terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Máximas e Mínimas VII


Quanto de auto-ironia, quanto de estoica resignação neste verso do mais belo poema de Elizabeth Bishop: "The art of losing isn't hard to master"? Os raros que na vida lograram dominar essa dolorosa arte, a da perda, em parte o fizeram constrangidos pela necessidade de sobreviver depois que tudo ou quase tudo lhes faltou dissolvido no ar sem esperança: modelos primários, amores, empregos, utopias, o próprio e irreparável desejo de felicidade condenado a errar num mundo onde quase tudo contra ele conspira. Assim, à parte o mérito estético do verso e, por extensão, do poema de Elizabeth Bishop, apenas num registro irônico ou estoico poderia alguém, qualquer perdedor humano, justificadamente afirmar que a arte de perder não é difícil.
Inteirado de episódios que de modo decisivo marcaram a vida dessa poeta tão longamente vinculada ao Brasil, vastidão e porto que comunicaram beleza e amor a um legado puritano perfilando sua identidade sempre movente, senão deliberadamente despatriada, custa-me ler este poema,"One Art", sem a ele agregar essa componente de fundo biográfico. Ademais, como em tantos aspectos episódios também decisivos da minha vida se cruzam com os dela, minha leitura mais espontânea finda por ser mesmo a empática, dimensão sutil onde a voz lírica ou crítica do autor se funde à do leitor. É de resto tão recorrente e fecunda a relação de identidade intervindo na combinatória autor e leitor, mediados pela obra, que somente essa verdadeira praga teórica chamada estruturalismo, além das leituras positivistas a ela nesse aspecto associadas, poderia explicar o desapreço, quando não franco desprezo, com que passou a tratá-la o leitor especializado.

Tão inconsciente que era incapaz de distinguir id de ide.

Por que entregar-me à hipotética corrente de um amor sem medidas, se já na carne aprendi a desmedida com que me puniu?

Se o amor é cego, não duvido de que anda de bengala.

Se a justiça é impossível, como pretendê-la provável?

Se a fidelidade é o teu critério, por que o demonstras traindo-me?

E como para sempre me amarias, se somos apenas mortais?

Não duvido de que sempre penses em mim. Mas não é verdade que pensamos enredados em contradições na rede do pensamento mesclando o amante ao marido, o oprimido ao opressor, o lucro ao que já perdemos?

Bons tempos aqueles em que o brasileiro podia consolar-se com o provérbio que o aconselhava a esperar sentado.

Tanta gente ávida por desnudar sua intimidade diante de refletores, câmeras e microfones. Transitam da festa à cama, da vida ao vídeo, do corpo ao coito, da coca à foda como se o que são e dizem tivesse alguma importância.

Beckett compara em tom de piada, ou nonsense, a criação do mundo, obra apressadamente concluída por Deus em apenas seis dias, à confecção de um par de calças indefinidamente adiada pelo alfaiate. O cliente, já fatigado de ir e voltar, afinal se impacienta e compara as duas ordens de criação intentando desqualificar a do alfaiate. Este suspira imperturbável e observa: "But look at the state of the world, my dear sir, and look at my trousers".

Quando tantos descaradamente negociam posições e princípios, resisto do alto desta montanha sustentado por forças morais que me elevam acima de todas as corrupções e virtudes mercenárias. Como todavia não sou obstinado, obstinação nunca foi virtude nem em tempos virtuosos, confesso que estou disposto a negociar meus fundos de integridade ética. Afinal, aprendi com o exemplo de homens mais virtuosos que o meu xará Fernando Collor que não há virtude inegociável.

Se falta de amor matasse, o mundo seria quase um cemitério. Não lastime, portanto, sua sorte. Como escreveu Auden, que jamais bebeu a sede dos sertões nordestinos, "Thousands have lived without love / No-one without water".
Cuide assim de se preocupar menos com o pote vazio do seu coração e mais com o reservatório de água do seu condomínio. Como uma discreta dose de realismo previne desastres perfeitamente controláveis, sobretudo neste país de fantasia, antes racionamento de amor que de água.

E tudo para que?, às vezes liberto me pergunto. Toda essa trepidação cardíaca, corrida sem mapas dentro da noite, a atormentada busca de mim no outro, noites lutadas em claro contra fantasmas que ora atendem por amor, ora por ciúme, ora por privação da carne. Para que tudo isso, eu me repito, se de tudo nada fica, se a própria ruga se dissolve na poeira que és e o vento no ar pulveriza?

São Paulo, fevereiro de 1995.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Amor e queijo suíço


Severo Machado

Os dois ou três leitores que acaso leram minhas crônicas talvez identifiquem contradições grosseiras nesta que aqui vai. Aliás, não sei se a designe como crônica ou conto. Faz anos que discuto com amigos chegados à literatura a distinção entre uma e outro sem que cheguemos a um acordo. Por isso, visando encurtar a intriga, passei a repisar este juízo de Mário de Andrade: conto é o que o autor diz que é conto. Sendo assim, democraticamente estendo o critério libertino ao próprio leitor: conto ou crônica é o que o leitor diz que é conto ou crônica. Sei que uma solução arbitrária como esta irrita os acadêmicos, que de resto ficam sem ter o que fazer. O que seria do ganha-pão deles sem essas bizantinices?

Prometo não ir longe na consideração das contradições grosseiras que o leitor pode identificar entre esta crônica e outras postadas no blog de Fernando da Mota Lima, que me tolera apenas por falta de melhor companhia. A recíproca é verdadeira e assim vou em frente. Fico na consideração de uma única contradição. O leitor notará que desta vez o tema da crônica não são minhas aventuras eróticas costumeiras. O blogueiro que me acolhe diz que sou cínico e cruel. Ora, precisamos afinal ser alguma coisa na vida, é o que respondo e ele engole rindo. Apesar das evidências em contrário, sou como todo mundo. Quero dizer, também visito amigos, até inimigos suportáveis, e muitos são casados, uns raros bem casados. Isso prova que, apesar dos meus inimigos, sobretudo dos amigos, nunca pratiquei o celibato militante e promíscuo. Pratico apenas o celibato promíscuo. E com tanta honestidade que repito Misael, o misógino, sem língua entre as pernas: troco de mulher como troco de roupa. Portanto, não tenho culpa se as enganadas lavam roupa suja na lavanderia errada.

Como bom brasileiro, passo ao assunto da crônica reiterando um dos bordões da nossa inconsciência nacional: não tenho preconceito. Sou mulherengo, cínico, misógino, racista, autoritário, faço o que não digo e desfaço o que não faço, mas juro de pés juntos: não tenho preconceito. Chega de autoelogio. Passemos à crônica.

Confesso que nunca entendi o amor tenaz e inabalável que Natália nutre por Leôncio e Marcela por Cristóvão. Mais que isso, que incapacidade de explicá-lo, tinha ressentimento desse amor. Como sou humano com um travo de mesquinharia na minha humanidade, ficava ressentido por não ser afortunado como eles. Eis que um dia, às vésperas do Natal, em pleno clima de festa e consumo natalino, estávamos reunidos num jantar animado na época em que Marcela e Cristóvão moravam numa casa da Rua Real da Torre cuja varanda ouviu muita gargalhada de amizade e prazer.

Alguém falou em queijo suíço, que em tempos de hiperinflação era um luxo, e então brinquei dizendo algo do tipo: sempre desconfiei de que havia um vínculo secreto entre Cristóvão e a Suíça. Foi aí que surpreendi um brilho estranho, diria sutilmente monetário, nos olhos sempre puros e delicados de Marcela. Perturbada por meu olhar, que por uns vagos segundos ficou cego diante daquele brilho intenso e fugaz, Marcela prontamente disse: “Você é um fantasioso. Imagine Cristóvão com conta secreta em banco suíço... Além disso, se um dia tiver a infelicidade de ficar viúva, serei viúva pobre, rica apenas de amor”.

De repente, tudo miraculosamente se esclareceu e assim sosseguei meu ressentimento diante desse amor que tanto invejava, ao ponto de me inspirar insone ressentimento. Só os infelizes no amor, aqueles que convertem essa infelicidade em solidão ressentida, somente eles podem avaliar a dor que nos causa a felicidade alheia, ainda que seja a dos amigos. Para mim, tudo ficou explicado e desde então dormi em paz diante desse amor tão belo e constante que tem atravessado nossa longa vida. A partir de então, suportava à vontade seus estados de felicidade espontânea em contraste com minha solidão contraída. Bastava-me dizer para meus botões, embora não costume usá-los: Isso não passa de felicidade conjugal com depósito bancário na Suíça.

Sucedeu que ontem almocei com Leôncio e Natália. Não foi tudo perfeito (nada afinal é perfeito, como dizemos invocando chuva no aguaceiro) porque Leôncio teve a infeliz ideia de convidar Lúcio Siqueira. Além de péssima companhia, Lúcio me obrigou a lhe dar carona, o que significa dizer que tive de suportá-lo sóbrio na ida e bêbado na volta. Como não dou uma pela outra – isto é, a sobriedade pela embriaguês, no caso dele – tive vontade de largá-lo no alto do viaduto Joana Bezerra.

Mas volto ao fio da meada. O almoço não foi perfeito porque havia Lúcio e porque faltava queijo suíço. Não sei por que, a meio daquela reunião divertida, avivada pelos vinhos e pratos deliciosos que Natália nos servia, tive de repente uma insofreável saudade de queijo suíço. Deixei então que me escapasse essa impropriedade: Só não está perfeito porque falta queijo suíço. E até emendei: estamos por acaso em tempos de hiperinflação?

Ao me voltar para Natália, por um instante paralisada, notei no seu olhar o mesmo brilho estranho, a mesma profundidade insondável que muitos anos antes lera no olhar de Marcela. Como que por um milagre somente concebível em divã de psicanalista (não de um qualquer, mas o de Freud), ouvi Natália repetir as mesmas palavras que anos antes ouvira dos lábios de Marcela: “Você é um fantasioso. Imagine Leôncio com conta secreta em banco suíço... Além disso, se um dia tiver a infelicidade de ficar viúva, serei viúva pobre, rica apenas de amor”.

Por pouco não saltei de desafogo e vingança. Foi como se me tirassem das costas e do coração travado um grande peso, um peso de ressentimento que não se pesa em balança de bodega. Então estava tudo explicado: esse amor que tanto invejo, que tanto me separou desses dois afortunados, Leôncio e Cristóvão, esse amor não passa de uma tenaz ilusão de viúva pobre. Elas pensam que ambos têm fortunas fechadas a sete chaves num inviolável banco suíço. Como se ambos, coitados, fossem irmãos eleitos de Maluf. Ainda bem que ambos são imortais, elas também, pois do contrário não herdariam nem queijo suíço. Razão tinha certo amigo meu que costumava dizer: amor é coisa de louco. Sendo de mulher, é loucura tresloucada.
Recife, 9 de dezembro de 2012.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Samba em Prelúdio

Luciano (voz) e Fernando (voz e violão) cantando Samba em Prelúdio, de Baden Powell e Vinícius de Moraes. Vídeo gravado, sem ensaio, no apto. de Mariângela Ribeiro e Giulia. Recife, novembro de 2012.


quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

London London

Fernando cantando London London, de Caetano Veloso, no apartamento de Mariângela e Giulia. Vídeo gravado em homenagem a Julia Oliveira em novembro de 2012.



domingo, 6 de janeiro de 2013

Elogio da mediocridade


Sou um tipo de qualidades extraordinariamente medíocres. Nasci medianamente num meio-dia meio sol e meio chuva de um meio de ano perdido bem no meio do século. Filho mediano entre quatro irmãos, logo me fiz notar por traços mediocremente tímidos numa infância medianamente intimidada. Jogando futebol no meio do campo, não foi difícil tornar-me titular de um time mediocremente classificado, aquele tipo de time que, se nunca ganha um título, também com certeza jamais é rebaixado à humilhante posição de lanterninha.
Ocupando sempre um ponto médio entre a tela e o fundo do cinema, entreguei-me aos filmes e estrelas de Hollywood com uma paixão medianamente controlada. Minhas musas eram, claro, mulheres medianas na estatura e no talento, na beleza e no ardor com que beijavam em cena. Tanto é isso verdade que, sem subirem ou descerem na apreciação do gosto público, hoje estão completamente esquecidas. Em mim próprio, embora medicremente fiel, confesso que se tornaram imagens mais ou menos apagadas.
Mediocremente casto, perdi a virgindade muito cedo, mas em compensação curti na adolescência os rigores repressivos de uma época em que menina de família era forçada a casar virgem. Portanto, paquera e namoro, por mais longe que fossem, raramente iam à via dos fatos tão febrilmente desejados. Minha mediocridade lírica, teimosa de transfigurar até a humanidade das putas, salvou-me da corrupção que foi e é timbre do machismo que se espoja nos puteiros e antros similares. Mais tarde, é verdade, caí na esbórnia desatada pela revolução dos costumes. Sempre equidistante dos extremos, como bom medíocre, saltei a tempo da canoa furada quando tive a graça de encontrar um grande amor. Por que não dizer o grande amor?
Em tudo mais tenho sido de extraordinária constância no exercício de minha mediocridade. Leitor mediocremente aplicado, leio sempre à meia-noite nos dias em que me ocupo a meio do dia. Professor mediocremente considerado, dou de mim o melhor, minha medíocre pedagogia, visando desencorajar os alunos irrecuperáveis enquanto de outro lado procuro estimular os raros excepcionais.
Aludindo ainda à minha medíocre condição de leitor, encontrei uma solução inventiva para o exercício da leitura fiel a meu princípio vicioso da mediocridade. Já que a leitura integral de uma obra é incompatível com o meu princípio, aprendi a ler os livros pela metade: leio primeiramente as páginas ímpares, por fidelidade à minha formação de esquerda, em seguida as pares. Por fim, cuido de fundir umas nas outras e disso resulta uma obra absolutamente irreconhecível, além de mediocremente original.
Mulheres passionais queixam-se da minha brandura amorosa sempre a um calibrado meio termo entre a paixão e a amizade. Profissional discreto, mediocremente equilibrado entre o fracasso e a ambição do sucesso, chego à meia idade meio em desconforto entre a metade de mim já trabalhada e a outra moderadamente sonhando com uma aposentadoria por tempo integralmente dedicado a tarefas medíocres.
Num mundo hoje regido pela busca do sucesso a qualquer preço, da fama a qualquer custo, da celebridade a qualquer virtude ou vilania, o medíocre é o primeiro a se depreciar, já que se sofre como se fosse e não fosse, além de estar apenas um degrau acima do anonimato. Quem se contentaria em ser anônimo na sociedade do espetáculo? Quem se reconciliaria com a própria mediocridade num mundo feito de passarelas, palcos, vitrines e pódios onde todos aspiram a subir não importando como? Quem acaso louvaria a moderação num mundo de excessos?
Pois acreditem que não me descontenta a sombra obscura que me acolhe e protege do sol. Prezo a sombra da árvore mirrada que plantei entre os refletores e a escuridão aterrorizante do anonimato. Daqui, sem fazer maior esforço, contemplo o grande e vazio espetáculo do mundo embalado pelo balanço da rede que entedia os enérgicos e ambiciosos, castiga os astros desprovidos de luz própria ou alheia, deixa sonolentos os preguiçosos sem ideal e músculo.
Daqui aprecio, não raro aos risos, a corrida insensata que tantos correm sem saber por que ou para onde. Correm porque, se por um instante pararem, mergulharão no vazio e na depressão. Correm simplesmente porque têm pernas e nunca lhes ocorre perguntar para que servem. Embriagam-se com a ação pura, pois temem a atividade iluminadora do pensamento que corre prescindindo de pernas, atravessa mares e horizontes a galope da imaginação criativa. É por isso que tudo faço, mediocremente ou não, sem sair da rede. Por isso amo minha rede nordestina ou grega ou russa como Oblomov amava viciosamente seu sofá. E se todas as corridas de São Silvestre não valerem meu obscuro reino, suspenso entre duas paredes?
Se a virtude de fato consiste no meio termo, como postulava Aristóteles, será então justo concluir que sou um medíocre extraordinariamente virtuoso. Mas convenhamos que o grande feito seria tornar-me meio vivo e meio morto, isto é, nem ir nem ficar, nem entrar na cova, nosso irrecorrível endereço último, nem ficar para sempre penando neste mundo cujas soluções são sempre extremas.

Recife, agosto de 1993 (revisto e ampliado em janeiro 2013).

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

A Primeira Luz


Quando ela aniversaria
A luz no mar diz bom dia
E a brisa sopra na argila.
Luz do farol, maresia
A natureza anuncia
O dia que é de Camila.

Canto no ar, passarinho
A vida acorda no ninho
Preguiça de acordar.
Outro bocejo, indolência
Na foto dela ele pensa
Bóia na concha do mar.

O céu da primeira luz
O som da primeira luz
Tudo que a vaga perfila
Na luz do mar se constela.
A vida abriu a janela
Soprou azul no olho dela
E tudo se fez Camila.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

A Luz do Primeiro Engano


Para Brenno.

A primeira luz do ano
Sopra no mar os enganos
Que entanto queremos ser.
Enganos de metro e amor
De vida além do esplendor
Que se resolve em prazer.

A luz primeira do ano
Anúncio de tantos planos
Ermos de régua e compasso
É vela de roto pano
Traindo no ardor do engano
Apenas tédio e fracasso.

Mas prosseguimos, erramos
No dia retendo o engano
Que as ondas lavam na areia.
E assim seguimos sonhando
A vida se esvaziando
Nas trevas da maré cheia.

A luz do primeiro engano
Refeita ano após ano
Reflete a sombra do cético
Portando no coração
A mais humana invenção
Tombada no último século.

Mas ninguém ouve ou quer ver
O moribundo a gemer
Os estertores da dor.
Ébrios de festa e engano
Vão este e os seguintes anos
Sem consciência enterrando
O ser que vive no engano
De ser o que foi amor.

Fernando da Mota Lima.
Recife, 1 de janeiro de 2005.