quinta-feira, 8 de julho de 2010

Amor, Memória e Morte


Antes da morte definitiva – a que por fim nos apaga e enterra – morremos, ou vivemos, muitos modos de morte. Cada separação e perda amorosa, por exemplo, constitui um modo de morte simbólica. Ao perder minha mãe na infância – ademais de forma irreversível, pois corretamente intuí que nunca mais a veria – vivi e sofri uma das piores formas de morte simbólica. Cada amor perdido que se vai, podendo até definitivamente nos esquecer, representa uma morte simbólica. Assim, ao longo da vida morremos repetidas vezes para o outro - a cada vez que dele nos separamos ou o perdemos, a cada vez que nos rejeita e esquece – tanto quanto inversamente morre ele em nós e para nós. Todo ser humano, não importando quanto feliz e afortunado seja, vive em si inescapavelmente todos esses modos de morte. É isso o que significa morrer simbolicamente no outro e para o outro. Se somos incapazes de assimilar esses modos de morte, não somos livres para viver e menos ainda livres para viver as experiências fundamentais da vida, pois todas implicam algum modo de morte antes da morte definitiva.

De certo modo, é verdadeiro dizer-se que amamos para a separação e a perda, já que tudo na nossa condição é imperfeito e finito. Quem teme amar e perder, amar e sofrer, faces do amor entrelaçadas no seu modo ontológico de ser, não pode verdadeiramente amar. Ou recua antes mesmo de qualquer envolvimento efetivo, ou então ama sem verdadeiramente se dar aceitando no amor todos os riscos e padecimentos da perda, da traição, do vazio que sobrevém depois que o amor se rompe. As mulheres são mais íntegras e corajosas no amor do que os homens. Talvez porque para elas a realização amorosa esteja investida de um significado ausente na capacidade amorosa do homem, que de ordinário tende para a expressão centrífuga de sua energia libidinal.

O que nos salva da dor da separação, da perda e do esquecimento dela no geral decorrentes, é a memória. Diria mais que a memória, faculdade demasiado genérica e inapreensível em sua espantosa multiplicidade de manifestações; diria a memória generosa, capaz de acolher o amor, sobretudo depois de perdido, como o que ele de fato é dentro de nossa imperfeita medida humana de amor. A nostalgia é precisamente o oposto de tudo isso que aqui intento grosseiramente exprimir. Sei que é possível salvar na memória, quando tudo já se perdeu e no amor acolhemos sua dissolução irreparável, a beleza, o prazer inefável da felicidade que foi o que é dentro da ordem de seu modo de ser: a felicidade provisória, a que vem e um dia parte sem qualquer possibilidade de regressão. A memória generosa do amor perdido, da perda de tudo que nos dói perder, esse tipo tão raro e precioso de memória acolhe no fundo da perda sua perda irreparável.

Portanto, há verdade no paradoxo que me leva a acreditar que amamos para perder, nunca para esquecer. O amor verdadeiro e sábio, já que passível de salvar sua perda e imperfeição através da memória, esse modo de amor sobrevive em cada um de nós até o momento da morte definitiva, já não mais simbólica. Quero dizer: aquela que algum dia, bem o sabemos, nos colherá com ou sem aviso deste mundo. Sou livre para continuar amando meus amores perdidos se sou capaz de aceitá-los na fatalidade de sua condição e de minha condição humana: provisória, falível, sempre condenada a dissolver-se na mobilidade e finitude de tudo.

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