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quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Intelectual Brasileiro e Fracasso


Um dia, lendo a última entrevista que Antonio Callado concedeu antes de morrer, impressionou-me o tom depressivo com que se referia ao Brasil. Salvo traição de memória, foi nessa entrevista que declarou ser o Brasil um país incapaz de grandeza que não fosse geográfica. Considerei então o fato de que lia um escritor esclarecido e combativo. Não lia eu, noutras palavras, uma entrevista concedida por um velho insciente que houvesse vivido uma vida de acomodação e transigência com as coisas pequenas da vida.

Como outros intelectuais brasileiros socialmente empenhados e generosos, Callado pagou bastante por sua combatividade. De formação européia, particularmente inglesa, retornou ao Brasil com sede de conhecê-lo, inspirado pela determinação de participar das lutas sociais que, assim tantos acreditaram, elevariam este país a um patamar de civilização passível de corrigir nossas iníquas heranças históricas. E eis que depois de anos de luta esse homem chega às bordas da morte declarando sinceramente sua completa descrença no Brasil.

A entrevista simbolizava, em suma, o testemunho de um fracasso antes coletivo do que individual, pois a trajetória biográfica de Callado, pelo menos dos anos cinqüenta à sua morte, foi a de muitos outros brasileiros tocados pela convicção e a coragem de transformar este país numa autêntica democracia moderna. Muitos, descrentes do ideário liberal, não importando de que procedência, acreditavam que a única via possível seria a revolucionária. Mais exatamente, uma revolução inspirada pelo marxismo. Contudo, não discutirei isso. Importa-me aqui considerar apenas a experiência do fracasso. Como frisei, não apenas o fracasso pessoal de Callado, mas o de muitos outros que objetivamente traçaram percurso ideológico e político semelhante.

Anos mais tarde, a meio de uma aula para meus inconscientes alunos de pedagogia, ocorreu-me observar que todos os intelectuais que selecionara para o programa da minha disciplina tinham em graus variáveis acabado mais ou menos como Callado. Não bem no sentido de externar uma visão final do país igualmente sombria e descrente, mas igualmente fracassados. Melhor dizendo: vencidos. Alguns poderiam não admitir seu fracasso individual ou geracional, mas todos foram de alguma maneira punidos por lutarem para reformar positivamente este país, todos foram vencidos pelo poder dos dominantes tradicionais.

Minha idéia, dentro da disciplina que então ministrava para uma turma do curso de pedagogia, era apresentar um pouco da história da educação brasileira a partir de realizações e experimentos liderados por alguns intelectuais inconformados com o nosso atraso, esperançosos de contribuir para a resolução de entraves crônicos da nossa ordem institucional. Assim pensando, incluí no meu programa de curso gente como Anísio Teixeira, Mário de Andrade, Darcy Ribeiro, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Josué de Castro, Paulo Freire. Como acima observei, foi assim de repente, a meio de uma aula, que me apercebi desse fato significativo: todos esses intelectuais foram em graus variáveis punidos pelo crime de se empenharem numa luta coletiva para transformar o Brasil, todos acabaram vencidos. Antonio Candido seria a provável exceção, já que foi poupado até pelo AI-5. No plano da disposição psicológica ou subjetiva, a exceção mais provável seria Darcy Ribeiro. Otimista incorrigível, como ele próprio reconhecia, penso que morreu ainda possuído pela esperança insensata – e infundada, quem sabe acrescentaria Antonio Callado – de ver o Brasil convertido a seus ideais utópicos.

Talvez o caso melhor documentado dessa ordem de fracasso, na qual se mesclam e por vezes confundem-se o plano individual e o coletivo, seja o de Mário de Andrade. Uma larga fração da evidência disponível em defesa do meu argumento está contida na sua correspondência, notadamente a que endereçou a Paulo Duarte e Oneyda Alvarenga. Mas o documento supremo é sem dúvida Mário de Andrade por Ele Mesmo. Neste livro organizado e em parte escrito por Paulo Duarte, encontra-se a expressão talvez mais aguda, detalhada e dolorosa de um fracasso: o de Mário de Andrade. Mas é também, como nos casos precedentes acima meramente sugeridos, um fracasso coletivo. É também, claro, o fracasso de Paulo Duarte, que além disso, mais radical e comprometido do que Mário, amargou um exílio político.

Restrito ao comentário psicológico, atinente ao estado de espírito observável no intelectual brasileiro militante, quero traçar um ligeiro paralelo entre o Mário dos anos 20, tocado pelo ardor da revolução estética, e o Mário declinante, o que morre prematuramente crivado por angústias e irresoluções penosas. Este último é o Mário que em meados dos anos trinta renuncia à elaboração de uma obra de criação artística, ou esteticamente autônoma perante as causas e lutas sociais do tempo, para mergulhar de cabeça num ambicioso projeto de reforma das instituições culturais enraizado no Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Esse projeto de algum modo traduz o deslocamento da ação militante de Mário do âmbito estético – o modernismo de vanguarda do início dos anos vinte, acrescido do nacionalismo cultural – para o ideológico no sentido em que João Luiz Lafetá certeiramente caracterizou ambos no seu livro 1930: A Crítica e o Modernismo.

Mário tinha o perfil do apóstolo da cultura. Como o engajamento intelectual é algo hoje bem fora de moda, não faltaria quem dissesse que foi apenas vítima de sua culpa cristã. Outros diriam ainda que era vítima de sintoma deslocado. Quero dizer: incapaz de solucionar problemas de raiz nitidamente pessoal – como sua homossexualidade represada, por exemplo, tema ainda curiosamente tão nebuloso num país que se orgulha de sua sensualidade infrene – teria ele deslocado suas angústias e impasses para o plano das lutas culturais e ideológicas. Há aí, claro, muito de barata redução psicanalítica. Mas o fato é que já ouvi explicações desse tipo emitidas por gente inteligente. Houve até um amigo homossexualmente reprimido que certo dia me perguntou, quando num círculo de amigos inscientes pregaram-me a má fama de saber tudo sobre Mário, se ele era homossexual. O pouco que conheço sobre Mário refere-se ao que viveu fora da porta do quarto, foi minha resposta.

Argumentos genéticos à parte, é inegável que Mário foi um homem atormentado nos últimos anos de sua vida. Paulo Duarte argumenta que foi assassinado (confesso não me lembrar do termo exato que emprega e estou com preguiça de remover seu livro da prateleira para eventualmente me corrigir) pelo Estado Novo. Afastado da direção do Departamento de Cultura, portanto impedido de prolongar um projeto de política cultural que já rendera frutos admiráveis, Mário mergulhou num misto de depressão e revolta. A isso acrescentaram-se sintomas freqüentes de saúde debilitada, além de extremos de hipocondria e angústia existencial bastante documentados nas cartas escritas durante a etapa final de sua vida – notadamente, já antes acentuei, as que endereçou a Paulo Duarte e Oneyda Alvarenga.

Mas noto agora, já saltando de parágrafo, o quanto me contradigo. Alego deixar os argumentos genéticos à parte e logo enfio um outro, este de natureza política. A acusação feita por Paulo Duarte ao Estado Novo tem muito de discutível. Antes de tudo, é proposta por um inimigo passional de Getúlio Vargas e da ditadura que este instituiu em 1937. Em segundo lugar, toca diretamente os interesses e convicções do próprio Paulo Duarte, embora ele se refira tão-só a Mário de Andrade, seu parceiro de lutas e realizações culturais na política paulista da época. Importa assim ler com cautela sua acusação. Importa antes de tudo ler a mim próprio com cautela, pois comento um livro de leitura remota e não me tenta agora, já o disse, retomá-lo para melhor fundamentar estas notas livremente improvisadas.

Encerro estas anotações reiterando este fato que me parece significativo: que me lembre, todo intelectual que neste país em algum momento se opôs ao poder foi de algum modo punido. Friso aludir à oposição compreendida em sentido genérico. O próprio Mário está longe do revolucionário, do militante que quer mudar o mundo pondo a ordem institucional pelo avesso. Sua ação cultural e política, como a de tantos em diferentes momentos de nossa história acusados de subversão revolucionária, seria encarada, num país de instituições efetivamente democráticas, no máximo como expressão de liberalismo radical. Logo, a punição de que foi vítima traduz, antes de tudo, nossa incapacidade, ainda atual, de consolidarmos uma autêntica democracia moderna nestes trópicos insolúveis, não obstante a boa vontade de tantos que sinceramente os exaltam.

12 de novembro de 2008

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Igarapeba: Uma fábula nordestina


Por duas vezes Igarapeba foi arrancada da sua vil e sofrida obscuridade. A primeira, no início do remoto ano de 1964; a segunda, no dia 29 de junho deste ano, quando entrou no noticiário estadual e nacional graças às enchentes que devastaram muitas cidades e vilas de Pernambuco e Alagoas. A primeira data está associada à passagem de Antonio Callado por Igarapeba, então assaltada por um clima de mudança e agitação política absolutamente inéditas na sua história sem história. Callado veio do Rio de Janeiro para escrever uma série de reportagens sobre a tensa e potencialmente explosiva situação política de Pernambuco, sobretudo na região dos canaviais ainda amarrados a relações de produção e trabalho típicas do Brasil colonial. As reportagens, mais tarde enfeixadas no volume Tempo de Arraes, foram publicadas no Jornal do Brasil poucos meses antes do golpe militar que sufocou as transformações em curso no país e particularmente em Igarapeba.

Na reportagem, depois capítulo de livro, intitulada “Fábula da Igreja e do Partido Comunista”, Callado descreve a atmosfera de tensão social liderada pelas duas forças empenhadas na hegemonia do nascente movimento dos trabalhadores organizados em sindicatos rurais: a Igreja católica, tradicional aliada da oligarquia regional, e o partido comunista orquestrado pelo combativo Gregório Bezerra. Callado foi a Igarapeba entrevistar o padre Edgar Carício, líder do sindicato rural na região que compreendia a vila de Igarapeba. Citando o próprio Callado, o encontro ocorreu “... em Igarapeba, um fim de mundo a 175 km de Recife, à beira do grandioso e pérfido Rio Piranji”. O adjetivo grandioso entra na frase, convenhamos, como um cochilo retórico do admirável romancista. Pérfido, com suas águas contaminadas pela calda das usinas e da miséria ribeirinha, o Piranji sempre foi; grandioso, apenas quando seu volume ameaçador transbordava durante as enchentes ocasionais. É o que agora volta a acontecer, só que num grau de devastação sem precedente.

Liguei a TV ontem à noite para ver o noticiário sobre as enchentes na tradicional zona canavieira de Pernambuco. De repente, vejo Igarapeba enquadrada em planos gerais filmados de um helicóptero. Em seguida, cenas filmadas na própria vila: as águas do rio grandioso e pérfido rolando barrentas, os vestígios da ponte destruída, único ponto de conexão entre a vila e a estação ferroviária, que há muito não acolhe trens, e a estrada sinuosa e lamacenta que conduz à rodovia e à “civilização” pernambucana. Por fim o povo, o mesmo povo da minha infância. Vê-lo na TV, com seus corpos retalhados pela miséria e o obscurantismo daquele mundo sem história é repor na minha consciência e memória o pior de minha infância. Quando Antonio Callado passou por Igarapeba, eu, ainda menino, vivia já no Recife, onde vim estudar com toda a minha família. Sendo assim, nada sei em termos de experiência vivida de tudo que aconteceu naquele remoto e turbulento ano do governo Arraes.

O que sei, ouvindo o repórter da Globo enquanto a câmera enquadra planos da vila, é que três coisas cresceram em Igarapeba desde a esquecida passagem de Antonio Callado pelas suas poucas ruas: a população, a miséria e a força destrutiva do pérfido Piranji, agora justamente grandioso. À fábula ironicamente esboçada nas páginas das reportagens e do livro de Callado soma-se uma outra, ainda mais terrível: a da inércia social e política que há séculos castiga uma região assolada pela miséria e o desamparo das gentes. A enchente traz para Igarapeba e sua população irreparavelmente sofrida apenas essa dádiva divina: Igarapeba está na Globo, Igarapeba enfim existe para o Brasil, talvez para o mundo que sopra histericamente suas vuvuzelas para animar em escala global uma Copa do Mundo que tem mais ruído do que futebol.

Por fim, um outro sopro de memória acionado pela reportagem da Globo. Custa-me ainda compreender o arbítrio da memória humana que recria num passado tão brutal apenas os traços nostalgicamente transfiguradores da realidade. Aludo, noutros termos, aos processos psíquicos que nos transportam de volta à infância vivida entre escravos, desvalidos e tantas outras formas brutais de opressão selecionando desse mundo submerso apenas as memórias de beleza e gratificação egocêntrica. Penso, por exemplo, na célebre passagem de Minha Formação na qual Joaquim Nabuco, nosso grande abolicionista, recria nostalgicamente sua infância de senhor de escravos; penso nos meus parentes e amigos provenientes de Igarapeba, que organizam anualmente um Encontro dos Amigos de Igarapeba para celebrar um passado que idealmente recorta apenas a memória conveniente à nossa natureza egoísta. É por essas e outras que cultuamos o mito da infância feliz. Em contraponto, penso em Infância, de Graciliano Ramos, obra rara na grandeza com que investe contra nossas entranhadas mitificações do passado e da infância.

Passada a enchente, que deixará rastros de miséria ainda maiores do que aqueles secularmente enraizados na vida dos igarapebenses, Igarapeba afundará novamente na sua vil e sofrida obscuridade. Seus poucos privilegiados, os que de lá saíram para viver uma vida melhor, certamente renovarão o encontro anual no qual confraternizam por um dia na igrejinha da vila com os humilhados e ofendidos condenados a mofar naquela Sibéria tropical. Como a fábula da miséria nordestina se prolonga através de séculos sem vestígios de solução aparente, é provável que no futuro próximo sobrevenha outra enchente de semelhante magnitude para repor Igarapeba no noticiário do Brasil, talvez do mundo.
Recife, 30 de junho de 2010.