quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O leitor e a integridade da obra


Durante anos tentei – sem muito empenho, admito – adquirir uma edição decente do Dom Quixote. Ainda que não a relesse, sonhava possuir uma edição espanhola do livro cuja leitura mais profundamente me tocou despertando-me emoções e estados de transfiguração sem precedente. A que li foi a famosa edição em cinco volumes publicada por José Olympio na qual são reproduzidas as gravuras assinadas por Gustave Doré. Esse momento inapagável na minha experiência de leitor deveu-se à doença cardíaca que me sobressaltou a vida já de si oprimida no início dos anos 1970.
Eram tempos sombrios, de vida dificultosa e obscura. Privado de emprego estável, portanto de uma margem mínima de segurança econômica, crivado de angústias existenciais e ideológicas, agravadas pelo clima de repressão política dominante, dispunha de pouco solo seguro sob os pés vacilantes. Afora o amor de Rejane, as bebedeiras catárticas, mas por vezes opressivas, na companhia de amigos mais atormentados que eu, o resto era insegurança e amanhãs sem perspectivas animadoras. Foi em meio a isso que sobre mim caiu o diagnóstico de uma doença cujo efeito imediato, mais psíquico e moral do que propriamente orgânico, foi devastador.
Acalmado o primeiro assombro, já preso a uma cama em regime de repouso absoluto, tive a luminosa idéia de pedir a Rejane, amada e enfermeira dedicada, que tomasse de empréstimo à biblioteca pública de Afogados a edição José Olympio do Dom Quixote. Tão logo embrenhei-me por terras de Espanha na companhia daquele visionário genial, minha vida sofreu uma completa e automática transfiguração. Ao anotar que foi um momento sem precedente na minha experiência de leitor, vindo das mais intensas e erráticas leituras, quis mais exatamente sugerir que nenhum outro livro teve, como ele, o poder de mobilizar todas as minhas energias, notadamente as do leitor apaixonado e sensível cuja imaginação com frequência esbarrava nos limites estreitos da realidade ordinária.
Recordo ainda com plena nitidez o estado de sobressalto emocional que me tomou, tão exigente e constante que simplesmente perdi o sono. Varava a noite imerso na leitura, indiferente às inquietações suscitadas por meu estado de saúde, associado a outros igualmente inquietantes. A transfiguração advinda da leitura foi tal que Rejane começou a ficar preocupada, seriamente acreditando que o livro me afetara a razão. Pois o fato é que desandei a rir dentro da noite, a tagarelar animado às voltas com diálogos imaginários entretidos com meus heróis sem dúvida bem mais insensatos que eu. Ao cabo da leitura, prometi-me reler sempre que possível a obra-prima de Cervantes. Aliás, se bem me lembro, prometi-me reler Dom Quixote anualmente. É claro que não cumpri minha promessa. Para não dizer que faltei completamente com a palavra a mim próprio empenhada, reli-o uma única vez, valendo-me da única edição que até recentemente possuí: a que circulou periodicamente nas bancas de revista editada pela Abril Cultural.
Miro agora amorosamente as duas edições que comprei à Livraria Cultura. Tão amorosamente que fui à prateleira e trouxe ambas para perto de mim. Enquanto digito esta entrada, miro-as com olhar de bibliófilo enamorado: a do IV Centenário, editada pela Real Academia Española e a Asociación de Academias de la Lengua Española, e a segunda, ainda mais bela e vistosa, da Anaya. Esta, além de ser um primor de concepção gráfica, é admirável e fartamente ilustrada por José Ramón Sánchez. Além de uma longa e erudita introdução assinada por Angel Basanta, é anotada com zelo e minúcia filológica exemplares. A primeira, em compensação, vem enriquecida de um glossário e precedida por ensaios de Mario Vargas Llosa, Francisco Ayala e Martín de Riquer. Não bastasse tanto, agrega ensaios complementares assinados por José Manuel Blecua, Guillermo Rojo, José Antonio Pascual, Margit Frenk e Cláudio Guillén.
Mas o que mais importa é a leitura, ou releitura, da obra propriamente dita. Noutras palavras, que é feito de minha velha e esquecida promessa? O que dela agora fazer, já que tenho diante dos olhos duas edições primorosas da obra na sua língua original? Introduzo tais indagações inspiradas por certo cálculo retórico porque intento retomar aqui elementos de uma conversa mantida com Brenno Kenji. Discutíamos a legitimidade editorial fundada na adaptação e condensação de grandes obras da tradição literária como um expediente viabilizador de leituras atuais dependentes de um leitor cada vez mais apressado, cada vez mais solicitado por estímulos e fontes de informação e cultura incompatíveis com a realidade cultural em que obras como Dom Quixote foram escritas e lidas.
Brenno, leitor radical e definitivamente atípico, fiel aos mais altos valores da tradição letrada, argumenta em defesa da integridade da obra. Para ele, a obra deveria ser lida e retraduzida através dos tempos em conformidade com o texto integral do autor. Esta seria, admito, a relação ideal imaginável entre os textos canônicos e o leitor que, sucedendo-se na corrente do tempo, já não é, assinemos esta banalidade, o mesmo do século em que Dom Quixote veio a lume, ou o contemporâneo de Balzac e Flaubert. As condições mutáveis do mundo, mais ainda neste assombrado por ritmos de aceleração sociocultural sem precedente, suprimiram do horizonte do receptor os lazeres concebíveis noutras épocas.
O leitor hodierno, mesmo quando antes e acima de tudo leitor, está agora imantado a uma complexa rede de difusão cultural que não apenas compete com os meios tradicionais da literatura, mas lhe faz concorrência desigual e sem dúvida bem mais atraente. Como pretender que o jovem de hoje leia ainda edições integrais de Great Expectations ou Nicholas Nickleby, de Mansfield Park ou Sense and Sensibility, de Madame Bovary e Doutor Jivago, Anna Karenina e Crime e Castigo (cito alguns títulos que me vêm de imediato à memória), se o cinema lhe franqueia adaptações providas de todas estas vantagens: apelo audiovisual, concentração de tramas longas e complexas em duas horas de entretenimento e eventual enriquecimento cultural, adequação da tradição histórica às convenções dominantes no presente?
Evidentemente, não me passa pela cabeça afirmar que o espectador de Anna Karenina, adaptada e comprimida em versão corrente, exibida até em sessões noturnas da rede Globo, está em contato efetivo com a obra, com Tolstoi, para não falar da rica floração literária da tradição em que ambos se inserem, com os valores intrinsecamente literários do grande romance russo. O ideal, como Brenno apaixonadamente o reivindica, seria ficarmos com a integridade literária da obra, ou ainda, para quem queira acomodar-se ao melhor de dois mundos, com a obra e sua adaptação que não pode ser apreciada com o mesmo metro e rigor de recepção. Mas como pretender, dadas as complexas condições do presente que não posso adequadamente caracterizar numa mera entrada de diário, que tal modalidade de prática cultural prevaleça num mundo que impõe à literatura um lugar cada vez mais marginal, privilégio, para não dizer idiossincrasia, de uma casta de letrados?
O próprio exemplo de que trato nesta entrada – o meu, noutros termos – constitui evidência suficiente, melhor do que toda a argumentação verbal que acaso me empenhe em desfiar páginas afora. Embora leitor constante, agraciado pelo privilégio de dispor de ampla margem de tempo livre, isento dos embaraços e solicitações penosas de uma rede familiar e coisas similares a que está atada a maioria dos leitores, fui incapaz de cumprir minha promessa de seguir relendo Dom Quixote através de minha vida. As duas edições que agora enriquecem minha biblioteca me solicitam e desafiam mirando-me sobre a mesa em que quedam paralisadas. De meu lado, um tanto oprimido pela dívida que me devo e não me pago, resta-me o recurso da contemporização vacilante, o adiamento de mais uma viagem imaginária por aquelas terras de Espanha que Cervantes para sempre transfigurou e imortalizou na história da literatura. Um dia, quem sabe, eu voltarei de um modo como nunca mais voltei, não obstante o quisesse, para minha Isabel, minha Isabel de Valencia.

Diário, Recife 2005.

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