segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

George Steiner


George Steiner é um dos últimos sobreviventes da grande tradição humanista cultivada por judeus nascidos e/ou formados na Europa central. Deste tronco poderoso brotaram nomes tais como Karl Marx, Sigmund Freud, Robert Musil, Wittgenstein e Hermann Broch. Embora ficcionista ocasional, Steiner é sobretudo um scholar de imenso prestígio no ambiente acadêmico europeu e americano, comentador agudo e frequentemente polêmico das obras e personalidades que sacodem a atmosfera cultural contemporânea. Testemunha e vítima da caçada nazista movida contra os judeus, desde a infância Steiner aprendeu a encarar de frente a máscara da tragédia que indelevelmente o atingiu. Quando certa feita evocou comovido esse aprendizado ao conceder entrevista a Jeremy Isaacs na BBC Television, identificou na figura do pai a força que o dirigiu para a crua observação da realidade.

Menino ainda, mas já exposto aos tumultos de massa alastrados pelas ruas de Paris, assistiu ele à ascensão da violência antissemita lançada contra a população judaica. Encurralado entre Hitler e o antissemitismo enraizado na tradição cultural francesa, educou-o o pai contra o medo, ilustrando-o na prática crua da Europa pré-Segunda Grande Guerra acerca da torrente destrutiva prenunciadora de Auschwitz.

Os tormentosos eventos históricos acima grosseiramente sugeridos, mas de modo algum estranhos ao leitor culto, embasam o admirável conjunto de ensaios que integra o volume Linguagem e Silêncio. Dado que o tema predominante dos ensaios é a literatura, parecerá decerto extravagante verificar que no cerne de tudo ele explicitamente inscreve a barbárie nazista, ápice da ruína por ele assim apreciada:
"Essa ruína é o ponto de partida de qualquer reflexão séria sobre literatura e sobre o lugar da literatura na sociedade. A literatura lida essencial e constantemente com a imagem do homem, com a forma e o estímulo da conduta humana. Não podemos agir agora, seja como críticos ou como simples seres racionais, como se nada de importância vital tivesse afetado nosso senso da possibilidade humana, como se o extermínio pela fome ou pela violência , de cerca de 70 milhões de homens, mulheres e crianças na Europa e na Rússia, entre 1914 e 1945, não tivesse alterado de modo profundo a propriedade de nossa consciência". (p. 22)

Como fica claro na citação acima, não é apenas o nazismo que está em jogo, detonando e ao cabo dissolvendo sonhos devastadores nas cinzas dos infernos que acendeu. Agentes e efeitos estendem sua ação histórica direta, frisa Steiner, ao período que cobre os anos de 1914 a 1945. Se entretanto antes de 1933 a ruína estava em curso, a partir da ascensão do nazismo ela atinge escalas sem precedente. Se as escalas de destrutividade não encontram precedente no conjunto da história humana, mais devastadoras ainda foram as formas como se processaram. A interrogação ainda hoje suspensa no ar turvo da nossa consciência, mas genericamente respondida por Freud em O Mal-Estar na Civilização, ocupou a mente e fração decisiva da obra realizada por intelectuais como Erich Fromm, Adorno, Primo Levi, Bruno Bettelheim, Elias Canetti e, claro, o próprio George Steiner.

Opondo-se a interpretações históricas tendentes a explicar o nazismo fundadas no papel satânico desempenhado por Hitler, ou quando muito em fatores contingentes da estrutura sócio-econômica, Steiner assinala que foi na Europa Central, onde elevados eram os padrões de difusão da tradição humanista encarnada em símbolos intelectuais da estatura de Shakespeare, Voltaire e Goethe, que foram acesos os fornos e instalados os campos de concentração. Como afirma Steiner, "A barbárie predominou no próprio berço do humanismo cristão, da cultura renascentista e do racionalismo clássico. Sabemos que alguns dos homens que conceberam e administraram Auschwitz foram educados lendo Shakespeare ou Goethe, e continuavam a lê-los".

Dado que é verdadeiro o que afirma, a questão se desenha de modo muito mais inquietante na nossa consciência. Formados dentro de um espírito humanista que aparentava constituir-se como negação necessária da barbárie, eis-nos aqui confrontados com esses perturbadores fatos da história. Os líderes e homens investidos de posição de mando dentro da organização nazista não eram monstros, malfeitores privados do acesso à tradição humanista que presumimos incompatível com a onda de barbárie alastrada pela Europa, centro da civilização ocidental. Eliminada a confortadora disjuntiva entre civilização e barbárie, impõe-se deduzir que a primeira não constitui garantia necessária contra a segunda. Uma outra dedução, de natureza ainda mais inquietante, parece-me seguir-se à primeira: ao invés de caracterizar-se como monstros, produtos anti-humanos cuja real natureza seria impermeável a nossas possibilidades de explicação racional, são os nazistas seres humanos como nós outros. Mas de outro lado convenhamos, é ilusório presumir uma explicação racional suficiente para questões históricas dessa natureza.

A força desta verdade aparenta ser tão perturbadora que governos liberais e de esquerda resistem a esse modo de tratamento do problema concernente às bases sociais e humanas do nazismo. É sintomático que o filme de Agnieszka Holland, Europa Europa (título adotado no Brasil: Filhos da Guerra), talvez o melhor já realizado sobre a relação entre nazistas e judeus, tenha tido sua participação na categoria melhor filme estrangeiro, prêmio Oscar de Hollywood, vetada pelo atual governo alemão. O veto sugere a força inquietante do filme que representa carrascos e vítimas dentro da complexa rede humana sobre a qual se estrutura nossa obscura humanidade.

Sem qualquer concessão aos clichês do humanismo vulgar, nazistas e judeus são no fundo nem monstros nem anjos indefesos, mas gente como a gente. Eis aí, límpido e desconcertante, o clichê repelido. Pois é, gente como a gente, eis o que aparenta em suma exprimir Agnieszka Holland com seu filme extraordinário. O surrado clichê entretanto não autoriza, deixo claro, perdão ou condescendência para com o carrasco. Em nenhuma circunstância, a impureza da vítima, falta-me expressão mais adequada, justifica a ferocidade do opressor.

As esquemáticas observações acima servem ao menos para sugerir, assim espero, possibilidades analíticas incompatíveis com versões difusas de humanismo ingênuo, assim como com mais elaboradas interpretações culturalistas ao cabo confortadoras, já que identificam as causas da destrutividade humana em fatores de natureza puramente histórico-cultural. Ora, parece-me que Freud atira mais perto do alvo quando sustenta a existência de um cerne biológico destrutivo e, em última instância (era assim que costumávamos concluir um argumento intentando resguardar a força universal da teoria marxista exaurida por tantas ações e manipulações procedentes de mal orientados discípulos), indomesticável pelas normas reguladoras da civilização.

A inserção do ensaísmo literário na moldura histórica do nazismo e suas conexões de fundo ético-intelectual bastam para distinguir Steiner da produção acadêmica característica desta segunda metade do século. Mais e mais especializada, reclusa em esotéricas investigações cuja espessa esterilidade evoca ecos da castália idealizada por Hermann Hesse no seu romance O Jogo das Contas de Vidro, a cultura acadêmica produz montanhas de obras indiferente ao som e à fúria do século.

Exemplo frisante das distorções intelectuais geradas nesse contexto é visível na própria função e prestígio de que goza o crítico literário. Se no veio da grande tradição humanista dentro da qual sobrelevam nomes como Edmund Wilson, Lionel Trilling, George Orwell, Antonio Candido, Otto Maria Carpeaux, para mencionar apenas alguns pertencentes ao nosso século, o crítico operava como um mediador entre o autor e o público, atualmente o crítico acadêmico instala-se no lugar do efetivo criador de literatura. Sendo um mero criador de segundo grau, não importando a grandeza da obra crítica que produza, torna-se ele, entretanto, o agente de uma grave inversão de valores derivada do processo de organização da cultura acadêmica. Como bem observa George Steiner,
"O crítico vive de segunda mão. Ele escreve sobre. O poema, o romance ou a peça têm de ser dados a ele; a crítica existe pela graça do gênio de outros homens". (p. 21) Nas castálias acadêmicas da nossa contemporaneidade, todavia, lê-se cada vez mais crítica e teoria literárias em detrimento da literatura propriamente dita. O estudante modelar dos cursos de letras estará por certo familiarizado com a produção de críticos tais como Fredric Jameson e Terry Eagleton, Jacques Derrida e Roland Barthes (já meio fora de moda), Antonio Candido e Roberto Schwarz, mas provavelmente não terá lido a sério nenhum criador canônico da literatura nacional ou internacional.

George Steiner compartilha com os humanistas judeus acima mencionados uma sólida atitude internacionalista, mirada além-fronteiras em mundo mais e mais retalhado por particularismos sangrentos contraditoriamente atados à realidade da acelerada universalização promovida pela vertiginosa dinâmica deste capitalismo fin de siècle. Internacionalista consequente, a um judaísmo beligerante, armado em fronteiras fechadas, sobrepõe valores que o impelem a opor-se ao sionismo e à política adotada pelo Estado de Israel.

Pessimista quanto ao destino da arte num mundo superpovoado e subordinado às regras do capitalismo de consumo, Steiner acentua a íntima e milenar ligação entre arte e religião. Tal ligação, também assinalada por Freud em O Mal-Estar na Civilização, está à perfeição demonstrada nas palavras de um antecessor de gênio: "Aquele que tem ciência e arte, tem também religião; o que não tem nenhuma delas, que tenha religião!" (Goethe, apud Freud, O Mal-Estar na Civilização, Ed. Imago, p. 31).
Qual o sentido atual da arte, que durante milênios abrigou no próprio centro dos símbolos que articula certas possibilidades religiosas hoje erodidas pelas condições dominantes de mercantilização de valores e sentidos enraizados no solo humano-material onde se constitui? Para Steiner, a raison d'être da arte, i.e. as possibilidades religiosas que encerra, se encontra posta em risco no inquietante universo do nosso fin de siècle. Como identificar, menos ainda discutir, uma grande obra de arte quando uma atordoante proliferação de valores, muitos de natureza antagônica, lutam para impôr um princípio de hegemonia cuja aparente inviabilidade põe em risco a possibilidade mesma de consenso em torno de princípios instauradores de um referencial canônico no plano da tradição literária?

Às voltas com outros temas polêmicos, como intelectual empenhado no bom combate, Steiner não poupa críticas ao ideário (hoje transformado em ideologia, aqui tomada em sentido pejorativo) forjado por dois gênios da sua raça: Marx e Freud. Da filha dileta do último, a psicanálise, disse não passar de "vingança judaica contra a ciência cristã". Melhor registrar suas próprias palavras gravadas de "Fin de Siècle", série de debates transmitida pelo Channel 4, Inglaterra, em 1991.
"I regard psychoanalysis as a completely ephemeral mithology. To me, it's a Jewish vengeance on Christian science. Nothing is more charged with animism than psychoanalysis".

Não é de espantar que tenha constrangido Julia Kristeva, diante de quem disparou a crítica no debate de que participaram ao lado de Terry Eagleton. Por outro lado, entra em desacordo com este, ainda mais acaloradamente com Michael Ignatieff, "liberal pós-moderno" da mídia inglesa, graças aos ataques devastadores que tem movido contra a acelerada mercantilização da cultura pilotada pela mídia norte-americana. Em 1990, por exemplo, pouco depois da euforia que se seguiu à queda do totalitarismo soviético, publicou virulento artigo no "The New Yorker" contra a forma como os recém-abertos mercados do Leste Europeu estavam sendo invadidos pela cultura de massa do Ocidente. Simbolizando na dupla Madonna e Maradona os valores destrutivos e anti-humanos gerados pela cultura produzida em série segundo critérios perversamente mercadológicos, George Steiner clama em defesa de um humanismo que me parece, para minha pessoal inquietação, condenado a sobreviver na oprimida atmosfera de uma escassa elite.

Bearer of ashes, ou Cassandra da alta tradição europeia, assim ocorre-me caracterizá-lo, numa mão empunha a memória perturbadora da ruína produzida pela barbárie deste século, noutra a determinação de afirmar contra uma nova onda bárbara as virtudes do seu humanismo acuado. É admirável e comovente assistir a esse tresloucado Quixote, a cavaleiro de um arfante humanismo-rocinante, arremeter contra os mortíferos poderes deste mundo da vertigem técnica capaz de produzir catástrofes apreciadas pelo público universal como se fossem eletrizantes videogames.

Vendo-o de lança em riste, sobre uma campina solitária, e imaginando-o a braços, bastaria um só dia, com a mídia brasileira, não resisto à tentação de compará-lo a um humanista brasileiro que, em contexto evidentemente muito distinto, assim foi caracterizado por Mário de Andrade: "E se é certo que já agora ele é uma das mais fortes figuras de crítico que o país produziu, desconfio que os futuros não-sei-o-quê vivendo nestas terras do Brasil terão ao lê-lo o espetáculo dum homem querendo desviar uma enchente, apagar o incêndio dum mato, ou parar um raio com a mão".
Referia-se Mário de Andrade, sabem os leitores familiarizados com a literatura brasileira deste século, a Alceu Amoroso Lima, humanista (então da direita católica) empenhado em salvar o Brasil, ambição rotineira em intelectual nativo, com armas retrógadas e quixotescas fornecidas pelo catolicismo da época. O paralelo aqui grosseiramente proposto assenta, claro, sobre profundas diferenças de contexto histórico-ideológico. Mas acredito-o pertinente dada a similaridade da empresa movida tanto por George Steiner quanto por Alceu Amoroso Lima.

Diário, 1 de agosto de 1993.

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