sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Eu


Eu é outros. Eu também
Sou tantos que nem me sei
Que até no outro ninguém
Sou o outro que em mim neguei.

Recife, 9 de janeiro de 2011.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Indivíduo e meio social


Há um desacordo irredutível entre o que somos por dentro, e até por fora, e o modo como a opinião alheia nos aprecia. Ser livre, na medida em que isso é possível, é libertar-se da tirania da opinião que não só nos vê como não somos, mas também nos escraviza à semelhança do que ela vê. Essa subordinação do indivíduo aos ditames da sociedade, ou do meio social, é corriqueira e de ordinário inconsciente, sobretudo num mundo governado pela ilusão da autonomia individual, por clichês publicitários segundo os quais somos livres para ser na vida o que quisermos. A medida da minha liberdade é a medida do meu desejo, eis o que a todo instante reiteram para nos venderem toda a sorte de produto. Lembrando Montaigne, convém não subestimar a medida da nossa cega adesão aos hábitos e convenções sociais. Por isso tantos reiteram impensadamente a ilusão de uma ordem de liberdade que não passa de automatismo induzido pela indústria do consumo.

Durante muito tempo de minha vida dei importância demasiada à opinião do outro, à sua apreciação equívoca, tantas vezes leviana e infundada, e às expectativas com que cercava minhas ações, não raro determinando-as, induzindo-me a fazer não aquilo que mais autenticamente me traduzisse, mas o que convinha à sua compreensão estreita, capricho ou mera rotina. Como se de algum modo assim me comandasse: seja assim simplesmente porque é assim que somos, ou porque se espera que assim sejamos. Foi talvez o excesso de desajuste prematuro dentro de uma comunidade mesquinha, ou a medida de uma excentricidade e estranheza que não escolhi, nem a princípio tive delas consciência, o que me impeliu a buscar vias de fuga e expressão humana orientadas para a realização do indivíduo chamado Fernando da Mota Lima.

Um dos fatos humanos que me persuadem da insuficiência das explicações sociológicas, embora seja eu um profissional desta discutível ciência, a sociologia, é a espantosa diversidade, e imprevisibilidade dos modos como o indivíduo reage às condições do meio. Quando o sociólogo teoriza sobre essa ordem de fatos sociais, invariavelmente sobrepõe o meio ao indivíduo. Isso independe de sua orientação teórica, que no contexto importa apenas para determinar os variáveis graus de subordinação do indivíduo ao meio, ou à sociedade. Admito que esta proposição geral é verdadeira quando aplicada à média humana convencional.

Os indivíduos que todavia se distinguem em todas as formas de relação e expressão social distinguem-se precisamente por contrariarem a proposição acima enunciada.
Não me refiro apenas ao indivíduo identificado pela ação heroica ou a excepcionalidade que o diferencia da massa ignara e conformista. Longe de mim a intenção de reivindicar uma concepção sociológica do herói ou do indivíduo extraordinário. Se é fato que ambos ratificam minha tese, não é fato que neles prioritariamente me baseie para sustentá-la. Penso antes em indivíduos comuns, no sentido de que se dissolvem no anonimato das massas. Noutras palavras, não gozam de nenhum tipo de fama ou reconhecimento social que lhes transportem o nome e a identidade para além do círculo em que suas vidas se manifestam. Privados embora de fama, ou qualquer tipo de glória, esses indivíduos existem contrariando com sua existência distintiva o suposto império que o meio sobre eles exerce. Não chegam a constituir uma multidão, fato que por certo representaria uma constante ameaça à ordem convencional da sociedade, mas não são tão minoritários quanto presumem os cultores do indivíduo herói. Posso dizer que conheci vários nos meios e nas circunstâncias mais diferenciadas a até imprevisíveis. A experiência que neles identifico e assimilo não concorre em nenhum sentido sociológico para a elaboração de uma teoria passível de explicar os modos fundamentais da relação indivíduo e sociedade. Seria absurda tamanha pretensão. Meu simples propósito é alertar contra qualquer ambição de determinismo sociológico.

Se o argumento acima esboçado tem alguma consistência, insisto em sustentar que tem, meu ponto de vista em defesa de um certo quinhão de autonomia e liberdade individual funciona como um antídoto para qualquer concepção determinista, para qualquer perspectiva pessimista levada ao extremo da impotência individual em face dos poderes do mundo. Apesar de tudo, apesar antes de tudo do meu próprio ceticismo, nunca duvidei de que o indivíduo pode realizar na vida algum ideal de liberdade que o distinga do conformismo corrente, da adesão resignada à ordem social, à opinião servil que o quer ratificando as expectativas falsamente sólidas do teatro social que representamos.

Diário, Recife, 02 de agosto de 2004.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O leitor e a integridade da obra


Durante anos tentei – sem muito empenho, admito – adquirir uma edição decente do Dom Quixote. Ainda que não a relesse, sonhava possuir uma edição espanhola do livro cuja leitura mais profundamente me tocou despertando-me emoções e estados de transfiguração sem precedente. A que li foi a famosa edição em cinco volumes publicada por José Olympio na qual são reproduzidas as gravuras assinadas por Gustave Doré. Esse momento inapagável na minha experiência de leitor deveu-se à doença cardíaca que me sobressaltou a vida já de si oprimida no início dos anos 1970.
Eram tempos sombrios, de vida dificultosa e obscura. Privado de emprego estável, portanto de uma margem mínima de segurança econômica, crivado de angústias existenciais e ideológicas, agravadas pelo clima de repressão política dominante, dispunha de pouco solo seguro sob os pés vacilantes. Afora o amor de Rejane, as bebedeiras catárticas, mas por vezes opressivas, na companhia de amigos mais atormentados que eu, o resto era insegurança e amanhãs sem perspectivas animadoras. Foi em meio a isso que sobre mim caiu o diagnóstico de uma doença cujo efeito imediato, mais psíquico e moral do que propriamente orgânico, foi devastador.
Acalmado o primeiro assombro, já preso a uma cama em regime de repouso absoluto, tive a luminosa idéia de pedir a Rejane, amada e enfermeira dedicada, que tomasse de empréstimo à biblioteca pública de Afogados a edição José Olympio do Dom Quixote. Tão logo embrenhei-me por terras de Espanha na companhia daquele visionário genial, minha vida sofreu uma completa e automática transfiguração. Ao anotar que foi um momento sem precedente na minha experiência de leitor, vindo das mais intensas e erráticas leituras, quis mais exatamente sugerir que nenhum outro livro teve, como ele, o poder de mobilizar todas as minhas energias, notadamente as do leitor apaixonado e sensível cuja imaginação com frequência esbarrava nos limites estreitos da realidade ordinária.
Recordo ainda com plena nitidez o estado de sobressalto emocional que me tomou, tão exigente e constante que simplesmente perdi o sono. Varava a noite imerso na leitura, indiferente às inquietações suscitadas por meu estado de saúde, associado a outros igualmente inquietantes. A transfiguração advinda da leitura foi tal que Rejane começou a ficar preocupada, seriamente acreditando que o livro me afetara a razão. Pois o fato é que desandei a rir dentro da noite, a tagarelar animado às voltas com diálogos imaginários entretidos com meus heróis sem dúvida bem mais insensatos que eu. Ao cabo da leitura, prometi-me reler sempre que possível a obra-prima de Cervantes. Aliás, se bem me lembro, prometi-me reler Dom Quixote anualmente. É claro que não cumpri minha promessa. Para não dizer que faltei completamente com a palavra a mim próprio empenhada, reli-o uma única vez, valendo-me da única edição que até recentemente possuí: a que circulou periodicamente nas bancas de revista editada pela Abril Cultural.
Miro agora amorosamente as duas edições que comprei à Livraria Cultura. Tão amorosamente que fui à prateleira e trouxe ambas para perto de mim. Enquanto digito esta entrada, miro-as com olhar de bibliófilo enamorado: a do IV Centenário, editada pela Real Academia Española e a Asociación de Academias de la Lengua Española, e a segunda, ainda mais bela e vistosa, da Anaya. Esta, além de ser um primor de concepção gráfica, é admirável e fartamente ilustrada por José Ramón Sánchez. Além de uma longa e erudita introdução assinada por Angel Basanta, é anotada com zelo e minúcia filológica exemplares. A primeira, em compensação, vem enriquecida de um glossário e precedida por ensaios de Mario Vargas Llosa, Francisco Ayala e Martín de Riquer. Não bastasse tanto, agrega ensaios complementares assinados por José Manuel Blecua, Guillermo Rojo, José Antonio Pascual, Margit Frenk e Cláudio Guillén.
Mas o que mais importa é a leitura, ou releitura, da obra propriamente dita. Noutras palavras, que é feito de minha velha e esquecida promessa? O que dela agora fazer, já que tenho diante dos olhos duas edições primorosas da obra na sua língua original? Introduzo tais indagações inspiradas por certo cálculo retórico porque intento retomar aqui elementos de uma conversa mantida com Brenno Kenji. Discutíamos a legitimidade editorial fundada na adaptação e condensação de grandes obras da tradição literária como um expediente viabilizador de leituras atuais dependentes de um leitor cada vez mais apressado, cada vez mais solicitado por estímulos e fontes de informação e cultura incompatíveis com a realidade cultural em que obras como Dom Quixote foram escritas e lidas.
Brenno, leitor radical e definitivamente atípico, fiel aos mais altos valores da tradição letrada, argumenta em defesa da integridade da obra. Para ele, a obra deveria ser lida e retraduzida através dos tempos em conformidade com o texto integral do autor. Esta seria, admito, a relação ideal imaginável entre os textos canônicos e o leitor que, sucedendo-se na corrente do tempo, já não é, assinemos esta banalidade, o mesmo do século em que Dom Quixote veio a lume, ou o contemporâneo de Balzac e Flaubert. As condições mutáveis do mundo, mais ainda neste assombrado por ritmos de aceleração sociocultural sem precedente, suprimiram do horizonte do receptor os lazeres concebíveis noutras épocas.
O leitor hodierno, mesmo quando antes e acima de tudo leitor, está agora imantado a uma complexa rede de difusão cultural que não apenas compete com os meios tradicionais da literatura, mas lhe faz concorrência desigual e sem dúvida bem mais atraente. Como pretender que o jovem de hoje leia ainda edições integrais de Great Expectations ou Nicholas Nickleby, de Mansfield Park ou Sense and Sensibility, de Madame Bovary e Doutor Jivago, Anna Karenina e Crime e Castigo (cito alguns títulos que me vêm de imediato à memória), se o cinema lhe franqueia adaptações providas de todas estas vantagens: apelo audiovisual, concentração de tramas longas e complexas em duas horas de entretenimento e eventual enriquecimento cultural, adequação da tradição histórica às convenções dominantes no presente?
Evidentemente, não me passa pela cabeça afirmar que o espectador de Anna Karenina, adaptada e comprimida em versão corrente, exibida até em sessões noturnas da rede Globo, está em contato efetivo com a obra, com Tolstoi, para não falar da rica floração literária da tradição em que ambos se inserem, com os valores intrinsecamente literários do grande romance russo. O ideal, como Brenno apaixonadamente o reivindica, seria ficarmos com a integridade literária da obra, ou ainda, para quem queira acomodar-se ao melhor de dois mundos, com a obra e sua adaptação que não pode ser apreciada com o mesmo metro e rigor de recepção. Mas como pretender, dadas as complexas condições do presente que não posso adequadamente caracterizar numa mera entrada de diário, que tal modalidade de prática cultural prevaleça num mundo que impõe à literatura um lugar cada vez mais marginal, privilégio, para não dizer idiossincrasia, de uma casta de letrados?
O próprio exemplo de que trato nesta entrada – o meu, noutros termos – constitui evidência suficiente, melhor do que toda a argumentação verbal que acaso me empenhe em desfiar páginas afora. Embora leitor constante, agraciado pelo privilégio de dispor de ampla margem de tempo livre, isento dos embaraços e solicitações penosas de uma rede familiar e coisas similares a que está atada a maioria dos leitores, fui incapaz de cumprir minha promessa de seguir relendo Dom Quixote através de minha vida. As duas edições que agora enriquecem minha biblioteca me solicitam e desafiam mirando-me sobre a mesa em que quedam paralisadas. De meu lado, um tanto oprimido pela dívida que me devo e não me pago, resta-me o recurso da contemporização vacilante, o adiamento de mais uma viagem imaginária por aquelas terras de Espanha que Cervantes para sempre transfigurou e imortalizou na história da literatura. Um dia, quem sabe, eu voltarei de um modo como nunca mais voltei, não obstante o quisesse, para minha Isabel, minha Isabel de Valencia.

Diário, Recife 2005.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

George Steiner


George Steiner é um dos últimos sobreviventes da grande tradição humanista cultivada por judeus nascidos e/ou formados na Europa central. Deste tronco poderoso brotaram nomes tais como Karl Marx, Sigmund Freud, Robert Musil, Wittgenstein e Hermann Broch. Embora ficcionista ocasional, Steiner é sobretudo um scholar de imenso prestígio no ambiente acadêmico europeu e americano, comentador agudo e frequentemente polêmico das obras e personalidades que sacodem a atmosfera cultural contemporânea. Testemunha e vítima da caçada nazista movida contra os judeus, desde a infância Steiner aprendeu a encarar de frente a máscara da tragédia que indelevelmente o atingiu. Quando certa feita evocou comovido esse aprendizado ao conceder entrevista a Jeremy Isaacs na BBC Television, identificou na figura do pai a força que o dirigiu para a crua observação da realidade.

Menino ainda, mas já exposto aos tumultos de massa alastrados pelas ruas de Paris, assistiu ele à ascensão da violência antissemita lançada contra a população judaica. Encurralado entre Hitler e o antissemitismo enraizado na tradição cultural francesa, educou-o o pai contra o medo, ilustrando-o na prática crua da Europa pré-Segunda Grande Guerra acerca da torrente destrutiva prenunciadora de Auschwitz.

Os tormentosos eventos históricos acima grosseiramente sugeridos, mas de modo algum estranhos ao leitor culto, embasam o admirável conjunto de ensaios que integra o volume Linguagem e Silêncio. Dado que o tema predominante dos ensaios é a literatura, parecerá decerto extravagante verificar que no cerne de tudo ele explicitamente inscreve a barbárie nazista, ápice da ruína por ele assim apreciada:
"Essa ruína é o ponto de partida de qualquer reflexão séria sobre literatura e sobre o lugar da literatura na sociedade. A literatura lida essencial e constantemente com a imagem do homem, com a forma e o estímulo da conduta humana. Não podemos agir agora, seja como críticos ou como simples seres racionais, como se nada de importância vital tivesse afetado nosso senso da possibilidade humana, como se o extermínio pela fome ou pela violência , de cerca de 70 milhões de homens, mulheres e crianças na Europa e na Rússia, entre 1914 e 1945, não tivesse alterado de modo profundo a propriedade de nossa consciência". (p. 22)

Como fica claro na citação acima, não é apenas o nazismo que está em jogo, detonando e ao cabo dissolvendo sonhos devastadores nas cinzas dos infernos que acendeu. Agentes e efeitos estendem sua ação histórica direta, frisa Steiner, ao período que cobre os anos de 1914 a 1945. Se entretanto antes de 1933 a ruína estava em curso, a partir da ascensão do nazismo ela atinge escalas sem precedente. Se as escalas de destrutividade não encontram precedente no conjunto da história humana, mais devastadoras ainda foram as formas como se processaram. A interrogação ainda hoje suspensa no ar turvo da nossa consciência, mas genericamente respondida por Freud em O Mal-Estar na Civilização, ocupou a mente e fração decisiva da obra realizada por intelectuais como Erich Fromm, Adorno, Primo Levi, Bruno Bettelheim, Elias Canetti e, claro, o próprio George Steiner.

Opondo-se a interpretações históricas tendentes a explicar o nazismo fundadas no papel satânico desempenhado por Hitler, ou quando muito em fatores contingentes da estrutura sócio-econômica, Steiner assinala que foi na Europa Central, onde elevados eram os padrões de difusão da tradição humanista encarnada em símbolos intelectuais da estatura de Shakespeare, Voltaire e Goethe, que foram acesos os fornos e instalados os campos de concentração. Como afirma Steiner, "A barbárie predominou no próprio berço do humanismo cristão, da cultura renascentista e do racionalismo clássico. Sabemos que alguns dos homens que conceberam e administraram Auschwitz foram educados lendo Shakespeare ou Goethe, e continuavam a lê-los".

Dado que é verdadeiro o que afirma, a questão se desenha de modo muito mais inquietante na nossa consciência. Formados dentro de um espírito humanista que aparentava constituir-se como negação necessária da barbárie, eis-nos aqui confrontados com esses perturbadores fatos da história. Os líderes e homens investidos de posição de mando dentro da organização nazista não eram monstros, malfeitores privados do acesso à tradição humanista que presumimos incompatível com a onda de barbárie alastrada pela Europa, centro da civilização ocidental. Eliminada a confortadora disjuntiva entre civilização e barbárie, impõe-se deduzir que a primeira não constitui garantia necessária contra a segunda. Uma outra dedução, de natureza ainda mais inquietante, parece-me seguir-se à primeira: ao invés de caracterizar-se como monstros, produtos anti-humanos cuja real natureza seria impermeável a nossas possibilidades de explicação racional, são os nazistas seres humanos como nós outros. Mas de outro lado convenhamos, é ilusório presumir uma explicação racional suficiente para questões históricas dessa natureza.

A força desta verdade aparenta ser tão perturbadora que governos liberais e de esquerda resistem a esse modo de tratamento do problema concernente às bases sociais e humanas do nazismo. É sintomático que o filme de Agnieszka Holland, Europa Europa (título adotado no Brasil: Filhos da Guerra), talvez o melhor já realizado sobre a relação entre nazistas e judeus, tenha tido sua participação na categoria melhor filme estrangeiro, prêmio Oscar de Hollywood, vetada pelo atual governo alemão. O veto sugere a força inquietante do filme que representa carrascos e vítimas dentro da complexa rede humana sobre a qual se estrutura nossa obscura humanidade.

Sem qualquer concessão aos clichês do humanismo vulgar, nazistas e judeus são no fundo nem monstros nem anjos indefesos, mas gente como a gente. Eis aí, límpido e desconcertante, o clichê repelido. Pois é, gente como a gente, eis o que aparenta em suma exprimir Agnieszka Holland com seu filme extraordinário. O surrado clichê entretanto não autoriza, deixo claro, perdão ou condescendência para com o carrasco. Em nenhuma circunstância, a impureza da vítima, falta-me expressão mais adequada, justifica a ferocidade do opressor.

As esquemáticas observações acima servem ao menos para sugerir, assim espero, possibilidades analíticas incompatíveis com versões difusas de humanismo ingênuo, assim como com mais elaboradas interpretações culturalistas ao cabo confortadoras, já que identificam as causas da destrutividade humana em fatores de natureza puramente histórico-cultural. Ora, parece-me que Freud atira mais perto do alvo quando sustenta a existência de um cerne biológico destrutivo e, em última instância (era assim que costumávamos concluir um argumento intentando resguardar a força universal da teoria marxista exaurida por tantas ações e manipulações procedentes de mal orientados discípulos), indomesticável pelas normas reguladoras da civilização.

A inserção do ensaísmo literário na moldura histórica do nazismo e suas conexões de fundo ético-intelectual bastam para distinguir Steiner da produção acadêmica característica desta segunda metade do século. Mais e mais especializada, reclusa em esotéricas investigações cuja espessa esterilidade evoca ecos da castália idealizada por Hermann Hesse no seu romance O Jogo das Contas de Vidro, a cultura acadêmica produz montanhas de obras indiferente ao som e à fúria do século.

Exemplo frisante das distorções intelectuais geradas nesse contexto é visível na própria função e prestígio de que goza o crítico literário. Se no veio da grande tradição humanista dentro da qual sobrelevam nomes como Edmund Wilson, Lionel Trilling, George Orwell, Antonio Candido, Otto Maria Carpeaux, para mencionar apenas alguns pertencentes ao nosso século, o crítico operava como um mediador entre o autor e o público, atualmente o crítico acadêmico instala-se no lugar do efetivo criador de literatura. Sendo um mero criador de segundo grau, não importando a grandeza da obra crítica que produza, torna-se ele, entretanto, o agente de uma grave inversão de valores derivada do processo de organização da cultura acadêmica. Como bem observa George Steiner,
"O crítico vive de segunda mão. Ele escreve sobre. O poema, o romance ou a peça têm de ser dados a ele; a crítica existe pela graça do gênio de outros homens". (p. 21) Nas castálias acadêmicas da nossa contemporaneidade, todavia, lê-se cada vez mais crítica e teoria literárias em detrimento da literatura propriamente dita. O estudante modelar dos cursos de letras estará por certo familiarizado com a produção de críticos tais como Fredric Jameson e Terry Eagleton, Jacques Derrida e Roland Barthes (já meio fora de moda), Antonio Candido e Roberto Schwarz, mas provavelmente não terá lido a sério nenhum criador canônico da literatura nacional ou internacional.

George Steiner compartilha com os humanistas judeus acima mencionados uma sólida atitude internacionalista, mirada além-fronteiras em mundo mais e mais retalhado por particularismos sangrentos contraditoriamente atados à realidade da acelerada universalização promovida pela vertiginosa dinâmica deste capitalismo fin de siècle. Internacionalista consequente, a um judaísmo beligerante, armado em fronteiras fechadas, sobrepõe valores que o impelem a opor-se ao sionismo e à política adotada pelo Estado de Israel.

Pessimista quanto ao destino da arte num mundo superpovoado e subordinado às regras do capitalismo de consumo, Steiner acentua a íntima e milenar ligação entre arte e religião. Tal ligação, também assinalada por Freud em O Mal-Estar na Civilização, está à perfeição demonstrada nas palavras de um antecessor de gênio: "Aquele que tem ciência e arte, tem também religião; o que não tem nenhuma delas, que tenha religião!" (Goethe, apud Freud, O Mal-Estar na Civilização, Ed. Imago, p. 31).
Qual o sentido atual da arte, que durante milênios abrigou no próprio centro dos símbolos que articula certas possibilidades religiosas hoje erodidas pelas condições dominantes de mercantilização de valores e sentidos enraizados no solo humano-material onde se constitui? Para Steiner, a raison d'être da arte, i.e. as possibilidades religiosas que encerra, se encontra posta em risco no inquietante universo do nosso fin de siècle. Como identificar, menos ainda discutir, uma grande obra de arte quando uma atordoante proliferação de valores, muitos de natureza antagônica, lutam para impôr um princípio de hegemonia cuja aparente inviabilidade põe em risco a possibilidade mesma de consenso em torno de princípios instauradores de um referencial canônico no plano da tradição literária?

Às voltas com outros temas polêmicos, como intelectual empenhado no bom combate, Steiner não poupa críticas ao ideário (hoje transformado em ideologia, aqui tomada em sentido pejorativo) forjado por dois gênios da sua raça: Marx e Freud. Da filha dileta do último, a psicanálise, disse não passar de "vingança judaica contra a ciência cristã". Melhor registrar suas próprias palavras gravadas de "Fin de Siècle", série de debates transmitida pelo Channel 4, Inglaterra, em 1991.
"I regard psychoanalysis as a completely ephemeral mithology. To me, it's a Jewish vengeance on Christian science. Nothing is more charged with animism than psychoanalysis".

Não é de espantar que tenha constrangido Julia Kristeva, diante de quem disparou a crítica no debate de que participaram ao lado de Terry Eagleton. Por outro lado, entra em desacordo com este, ainda mais acaloradamente com Michael Ignatieff, "liberal pós-moderno" da mídia inglesa, graças aos ataques devastadores que tem movido contra a acelerada mercantilização da cultura pilotada pela mídia norte-americana. Em 1990, por exemplo, pouco depois da euforia que se seguiu à queda do totalitarismo soviético, publicou virulento artigo no "The New Yorker" contra a forma como os recém-abertos mercados do Leste Europeu estavam sendo invadidos pela cultura de massa do Ocidente. Simbolizando na dupla Madonna e Maradona os valores destrutivos e anti-humanos gerados pela cultura produzida em série segundo critérios perversamente mercadológicos, George Steiner clama em defesa de um humanismo que me parece, para minha pessoal inquietação, condenado a sobreviver na oprimida atmosfera de uma escassa elite.

Bearer of ashes, ou Cassandra da alta tradição europeia, assim ocorre-me caracterizá-lo, numa mão empunha a memória perturbadora da ruína produzida pela barbárie deste século, noutra a determinação de afirmar contra uma nova onda bárbara as virtudes do seu humanismo acuado. É admirável e comovente assistir a esse tresloucado Quixote, a cavaleiro de um arfante humanismo-rocinante, arremeter contra os mortíferos poderes deste mundo da vertigem técnica capaz de produzir catástrofes apreciadas pelo público universal como se fossem eletrizantes videogames.

Vendo-o de lança em riste, sobre uma campina solitária, e imaginando-o a braços, bastaria um só dia, com a mídia brasileira, não resisto à tentação de compará-lo a um humanista brasileiro que, em contexto evidentemente muito distinto, assim foi caracterizado por Mário de Andrade: "E se é certo que já agora ele é uma das mais fortes figuras de crítico que o país produziu, desconfio que os futuros não-sei-o-quê vivendo nestas terras do Brasil terão ao lê-lo o espetáculo dum homem querendo desviar uma enchente, apagar o incêndio dum mato, ou parar um raio com a mão".
Referia-se Mário de Andrade, sabem os leitores familiarizados com a literatura brasileira deste século, a Alceu Amoroso Lima, humanista (então da direita católica) empenhado em salvar o Brasil, ambição rotineira em intelectual nativo, com armas retrógadas e quixotescas fornecidas pelo catolicismo da época. O paralelo aqui grosseiramente proposto assenta, claro, sobre profundas diferenças de contexto histórico-ideológico. Mas acredito-o pertinente dada a similaridade da empresa movida tanto por George Steiner quanto por Alceu Amoroso Lima.

Diário, 1 de agosto de 1993.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Suzete e o marinheiro inglês


Ando sozinho pelas ruas do Recife. Nesta tarde do dia de Natal as ruas adormecem um sono de passos quase desertos. Ando pela zona portuária da cidade. Tudo um quase silêncio, uma quase imobilidade nas coisas e pessoas. Meus olhos sentam-se num ônibus e interrogam os velhos sobrados nessa antiga paisagem do Recife marcada pela remota, mas indelével presença holandesa nos trópicos. Roupas estendidas nas janelas, panos encardidos que semelham colchas de retalho. Vultos atravessam espaços de sombra ou esquiva luz. Deslizam fugitivos ante olhares curiosos. Essa gente noturna, fauna errante em esquinas sórdidas, tem medo da luz do dia.
Meus olhos percorrem as ruas da zona portuária. Quase desertas. Os bares modorrando na tarde de sol abrasante. Quem não vive, olha. Quem não vive escreve, ainda que um diário. Meus olhos andam nas ruas da zona. Seguem errantes a rota sem norte dos seus obscuros personagens, lutam para adivinhar suas miúdas e eternas misérias. Meus olhos, andam...
A luz quente do sol escorre sobre o asfalto, sobre as fachadas adormecidas na tarde cuja imobilidade se acotovela com formas de movimento quase imperceptíveis. Meus olhos andam e andam. Param subitamente numa mesa do São Francisco. Meus olhos veem uma puta bebendo com um senhor de meia idade. É Luísa. Meus olhos estacionam perplexos no vestido amarelo de Luísa. Tão estranha a sensação de rever Luísa assim imprevisível, assim esquecida. Estranho esbarrar na tarde em Luísa e seu vestido amarelo.
Conversa com o Fulano lá. Parece rir. Se não sonho, se não deliro, é certo que vejo os dentes de Luísa brilhando na tarde, rompendo a compacta desolação do São Francisco. Meus olhos nunca antes viram os dentes de Luísa rindo assim tão livres. Será felicidade? Ora, Fernando, não me venha com poesia barata a essas horas da vida. Luísa ri ainda, o Fulano também. Por certo divertem-se com alguma coisa. Com a vida? Mas o que há de divertido nas vidas miseráveis dessa gente? Riem talvez porque não há mais o que fazer. Como Suzete ria lembrando seu marinheiro inglês. Ela me mostrava o endereço dele. Me pedia:
Fernando, vem aqui amanhã escrever uma carta pra mim. Você não sabe inglês?
Eu: muito mal.
Ela: então vem. Quero pedir a fulano (já esqueci o nome do marinheiro, digamos John) pra vir me buscar.
Eu: certo. Mas como vou escrever para ele? Digo assim: John, amor de minha vida, única e eterna ventura que Deus me deu.
Suzete ria. Gostava de ouvir-me dizer essas coisas. A gente bebia longas horas na Baiana, trepados e trepando naquele velho sobradão de escadas rangentes e escuras. Ela não esquecia seu marinheiro inglês, nem mesmo quando trepava comigo. Nunca me cobrou dinheiro. Dava-o quando a encontrava, quando se dizia faminta, quando se queixava do dia sem homem e portanto sem ganho. Levava-a para o Gambrinus, pagava-lhe um jantar.
Ela dizia: você é muito bom. Como John, meu marinheiro inglês.
Eu lhe fazia uma careta fingidamente aborrecida. Achava graça na minha careta. E mais uma vez e sempre me pedia: vem aqui amanhã à tarde. Queria que você escrevesse minha carta para John.
Eu prometia. Sempre prometia. Bêbado, de imaginação desatada, chegava mesmo a dizer e representar para Suzete a carta que nunca escrevi. Ela se divertia. Mas nem sempre. Às vezes uma sombra pairava nos seus olhos, um travo de amargura nos cantos da boca, e uma pausa grudava-se no seu rosto cansado. Eu consolava Suzete.
Fomos bons parceiros de cama e mesa, de madrugada e de porre. Fazia-me repetidas indagações: você não é casado?
Eu: não.
Ela: nem comigo?
Eu: nem com você. Casamento é coisa muito tediosa.
Ela: que é tediosa?
Eu: chata. Como um poço vazio e fundo no meio do deserto.
Ela: chato é você. Chata é essa vida de puta.
Um dia sumiu. Procurei-a na Baiana. Disseram que fora embora. Talvez para Salvador. Talvez para São Luís do Maranhão, cidade de onde viera. E eu completava para mim próprio: talvez para Londres. Talvez Liverpool. À procura de John, seu marinheiro sem volta, seu refúgio ilusório dentro da sordidez da zona. Quem sabe não se desiludiu de esperar seu John assim como me desiludi de esperar meu Godot?
Meus olhos esbarram na linha turva do presente e novamente estacionam no vestido amarelo de Luísa. Ela se levanta com o fulano. Dobram a primeira esquina e somem. A tarde misteriosamente se imobiliza e tudo ante meus olhos se desenha em linhas de abafada e dolorosa neutralidade.

Recife, 25 de dezembro de 1979.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A culpa


Juntou a culpa do mundo
(incalculável montanha).
Atou o raso e o fundo
A chicotada que lanha
A carne dilacerada.
Depois subiu para o céu
E o mundo é tudo: meu nada.

Moeu a culpa do mundo
Numa moenda azeitada
Vertendo o caldo imundo
Sobre a infinita estrada.

Queimou a culpa do mundo
Numa fogueira tão alta
(bem mais que alta, infinita)
Que agora até sente falta
Da culpa que move a vida.

Recife, 24 de agosto de 2011.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Miragem do nada


Esse fascínio do nada
Que há tanto vive comigo
Modo de ser, minha estrada
Vazio em que me abrigo.

A tirania do ego
Impregna o que respiro.
A quantos não dá emprego
Atando lucro e castigo?

Sonhei um outro Ocidente
Que nunca hei de encontrar
Com seu quinhão de Oriente
Deserto à borda do mar.

O nada a mim me persegue
(fosse ele convicção...)
Buda, nirvana, o que negue
O pleno na imensidão.

Que portas posso eu abrir
Com as chaves do Ocidente
Servas do ego, da fala
Desse discurso de sala
De devaneios dementes?

Pudesse eu alcançar
O cume, ataraxia
E no silêncio do mar
No nada, pó de luar
Me dissolver em poesia.

Recife, 27 de agosto de 2011.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Aspiração


Ser o nirvana, vazio
Liberto da tirania
Do ego, deserto frio
Eco voraz da anarquia.

No oco do mundo traçar
As linhas do meu retiro.
Sustar as ondas do mar
E no silêncio um respiro
Sequer ouvir quando a noite
Descer tão impressentida
Que já não saiba se sou
Vazio ou sopro de vida.

Recife, 27 de agosto de 2011.