sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Suzete e o marinheiro inglês


Ando sozinho pelas ruas do Recife. Nesta tarde do dia de Natal as ruas adormecem um sono de passos quase desertos. Ando pela zona portuária da cidade. Tudo um quase silêncio, uma quase imobilidade nas coisas e pessoas. Meus olhos sentam-se num ônibus e interrogam os velhos sobrados nessa antiga paisagem do Recife marcada pela remota, mas indelével presença holandesa nos trópicos. Roupas estendidas nas janelas, panos encardidos que semelham colchas de retalho. Vultos atravessam espaços de sombra ou esquiva luz. Deslizam fugitivos ante olhares curiosos. Essa gente noturna, fauna errante em esquinas sórdidas, tem medo da luz do dia.
Meus olhos percorrem as ruas da zona portuária. Quase desertas. Os bares modorrando na tarde de sol abrasante. Quem não vive, olha. Quem não vive escreve, ainda que um diário. Meus olhos andam nas ruas da zona. Seguem errantes a rota sem norte dos seus obscuros personagens, lutam para adivinhar suas miúdas e eternas misérias. Meus olhos, andam...
A luz quente do sol escorre sobre o asfalto, sobre as fachadas adormecidas na tarde cuja imobilidade se acotovela com formas de movimento quase imperceptíveis. Meus olhos andam e andam. Param subitamente numa mesa do São Francisco. Meus olhos veem uma puta bebendo com um senhor de meia idade. É Luísa. Meus olhos estacionam perplexos no vestido amarelo de Luísa. Tão estranha a sensação de rever Luísa assim imprevisível, assim esquecida. Estranho esbarrar na tarde em Luísa e seu vestido amarelo.
Conversa com o Fulano lá. Parece rir. Se não sonho, se não deliro, é certo que vejo os dentes de Luísa brilhando na tarde, rompendo a compacta desolação do São Francisco. Meus olhos nunca antes viram os dentes de Luísa rindo assim tão livres. Será felicidade? Ora, Fernando, não me venha com poesia barata a essas horas da vida. Luísa ri ainda, o Fulano também. Por certo divertem-se com alguma coisa. Com a vida? Mas o que há de divertido nas vidas miseráveis dessa gente? Riem talvez porque não há mais o que fazer. Como Suzete ria lembrando seu marinheiro inglês. Ela me mostrava o endereço dele. Me pedia:
Fernando, vem aqui amanhã escrever uma carta pra mim. Você não sabe inglês?
Eu: muito mal.
Ela: então vem. Quero pedir a fulano (já esqueci o nome do marinheiro, digamos John) pra vir me buscar.
Eu: certo. Mas como vou escrever para ele? Digo assim: John, amor de minha vida, única e eterna ventura que Deus me deu.
Suzete ria. Gostava de ouvir-me dizer essas coisas. A gente bebia longas horas na Baiana, trepados e trepando naquele velho sobradão de escadas rangentes e escuras. Ela não esquecia seu marinheiro inglês, nem mesmo quando trepava comigo. Nunca me cobrou dinheiro. Dava-o quando a encontrava, quando se dizia faminta, quando se queixava do dia sem homem e portanto sem ganho. Levava-a para o Gambrinus, pagava-lhe um jantar.
Ela dizia: você é muito bom. Como John, meu marinheiro inglês.
Eu lhe fazia uma careta fingidamente aborrecida. Achava graça na minha careta. E mais uma vez e sempre me pedia: vem aqui amanhã à tarde. Queria que você escrevesse minha carta para John.
Eu prometia. Sempre prometia. Bêbado, de imaginação desatada, chegava mesmo a dizer e representar para Suzete a carta que nunca escrevi. Ela se divertia. Mas nem sempre. Às vezes uma sombra pairava nos seus olhos, um travo de amargura nos cantos da boca, e uma pausa grudava-se no seu rosto cansado. Eu consolava Suzete.
Fomos bons parceiros de cama e mesa, de madrugada e de porre. Fazia-me repetidas indagações: você não é casado?
Eu: não.
Ela: nem comigo?
Eu: nem com você. Casamento é coisa muito tediosa.
Ela: que é tediosa?
Eu: chata. Como um poço vazio e fundo no meio do deserto.
Ela: chato é você. Chata é essa vida de puta.
Um dia sumiu. Procurei-a na Baiana. Disseram que fora embora. Talvez para Salvador. Talvez para São Luís do Maranhão, cidade de onde viera. E eu completava para mim próprio: talvez para Londres. Talvez Liverpool. À procura de John, seu marinheiro sem volta, seu refúgio ilusório dentro da sordidez da zona. Quem sabe não se desiludiu de esperar seu John assim como me desiludi de esperar meu Godot?
Meus olhos esbarram na linha turva do presente e novamente estacionam no vestido amarelo de Luísa. Ela se levanta com o fulano. Dobram a primeira esquina e somem. A tarde misteriosamente se imobiliza e tudo ante meus olhos se desenha em linhas de abafada e dolorosa neutralidade.

Recife, 25 de dezembro de 1979.

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