quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Deus me livre de ser mulher III


Concluo minha série de crônicas sobre as relações entre o homem e a mulher invocando razões sobremodo pessoais para gostar de ser homem. Antes de tudo, é por ser homem que posso amar a mulher num sentido incogitável para uma mulher. Não esqueço de que existe o amor lésbico, cada vez mais corrente. Confesso que sempre achei belo e delicado o amor entre mulheres. Talvez meu modo de figurá-lo seja apenas fantasioso, mas o fato é que sempre me sensibilizou. Nunca me incomodou, pelo contrário, saber que minhas namoradas, quando o amor lésbico era bem mais reprimido, tinham amigas lésbicas. Embora não tenha nenhum preconceito contra o homossexualismo masculino, nunca consegui fantasiá-lo ou simplesmente imaginá-lo revestido dos tons de beleza e lirismo que associo ao amor lésbico.

Já que comecei aludindo ao amor homossexual, aproveito a cadeia associativa (quase sempre meu processo de composição escrita, como ressaltei no segundo texto desta série) para declarar minha posição ética e ideológica acerca do assunto. Sou liberal. Não o confundam com o sentido recentemente adotado em sites de prostituição. Se bem entendo este novo sentido adicionado a um termo tão polissêmico e incompreendido, ser liberal é topar tudo, como antes se dizia nos ambientes de língua solta. Sendo mais preciso, talvez convenha dizer que é topar tudo, em particular sexo anal. Voltando ao sentido que tinha em mente e de resto aqui defendo, sou liberal dentro da tradição do liberalismo anglo-americano. No Brasil, infelizmente, liberal é quase sempre um insulto ideológico, mesmo depois que a hegemonia do pensamento de esquerda ficou confinada na academia, sindicatos e outros nichos da política avessa ao liberalismo e à direita em geral.

Liberalismo e socialismo são linhagens ideológicas que ganharam força na primeira metade do século 19. No decurso desse período eles se afastaram, já que a burguesia triunfante traiu os ideais progressistas contidos no liberalismo. Mas este, tão ou mais ambíguo do que o socialismo, desenvolveu a tendência com a qual me identifico: a que postula a igualdade de gênero, a autonomia do indivíduo perante o Estado, com certeza sua característica essencial, e a democracia social. A direita liberal tende a reduzir a democracia a fundamentos puramente econômicos, isto é, reivindica antes de tudo a autonomia do indivíduo perante o Estado como se tal autonomia se reduzisse à liberdade econômica. Neste sentido, concordo com a crítica curta e seca de marxistas e afins: de que me serve a liberdade para morrer de fome?

Ora, é justamente por lutar pela autonomia do indivíduo não apenas enquanto agente econômico, mas também enquanto cidadão e membro de um gênero, que o liberalismo esteve e está na raiz dos movimentos de liberação hoje mais ativos do que os movimentos políticos convencionais. Refiro-me, noutras palavras, ao feminismo, aos movimentos em defesa dos direitos das minorias etc. É pena que o desenvolvimento do liberalismo no Brasil, associado sobretudo aos movimentos de direita, nos impeça de reconhecer o papel decisivo que a tradição liberal desempenhou no sentido de ampliar a conquista e exercício dos direitos humanos. Por essas e outras, acima de tudo por considerar a representação político-partidária do liberalismo no Brasil, sempre me constrangeu afirmar minha filiação ao liberalismo. Tanto me constrangeu que somente há bem pouco tempo ousei declarar-me liberal. Friso ainda que, em termos de representação política oficial, não seguiria nenhum dos partidos que se declaram baseados em ideais liberais. Noutras palavras, liberalismo para mim é um conceito investido de conotações antes culturais do que políticas.

Retomo o veio do meu argumento relativo ao homossexualismo para salientar que é precisamente por me definir como liberal que me sinto livre para defender os direitos do amor homossexual, os direitos de todas as minorias, em suma, a autonomia do indivíduo perante o Estado. Especificando: autonomia política, econômica, religiosa, sexual etc. Saindo dessas abstrações que por vezes me confundem, pois bem pouco conheço a história das ideias políticas, há muito me espanta o fato de tanta gente ser moralmente tolerante, quando não cúmplice, de políticos comprovadamente corruptos, de criminosos cujas infrações à lei resultam em danos sociais devastadores e todavia ser impiedosa no exercício do preconceito contra o homossexualismo. Ainda que se admita que este é moralmente recriminável, que mal ele causa a mim ou a quem não o pratica? Nesse sentido, acredito que a intolerância encerra um ingrediente inequívoco de insegurança psicológica acerca do que somos. A norma que deveria reger nossa atitude moral perante o homossexualismo parece-me simples: na medida em que não interfira na liberdade do outro, o indivíduo é livre para fazer sexualmente o que quiser.

Dei tantas voltas, errei acima através de tantos becos que acabei perdendo a mulher de vista. Como dizia, preciso ser homem para desfrutar do privilégio de amar a mulher como somente o homem a pode amar. Minha grande ventura foi amar e ser amado pela mulher. É uma experiência indizível que, na medida do que pude e precisei, notadamente quando sofri a dor e a perda, quando precisei limpar a chaminé da minha memória atormentada pelo amor ido e perdido, tentei toscamente traduzir em poema, em prosa lírica, em estados de epifania irredutíveis à palavra. Além disso, senti-me sempre tolhido pela consciência de que trato de uma ordem de experiência privada. Quando falo de amor, implico o outro, a mulher que não me autorizou a identificá-la e despi-la nas linhas da minha crônica. Portanto, além de defender minha própria reserva, minha própria privacidade, importa ainda mais preservar a privacidade de quem amei, de quem mergulhou comigo nos labirintos inconfessáveis da carne, da intimidade inefável.

De resto, é devido às razões acima grosseiramente expostas que detesto a cultura da exposição narcisista dominante no cenário contemporâneo. Repisando um trocadilho preciso, as pessoas se evadem da privacidade com um gozo de ostentação e vulgaridade que me inspira aversão. Não vou, portanto, incorrer nas práticas que reprovo. Sendo assim, encerro minhas três crônicas num tom decerto banal para quem se meteu a levantar tanta poeira nas páginas precedentes. Seguindo com uma distinção que me parece oportuna, critico o discurso sobre o amor e o sexo na medida em que se confunde com a vulgarização que sempre o rebaixa, além de remover seus objetos da esfera privada para a exposição contaminada pelo exibicionismo, a vaidade, a inveja, a ostentação de poder, todos esses modos de ser negativos incompatíveis com o amor e o sexo tal como os entendo e procuro vivê-los.

Esclarecendo a distinção acima proposta, afirmo hoje que o amor precisa manifestar-se em palavra, precisa sempre prodigamente declarar-se ao outro amado. Num poema tardio (“Quero”, incluído em As impurezas do branco), Drummond enfatiza o quanto precisa do amor declarado, o amor traduzido em palavra à exaustão repetida. Somente assim, frisa o poema, o poeta se sente amado. Lendo um dia esse poema, lembrei-me do quanto durante muito tempo me deixei trair pelo engano de que o amor deveria manifestar-se em ato, não em palavra. A palavra é fácil e frequentemente falsa. Isso todavia não anula a necessidade que temos de acreditar no amor do outro porque ele o declara. Talvez precisemos desse tipo de certeza precária ou confirmação simplesmente porque somos demasiado vulneráveis à incerteza, duvidamos demais do amor, duvidamos ainda da medida em que o merecemos. Além do mais, não bastasse a dúvida latejando na raiz do ser, duvidamos da sua duração quando o acreditamos real. Ele é hoje, mas será também amanhã? Essa insensatez corrói o amor, chega com frequência a ameaçá-lo, mas é com toda essa fragilidade insensata que no geral amamos.

O que sei é que aprendi, decerto tardiamente, porém ainda a tempo, aprendi a dizer o amor. Quando doravante voltar a vivê-lo, pois há ainda tempo para amar e amar com a maturidade serena que em mim tenho lavrado, direi o amor sempre que possível e necessário, sempre até quando prescindível. Nossa experiência do amor, nossa carência dele, tudo isso é incerto demais, precário demais para que a gente se contente simplesmente em vivê-lo enquanto ato. O poeta tem razão: é preciso dizer sempre o amor, dizê-lo todos os dias, quando de fato amamos. Contudo, é preciso antes encontrar o amor. E a verdade que antes a mim me toca, que antes em mim me fere, além da que observo à minha volta, é que andamos pobres de amor, andamos desavindos do amor. Assim, como tem sido difícil valer-me do privilégio de ser homem para amar a mulher num sentido somente concebível para quem é homem!

Já que acima aludi a Drummond, que até em matéria de amor é mais meu poeta do que românticos extremos como Vinícius de Moraes, concluo citando a quadra inicial de um dos seus poemas que não me canso de ler:
“Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva”.
Recife, 7 de agosto de 2012.

Um comentário:

  1. Posto abaixo mais um comentário anônimo. Adianto que dou razão ao comentário. O que está na raiz de tudo é o amor. Por isso, apesar das tantas digressões e atalhos das crônicas, é dele que irradiam todos os descaminhos que interrogo.

    Lendo a última das crônicas e juntando com as outras, creio que o autor, a despeito de imergir em outras searas, fala mesmo é do "Amor, pois que é palavra essencial", pois "Além do amor, não há nada, amar é o sumo da vida". Não sei responder onde está o amor, mas "Amor é primo da morte/e da morte vencedor,/por mais que o matem (e matam)/a cada instante de amor". Então, homens, mulheres e outros, pouco importa: "Depressa, que o amor/não pode esperar!". Parabéns pela sua escrita.

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