberdade que o distinga do conformismo corrente, da adesão resignada à ordem social, à opinião servil que o quer ratificando as expectativas falsamente sólidas do teatro social que representamos.

Diário, Recife, 02 de agosto de 2004.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A Onda


O filme A Onda é baseado num experimento pedagógico ocorrido na Califórnia em 1967. Transposto para a Alemanha contemporânea, berço do nazismo, resulta num precioso e inquietante documento psicossocial que desce às entranhas das potencialidades destrutivas do gênero humano. Compreendido enquanto cinema, esteticamente falando, A Onda é rasa, mas importa muitíssimo pela idéia recriada para iluminar questões do presente. É isso o que intento explorar um pouco na minha crítica.

Embora incapaz de ajustar-me a qualquer movimento ou disciplina partidária, acredito que ninguém pode, a rigor, ser indiferente à política. Como disse alguém, não importa que não nos importemos com ela; ela se importará conosco. Talvez um sintoma da minha descrença na ação política se expresse na preocupação de compreendê-la em termos puramente teóricos – compreender a mais terrível onda bárbara que foi o nazismo, por exemplo. Lendo Freud, Bertrand Russell e Erich Fromm, depois vieram outros, julgo haver compreendido melhor o papel que determinados componentes psicossociais exercem na ação política.

Vamos ao filme. Rainer é um professor anarquista que ironicamente se defronta com o desafio de dar um curso sobre autocracia e regimes políticos similares (ditadura, nazismo, fascismo) para uma turma de jovens estudantes. Os jovens têm muitos dos traços psicossociais comuns à juventude do mundo ocidental e suas derivações periféricas. Esses traços decorrem, em suma, da cultura narcisista e consumista cujo solo e circuitos de manifestação contínua bem conhecemos. Incerto sobre o que fazer diante do desafio pedagógico que tem pela frente, Rainer procede a um experimento nazi-fascista em plena sala de aula. As reações dos alunos e as transformações perturbadoras que neles se processam apontam para as fontes psíquicas e sociais geradoras dos regimes políticos de extrema direita.

À exceção de Karo e outra aluna que a segue, toda a turma adere entusiasmada à formação de um grupo inspirado pelos valores e práticas do nazismo. A motivação psicológica decisiva para a adesão reside no desejo obscuro de dissolver a individualidade e a liberdade individual, bem mais penosas do que supomos, numa unidade mística e grupal. Essa unidade supõe gestos, rituais e símbolos lastreados na disciplina cega e na força forjada pelo grupo. A figura do líder é a fonte de autoridade e poder com a qual os jovens seguidores cegamente se identificam. Essa identificação liberta os jovens de pensarem e decidirem por si próprios. Pouca gente se dá conta do quanto a liberdade assim compreendida (implicando autonomia, liberdade de escolha e conseqüente responsabilidade em face do que escolhemos) é difícil e mesmo penosa.

É desse peso que os jovens participantes do experimento fascista se liberam. O líder ordena e eles disciplinadamente agem. Não ser parte dessa unidade cega e intolerante é uma ameaça à unidade conquistada que precisa crescer na sua força expansiva. É aí que a jovem Karo se torna uma ameaça que precisa ser excluída do grupo. Ela representa os valores da liberdade individual aos quais todos renunciaram. O exemplo extremo dessa renúncia cega e radical é Tim, o jovem que no desfecho do filme se suicida. Quando o professor renuncia ao papel de líder, impondo ao grupo um retorno à situação inicial, ele se revela incapaz de reverter o jogo perigoso proposto pelo professor. Sua renúncia à liberdade individual tocou o extremo passível de o impelir para a destruição completa, que no caso resulta em autodestruição.

A Onda sugeriu-me um paralelo com Sociedade dos Poetas Mortos. Este filme, talvez já esquecido, poderia ser interpretado como o oposto simétrico daquele. Também aqui nos vemos diante de um professor, Mr. Keating, cuja personalidade magnética seduz um grupo de jovens estudantes da elite americana. A pedagogia que propõe a seus alunos, inspirado pela tradição romântica libertária, baseia-se em tudo que a ideologia nazista intenta suprimir: a educação compreendida como a realização da singularidade irredutível de cada indivíduo. Faça seu próprio caminho, cante sua própria canção, realize a vida extraordinária que lateja em cada indivíduo. O desfecho de Sociedade dos Poetas Mortos também envolve um suicídio. Neil, o jovem suicida, mata-se por não poder suportar um sentido de repressão imposto pela família e a escola que suprime sua individualidade. É portanto a contraface de Tim, que se mata porque renunciou completamente à possibilidade de se realizar como indivíduo.

Anotei no parágrafo acima um paralelo grosseiro entre dois filmes de sentido antagônico com o propósito de sugerir a complexidade da realidade cultural em que vivemos. Ambas as tendências conflitantes ou inconciliáveis se manifestam de muitos modos. Meu coração e minha mente estão totalmente identificados com os valores propostos por Sociedade dos Poetas Mortos. Mas nunca me esqueço, talvez precisamente por escolher o que escolhi, que as forças profundas geradoras do fascismo estão sempre entre nós. Seriam elas acaso passíveis de produzirem um fascismo à brasileira, como aliás tivemos disso um arremedo nos anos trinta com o movimento integralista? Acredito que não. Afinal, concordando com Luciano Oliveira, que tem escrito sobre esta e questões conexas observáveis na nossa sociedade, estamos longe do modelo de sociedade disciplinar proposto por Michel Foucault na sua obra. O nazismo foi um movimento baseado em formas de organização militarista somente concebíveis numa sociedade disciplinar. Nossas formas supremas de mobilização coletiva, o futebol e o carnaval, constituem a evidência de que tendemos mais para a anomia, como diria Durkheim, do que para a arregimentação disciplinar das massas. Eis um caso, talvez o único, em que nossa incurável bagunça é social e politicamente saudável.

Créditos:
Título: A Onda (Die Welle)
Direção: Dennis Gansel
Roteiro: Todd Strasser (romance), Dennis Gansel e Peter Thorwarth
Ano de produção: 2008 (Alemanha).
Elenco: Rainer Wenger - Jürgen Vogel
Tim - Frederick Lau
Marco – Max Riemelt
Karo - Jennifer Ulrich

Recife, 9 de dezembro de 2009

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Elogio da Inutilidade


George Steiner ressalta num dos seus ensaios extraordinários a força corruptora que um regime totalitário – o nazismo, no caso – exerce sobre a língua que falamos. Antes de tudo, ele corrompe a possibilidade de a utilizarmos para expressar a verdade. Embora não exista felizmente nenhum regime totalitário regendo nosso presente, há no entanto certas características dele rondando obscuramente nossas vidas. Consideremos novamente o problema da linguagem. Vivemos numa época dominada pelo discurso publicitário, cujo objetivo maior é vender tudo, não raro ao preço de ilusões completamente infundadas, mentiras que não resistem a um minuto de análise sensata. O discurso publicitário contamina a mídia em geral, que por sua vez atua sobre nossas consciências incautas, ou simplesmente carentes de auto-engano. Assim, passamos a empregar livre e correntemente palavras e conceitos que servem antes de tudo para embaçar nossa relação com a realidade, representá-la turvada por uma rede de mentiras e ilusões nesse sentido afins ao discurso totalitário. Bastaria pensarmos no sentido verdadeiro de expressões correntes como fogo amigo, bala perdida (digam isso a quem foi atingido por uma, ou a quem perdeu uma pessoa amada atingida por uma) ou terceira idade. Pensemos ainda nos clipes publicitários que a toda hora, a todo minuto, representam o consumidor como um ser investido de onipotência. O limite é o nosso desejo. Se tomo uma coca-cola, converto-me milagrosamente num super-herói; se tomo uma Skol, o prazer desce redondo milagrosamente convertendo-me num Casanova de botequim...
Mas meu objetivo é concentrar a matéria deste artigo em algumas das implicações submersas na expressão terceira idade e variantes como boa idade e adultescente. Este talvez seja um neologismo que eu possa humildemente reivindicar como sendo de minha autoria, pelo menos no sentido em que o emprego. Para mim, o adultescente é apenas um adulador da adolescência. Esta idade, a adolescência, elevada pelo discurso publicitário a ideal de vida, converte a velhice (usei enfim a palavra obscena, o termo impronunciável) em autêntico pavor, espécie de assombração do processo biológico que precisa ser a todo custo abafada. Isso nos leva de volta ao uso da linguagem como exercício de uma forma de vida mentirosa, uma forma de vida baseada na ilusão e na mentira. O mais grave é que, no caso, lidamos com experiências humanas inescapáveis, modos de ser que são constitutivos do processo biológico que todos fatalmente vivemos. Trocando em miúdos, qualquer pessoa que tenha o privilégio (ou desgraça, depende sempre do ponto de vista de quem fala e vive) de viver uma vida longa inevitavelmente atravessa os ciclos da infância, da juventude e da velhice. Mas parece que agora, possuídos pela cultura narcisista e hedonista, refizemos o processo da seguinte maneira: infância, adolescência, juventude e adultescência (agora no sentido de regressão ao irregressível, já que desconheço o milagre do velho efetivamente adolescente). Em suma, abolimos a velhice e estamos a caminho de abolir a morte, obscenidade ainda mais impronunciável. Como todavia a realidade é sempre imperativa, não há como suprimir a velhice. E já que é impossível suprimi-la, resta-nos criar uma linguagem que a recusa, uma linguagem que a representa como se não fosse, ou fosse outra coisa. É aí que o publicitário entra em cena e cunha expressões do tipo terceira idade, ou boa idade. Outro recurso empregado pela ideologia corrente consiste em representar o idoso (perdão, quis dizer o membro da terceira idade) como um ser útil ou como um consumidor feliz. Observem a felicidade combalida dos idosos filmados em bailes da terceira idade. Observem ainda as reportagens onde aposentados falam orgulhosamente do que fazem para conservar-se ativos como parafusos lubrificados a serviço da grande e monstruosa máquina do consumo.
Diante do quadro feliz e harmonioso acima esquematicamente esboçado, incorro agora na atitude herética de reivindicar para mim próprio o direito de envelhecer e morrer conscientemente, envelhecer e morrer liberto do peso dessas ilusões lucrativas... para os publicitários e comerciantes que nelas investem. Falando baixinho, para não escandalizar os jovens que têm pavor da velhice e os velhos que se refugiam no espelho de uma juventude esgotada, um dos meus grandes sonhos é aposentar-me para me entregar luxuriosamente, para me entregar deliciosamente à minha inutilidade. Como dizia Mário de Andrade, ele que ironicamente trabalhou feito um mouro, quero desfrutar da divina preguiça. Quero ser um aposentado para enfim conquistar a liberdade de ser inútil, de não precisar mover-me como um parafuso disciplinado dentro da cadeia imperativa que move a sociedade. Quero ser um velho aposentado liberto para desfrutar de prazeres suprimidos pela mentalidade utilitária que vê em cada poema uma evasão criminosa da realidade, em cada canção um desperdício de desocupado, em cada leitura de romance uma rendição à mentira ou ao faz de conta. Melhor dizendo, quero ser um velhinho. Quero que minha namorada e meus amigos me chamem velhinho. Se a tanto posso aspirar, quero que me amem como amamos um velhinho, que em mim considerem a dignidade e o respeito que devemos a um velhinho humilde e humanamente vivo. Quero ser um aposentado para ler e reler todos os livros que requerem um tempo incogitável nesse mundo regulado pelo tempo útil, o tempo dinheiro, o tempo competitivo, o tempo a serviço de alguma finalidade alheia a quem o vive. Quero o tempo do aposentado inclusive para encarar minha velhice sem falsas ilusões, como essas que a mascaram sob a face neutra de termos como terceira idade e boa idade. Quero enfim conquistar na velhice um privilégio suprimido pelo mundo mesquinhamente utilitário em que vivemos: quero viver o privilégio da inutilidade que pulsa na poesia de Drummond, num romance de Machado de Assis, numa sonata de Beethoven, na música sublime de Bach, numa caminhada à beira mar quando a noite desce com seus sortilégios e promessas inefáveis...