sábado, 4 de agosto de 2012

Deus me livre de ser mulher


Começo com uma confissão estarrecedora: desejei ser mulher quando era adolescente. Por isso invejei minha irmã mais velha, muito parecida comigo. Antes que pensem mal de mim (ou bem, já não se sabe), narro abaixo as devidas e indevidas explicações. Esse desejo repontou na minha consciência quando me tornei medroso da vida. Contei mais de vinte cicatrizes no meu corpo. Era a consequência de ser um diabinho solto nos campos, embora fosse ao mesmo tempo um garoto introvertido e sensível, tão recolhido dentro de mim em certos momentos que hoje bem poderiam pregar-me o diagnóstico banal de depressivo.

Solto no mundo, sem mãe ou rédea para me prender, vivia acumulando acidentes e desastres: queda de cavalo, de trem, pois vivia danado pulando de trem em movimento, fuga de boi brabo, três pedradas na cabeça, riscos de afogamento nas águas do rio que vazavam nas enchentes de inverno. No futebol, paixão obsessiva, levava muita pancada, pois jogava bem e era leal ao extremo do descuido. Queda de bicicleta guiada às loucas, de carrossel e outros brinquedos perigosos instalados na rua durante as festas de fim de ano. Várias mordidas de cachorro. Fragmento de bala alojado na minha perna quando assistia à disputa de tiro ao alvo dos homens embriagados em um piquenique. O pior foi a queda de uma árvore que por pouco não me arrebentou e ainda me despachou para o hospital. Enfim, vivia com o corpo marcado por todos os excessos e traquinadas da minha infância e adolescência sem governo.

Ainda pior foi o vaticínio supersticioso de minha avó. Alarmada diante de tantos acidentes, vendo-me sangrar e sofrer em todo tipo de circunstância, minha avó acabou acreditando que eu nascera para ser mártir. Pior que tudo foi o fato de eu próprio acreditar na sua superstição reforçada pelo coro de todos os crentes que me cercavam: parentes, amigos, vizinhos, um sombrio coro de cassandras selando minha desgraça. Daí brotou meu medo da vida, a premonição de que tudo sempre acabaria mal para mim. Ninguém imagina o quanto precisei lutar comigo para me libertar desses fantasmas que me encolheram a coragem e me privaram de arriscar caminhos e aventuras que teriam feito minha adolescência ainda mais conturbada, porém com certeza mais triunfante e forte.

Em contraste com a triste sina acima lambuzada com palavras que palidamente a exprimem, minha irmã me parecia protegida da vida como uma donzela de castelo: nenhuma das minhas cicatrizes, nenhum dos meus medos em face da adversidade e dos acasos desastrosos. Fechada na segurança da casa, fechada dentro dos muros do colégio de freiras, minha irmã simbolizava a segurança de que eu tanto carecia, a proteção sonhada contra os perigos do mundo. Daí (compreendem agora minhas razões?) meu desejo de ser mulher como ela. Ah, comigo fantasiava, como seria bom viver a segurança de ser mulher num mundo tão violento!

Talvez precise ainda acrescentar, para melhor descrever o mundo da minha infância, que no mundo rural pernambucano não havia fronteira entre o menino, o adolescente e o homem. Isso quer dizer que muito cedo mergulhei nos prazeres e riscos característicos do mundo adulto. Muito cedo me vi às voltas com o mundo de homens brutos, crus no trato com a sexualidade e sempre às bordas da violência. Era portanto previsível que assistisse a cenas de briga, socos, facada, toda sorte de violência. Aos dez anos fumava. Meu primeiro porre, grande trauma da minha infância, tomei-o com sete anos de idade. Ainda menino, vivia metido com jogos de azar, aprendendo putaria, fugindo de casa para as noites de serenata, me espojando na poeira do mundo baixo que é objeto de desejo e fantasia de toda criança mordida pela serpente da curiosidade. Não precisamos de Freud para saber, pelo menos depois dele, que o sexo é a matriz dessa curiosidade.

Eis que um dia, já não lembro quando nem precisamente como, penetrei na singularidade do mundo feminino o suficiente para me dizer aliviado por ser homem: Deus me livre de ser mulher! Esta conclusão logicamente decorreu da experiência acumulada o suficiente para que revisse minha equivocada noção de segurança distinguindo os gêneros, as possibilidades e escolhas de vida abertas ou fechadas na trajetória genérica traçada pela mulher e pelo homem na vida. Como afirmei, não lembro quando nem como respirei aliviado por ser homem. Mais que aliviado, descobri que ser homem era um privilégio, uma superioridade injusta, mas de qualquer modo uma superioridade, aferível no reino da natureza e da sociedade.

A essa altura ouço as pedras repicando no meu telhado de vidro. Um frio me corre a espinha ao ouvir o alarido das minhas amigas, da leitora ocasional que talvez nem conheça. Como ouso - eu que parecia tão normal, até delicado, dizem algumas amigas mais generosas – repisar com tamanha desfaçatez os chavões grosseiros urdidos e encardidos por nossa violenta e deplorável tradição patriarcal e machista? “La femme est l´avenir de l´homme”, como escreveu o poeta francês Louis Aragon. Na França o futuro pode ser mulher, mas o passado e o presente, pelo menos no Brasil, estão ainda longe do ideal feminino que, sem demagogia, desejaria real. Bem, para não me expor ao risco de deslizar na demagogia fácil do feminismo de academia e outras modas equívocas, conviria precisar melhor o que seria ou será esse futuro mulher, ou futuro feminino. Espero que o que virá abaixo torne minha perspectiva mais apreensível e compreensível – ou até perdoável, sei lá!

Começarei por revisar minha percepção míope do lugar ocupado pela minha irmã no mundo da minha infância e adolescência, também no que veio em seguida. Descobri que minhas cicatrizes, as pancadas que sofri, físicas e psíquicas, eram o preço cobrado pela liberdade que a vida lhe suprimia. Minha irmã não levou as pancadas que levei simplesmente porque o sistema de opressão secular em que vivia, nosso velho patriarcalismo, lhe impôs os muros do internato de freiras, a mordaça da religião - ministrada por mulheres, convém lembrar - e as formas de repressão interna correspondentes já denunciadas pelas mulheres – também pelos homens, convém não esquecer – conscientes da opressão social imposta à mulher. Suportei as pancadas parcialmente explícitas acima para ter acesso a uma forma de liberdade incogitável para minha irmã.

Também friso que muitas das pancadas foram fruto do azar, é o que ainda penso. Afinal, por que as pedras caíam exatamente sobre a minha cabeça, quando havia tantas à minha volta? Por que o trem descarrilhou para atrair minha curiosidade insaciável montada num cavalo em disparada dentro da noite, suas estradas desertas, o risco do atropelamento nas curvas imprevistas? Por que os vira-latas mordiam precisamente minha perna ou até minha orelha? Por que a sede do rio ameaçando tragar-me, afogar a mim quando havia tantos mais insensatos e imprestáveis? Por que o azar elegeu-me sua vítima preferencial, era isso o que me perguntava aflito e a superstição de minha avó e das cassandras dos canaviais replicavam mirando pesarosas meu corpo de mártir.
Minha irmã cresceu num mundo vedado à participação ativa da mulher. Enquanto eu desfrutava da liberdade de ser um diabinho solto na capoeira, levantando poeira na estrada e praticando o mal e a injustiça embalado pela santa inconsciência da infância e da adolescência, minha irmã vivia fechada por trás de sete chaves. Seu mundo era o da casa regida pela repressão, a virgindade compulsória, os horizontes mesquinhos de uma vida sem riscos, possibilidades e aventuras de qualquer natureza. E ai da louca ou rebelde que ousasse pular o muro, derrubar a cerca, invadir o mundo dos homens, que era a rua compreendida no sentido literal e sobretudo figurado. O mundo, o grande mundo era invenção e propriedade dos homens. Se alguma mulher ousasse saltar a fronteira nítida que separava os gêneros injustamente divididos, o preço cobrado era quase sempre a desonra, a exclusão social, no mínimo o preconceito implacável e a polícia impiedosa da vizinhança e da religião impondo cadeias à carne da mulher e tolerância hipócrita e complacente diante dos desmandos do homem.

Hoje, claro, a realidade é outra. O século vinte foi sem dúvida o século da mulher. Quero dizer, foi no seu decorrer que a mulher gradualmente desaferrolhou as portas, rompeu cadeias, aboliu a fronteira secular entre a rua e a casa, desatou muitos dos nós materiais e simbólicos da sua servidão. Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores contemporâneos, afirmou que o fenômeno histórico mais positivo do século vinte foi a mudança radical da condição social da mulher. Num século de tantos horrores e catástrofes sem precedente histórico – como guerras, revoluções, genocídios, destruição praticada em escala assombrosa – o grande sopro de renovação da história consistiu na ascensão da mulher a praticamente todas as esferas significativas da sociedade, à conquista de uma liberdade que mudou radicalmente a face do mundo, as relações de gênero, o ordenamento ético e afetivo da família, o lugar do corpo e da sexualidade na esfera dos costumes.

Ora, se tanto reconheço, como então justificar o título do meu artigo? Será acaso propaganda enganosa, jogada de marketing barato para atrair a atenção da leitora desprevenida ou ansiosa por uma polêmica sem acordo ou termo? Não é bem assim, já que do meu conto contei apenas meio conto. Apesar do parágrafo precedente, no qual sumariamente celebro o grande feito das mulheres na história recente, sabemos muito bem que nem tudo é azul nesse mar que descortino. Quantas mulheres não se queixam ressentidas, não raro com razão, do preço que hoje pagam pela liberdade conquistada? É aqui que repiso meu bordão polêmico: Deus me livre de ser mulher!

A mulher saltou o muro e a cerca, arregaçou as mangas, encurtou a saia, profanou seu corpo antes fechado à chave, envolto em sedas e outras máscaras que lhe abafavam a carne e foi para o campo de batalha ao lado e com frequência contra o homem. Este, encolhidos seus poderes, afrouxada a tirania exercida sem contestação, revidou do modo previsível. Mas é certo que as mudanças não se fazem apenas com conflito, batalhas intransigentes travadas entre forças antagônicas. Menos ainda nesse conflito, que tantas vezes começa ou acaba na cama compartilhada, no desejo imperativo que atrai e atrita essas duas metades complementares, mas irredutíveis, dependentes, mas também litigiosas. O que parece, nesse confronto entre termos ambivalentes e inapartáveis, pois ambos se querem e se precisam até para preservar a espécie (melhor dizendo, para superpovoar o mundo), o que parece, dizia eu, é que a batalha se sobrepôs à conciliação entre os sexos. Aguardem o próximo capítulo desta novela sem final feliz aparente.

2 comentários:

  1. Muito bom velhinho, mas eu ainda queria ter nascido homem.Bj.

    Da amiga desprezada.

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  2. Papisa: Eu também. Esta é uma das nossas diferenças irredutíveis: sou o que você gostaria de ter sido. Portanto, só lhe resta ser o melhor possível enquanto mulher. Não acha?

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