quinta-feira, 1 de julho de 2010
Igarapeba: Uma fábula nordestina
Por duas vezes Igarapeba foi arrancada da sua vil e sofrida obscuridade. A primeira, no início do remoto ano de 1964; a segunda, no dia 29 de junho deste ano, quando entrou no noticiário estadual e nacional graças às enchentes que devastaram muitas cidades e vilas de Pernambuco e Alagoas. A primeira data está associada à passagem de Antonio Callado por Igarapeba, então assaltada por um clima de mudança e agitação política absolutamente inéditas na sua história sem história. Callado veio do Rio de Janeiro para escrever uma série de reportagens sobre a tensa e potencialmente explosiva situação política de Pernambuco, sobretudo na região dos canaviais ainda amarrados a relações de produção e trabalho típicas do Brasil colonial. As reportagens, mais tarde enfeixadas no volume Tempo de Arraes, foram publicadas no Jornal do Brasil poucos meses antes do golpe militar que sufocou as transformações em curso no país e particularmente em Igarapeba.
Na reportagem, depois capítulo de livro, intitulada “Fábula da Igreja e do Partido Comunista”, Callado descreve a atmosfera de tensão social liderada pelas duas forças empenhadas na hegemonia do nascente movimento dos trabalhadores organizados em sindicatos rurais: a Igreja católica, tradicional aliada da oligarquia regional, e o partido comunista orquestrado pelo combativo Gregório Bezerra. Callado foi a Igarapeba entrevistar o padre Edgar Carício, líder do sindicato rural na região que compreendia a vila de Igarapeba. Citando o próprio Callado, o encontro ocorreu “... em Igarapeba, um fim de mundo a 175 km de Recife, à beira do grandioso e pérfido Rio Piranji”. O adjetivo grandioso entra na frase, convenhamos, como um cochilo retórico do admirável romancista. Pérfido, com suas águas contaminadas pela calda das usinas e da miséria ribeirinha, o Piranji sempre foi; grandioso, apenas quando seu volume ameaçador transbordava durante as enchentes ocasionais. É o que agora volta a acontecer, só que num grau de devastação sem precedente.
Liguei a TV ontem à noite para ver o noticiário sobre as enchentes na tradicional zona canavieira de Pernambuco. De repente, vejo Igarapeba enquadrada em planos gerais filmados de um helicóptero. Em seguida, cenas filmadas na própria vila: as águas do rio grandioso e pérfido rolando barrentas, os vestígios da ponte destruída, único ponto de conexão entre a vila e a estação ferroviária, que há muito não acolhe trens, e a estrada sinuosa e lamacenta que conduz à rodovia e à “civilização” pernambucana. Por fim o povo, o mesmo povo da minha infância. Vê-lo na TV, com seus corpos retalhados pela miséria e o obscurantismo daquele mundo sem história é repor na minha consciência e memória o pior de minha infância. Quando Antonio Callado passou por Igarapeba, eu, ainda menino, vivia já no Recife, onde vim estudar com toda a minha família. Sendo assim, nada sei em termos de experiência vivida de tudo que aconteceu naquele remoto e turbulento ano do governo Arraes.
O que sei, ouvindo o repórter da Globo enquanto a câmera enquadra planos da vila, é que três coisas cresceram em Igarapeba desde a esquecida passagem de Antonio Callado pelas suas poucas ruas: a população, a miséria e a força destrutiva do pérfido Piranji, agora justamente grandioso. À fábula ironicamente esboçada nas páginas das reportagens e do livro de Callado soma-se uma outra, ainda mais terrível: a da inércia social e política que há séculos castiga uma região assolada pela miséria e o desamparo das gentes. A enchente traz para Igarapeba e sua população irreparavelmente sofrida apenas essa dádiva divina: Igarapeba está na Globo, Igarapeba enfim existe para o Brasil, talvez para o mundo que sopra histericamente suas vuvuzelas para animar em escala global uma Copa do Mundo que tem mais ruído do que futebol.
Por fim, um outro sopro de memória acionado pela reportagem da Globo. Custa-me ainda compreender o arbítrio da memória humana que recria num passado tão brutal apenas os traços nostalgicamente transfiguradores da realidade. Aludo, noutros termos, aos processos psíquicos que nos transportam de volta à infância vivida entre escravos, desvalidos e tantas outras formas brutais de opressão selecionando desse mundo submerso apenas as memórias de beleza e gratificação egocêntrica. Penso, por exemplo, na célebre passagem de Minha Formação na qual Joaquim Nabuco, nosso grande abolicionista, recria nostalgicamente sua infância de senhor de escravos; penso nos meus parentes e amigos provenientes de Igarapeba, que organizam anualmente um Encontro dos Amigos de Igarapeba para celebrar um passado que idealmente recorta apenas a memória conveniente à nossa natureza egoísta. É por essas e outras que cultuamos o mito da infância feliz. Em contraponto, penso em Infância, de Graciliano Ramos, obra rara na grandeza com que investe contra nossas entranhadas mitificações do passado e da infância.
Passada a enchente, que deixará rastros de miséria ainda maiores do que aqueles secularmente enraizados na vida dos igarapebenses, Igarapeba afundará novamente na sua vil e sofrida obscuridade. Seus poucos privilegiados, os que de lá saíram para viver uma vida melhor, certamente renovarão o encontro anual no qual confraternizam por um dia na igrejinha da vila com os humilhados e ofendidos condenados a mofar naquela Sibéria tropical. Como a fábula da miséria nordestina se prolonga através de séculos sem vestígios de solução aparente, é provável que no futuro próximo sobrevenha outra enchente de semelhante magnitude para repor Igarapeba no noticiário do Brasil, talvez do mundo.
Recife, 30 de junho de 2010.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Meu caro e querido Fernando,
ResponderExcluirNão escrevo diretamente no seu blog, ainda sob o impacto da leitura do seu antológico texto, porque, como você sabe, não sei fazer isso! (Mas se você souber e quiser fazer o transporte desta mensagem para o blog, sinta-se à vontade.)
Seus textos sempre são de qualidade superior, mas este especialmente tem um tal sopro de humanidade dilacerada pelo "grandioso" Piranji, que emociona. Venho também do que já foi uma pequena cidade do agreste (no caso, sergipano), da mesma maneira que Graciliano, citado pela referência ao belo e terrível "Infância" (livro que Olívio Montenegro disse ter sido escrito com uma "crueldade desumana"), vinha de outra pequena cidade de mesma configuração geográfica e econômica - o agreste. Nessa pequena faixa nordestina entre a zona da mata e o sertão, a miséria sempre foi menor e menos aviltante, tenho a impressão, porque, de um lado, não predominou a monocultura da cana-de-açúcar e toda a brutalidade que ela traz consigo, nem, de outro, a seca que assola nosso vasto interior semi-árido. Mas ainda assim tive minha própria infância povoada por pobres diabos parecidos com aqueles que a gente vê agora incessantemente na televisão. Daqui a pouco desaparecerão. Voltarão à sua "vil e sofrida obscuridade", como você diz com tanta intensidade.
Ao mesmo tempo, penso que, malgrado tudo, do ponto de vista material houve mudanças a que, como intelectuais, sociólogos, o que seja, devemos estar atentos. Boa parte dos miseráveis hoje, quando perdem tudo, não perdem apenas as casas, porque com elas vão geladeira, televisão, sofá... Ou seja: também os pobres tornaram-se consumidores no Brasil. Mas a miséria parece a mesma... De certo modo, mais feia, porque hoje em dia um flagelo desses, quando passa, deixa um entulho de coisas reviradas e destruídas, como lixões a perder de vista. O velho problema continua o dos abismos sociais. Os índios, por exemplo, são "pobres"! Não têm TV, sofá ou geladeira. (Quer dizer, os cada vez mais poucos índios que ainda restam não contaminados pelo entorno civilizado...) Mas não são miseráveis. A miséria é uma outra categoria, que pode coexistir com a posse de quinquilharias materiais. Nesse sentido, as pessoas continuam com aquela cara de pobre diabo. Desdentadas, ignorantes, brutas... Mas, muitas vezes, gordas, pelo consumo de biscoito barato... Não o fino biscoito de Oswald, óbvio!
Era isso, meu amigo.
Uma pequena nota dissonante e que não tem nada a ver com o precendente.
En passant você se refere à Copa como tendo mais ruído do que futebol.
Num certo sentido, concordo.
Não concordo é quando - sobre isso já discutimos... - você, pensando nas velhas Copas da nossa juventude cada vez mais longínqua, põe-se a achar que naquele tempo havia mais futebol!
Não creio.
Para provocar, creio mesmo que, aqui, você cai na armadilha que tão bem detecta nos igarapebenses de hoje nostálgicos de uma Igarapeba mais amena e que, na verdade, só existe na memória seletiva dos que a cultuam... Nessa época de Copa, os canais pagos vivem mostrando velhas partidas que fazem parte da nossa memória mais afetiva e, portanto, seletiva. Revi um tempo desses aquele histórico, emocionante e eletrizando Brasil X Inglaterra de 1970. Foi um jogo feio! Todos dois com medo um do outro. Teve até chutão de Pelé que foi parar na arquibancada...
Abração,
Luciano Olveira
Luciano:
ResponderExcluirSeu comentário, que basta para me gratificar por tudo que tentei enfiar nas linhas e entrelinhas do meu breve artigo, exigiria de mim um outro artigo,se acaso quisesse responder à altura das suas ponderações e críticas. Acredite que é isso o que penso fazer. Antes disso, porém,ressalto que não me passa pela cabeça negar as evidentes mudanças de caráter material indicadas no seu comentário. Afinal, há um intervalo de cerca de 60 anos entre a visita de Antonio Callado a Igarapeba e essa terrível arrebentação do Piranji. O que o tom do meu artigo sugere, quando não explicita, é uma estrutura sócio-política que se conserva intocada na sua substância. Mais que isso, nas entrelinhas insinuo meus vínculos subjetivos profundos com Igarapeba e meu passado remoto que um leitor astuto como você decerto percebe. Quanto à crítica relativa à Copa, que a seu ver traduz minha forma irônica de nostalgia, já que critico a alheia, a isso responderei no artigo que lhe estou aqui prometendo. Muito grato pelo comentário.
Fernando.
Dear Fernando Mota.
ResponderExcluirFiquei comovido com teu texto sobre a enchente que devastou Igarapeba. Você consegue tirar o que há de atemporal na tragédia. O apolínio e o dionisíaco.
Mas uma imagem vale por mil palavras e dois mil palavrões. E a foto que você jogou no alto da página me deixa aliviado. Igarapeba é a réplica brasileira de Röcken e você um Nietzsche à sua altura. Metafórico, poético e aforismático.
Um abraço
Paulo
Dear Cap:
ResponderExcluirMuito grato pela leitura e comentário. Se você não renegasse suas origens, investiria agora algo do seu talento jornalístico e inventividade literária para dedicar a sua esquecida cidade, também castigada pelos desastres esboçados na minha crônica, um artigo tecido de fato e memória. Com o abraço afetuoso de
Fernando.
Por uma nova Igarapeba
ResponderExcluirFernando você parece um Hércules degolado que não se cansa de fugir de Igarapeba. Porém não encontra a fuga definitiva,talvez por que para sua família Igarapeba seja um fantasma persecutório. A imagem de fundo que você me suscita é a de um Pai Igarapebense castrador-castrado. Se isso é verdade, estamos de fato diante de um fantasma apavorante. Do qual você não nos liberta por que você dá voltas e voltas e não o plasma numa narrativa ficcional, como o fez Graciliano Ramos em São Bernbardo.
Sua Igarapeba parece um caco de telha para coçar as chagas de um esmoler. Enquanto creio que Graciliano Ramos conseguiu na sua Igarapeba um ramo de de Arruda para o seu exorcismo. Ele superou algo que eu e você não conseguimos, o de exorcizar o fantasma edípico em Paulo Honório. O pai nordestino falido apesar do esforço hercúleo em superar a nossa mediocridade econômica.
Aparentemente você dá círculos no deserto, sem conseguir mergulhar em si mesmo e plasmar uma “síntese”, como o faz Graciliano no final de São Bernardo. Graciliano consegue mergulhar no seu Pai Honório, que depois de toda sua tentativa de por ordem no mundo, acaba impotente, solitário, derrotado, deitando-se na mesa sem conseguir ir dormir na cama onde ele semeou seus pesadelos.
A sua Igarapeba me faz mal. Sua impotência literária só faz eu me amargar mais na minha, pois tenho um romance de sete capítulos, aos quais só mal escrevi dois.
Mas sinto Fernandinho que além de ter toda a humanidade da sua amizade, a qualquer hora sairá uma pérola ficcional cheia de cães sem plumas, Rioblados, Paulo Honórios, no dia em que voc~e conseguir amar Igarapeba.
Por uma nova Igarapeba não sei se é um bom slogan pro prefeito, mas para você certamente será. Para mim também.
Dirceu:
ResponderExcluirLembrando Voltaire, não concordo com uma só palavra do seu comentário, mas defendo aqui no meu terreiro o direito de você escrevê-lo.
Fernando.
Boa noite fernando mota cocordo prenamete;só lamento pois temos en igarapeba muitas riqueza naturais ja tivemos mais min lebro que nos anos oitenta tinhamos, froresta infelismente foi destruido p/ pratação dos canavias,espero que um dia tudo possa mudar!
ResponderExcluir