quarta-feira, 23 de janeiro de 2013
Amor e queijo suíço
Severo Machado
Os dois ou três leitores que acaso leram minhas crônicas talvez identifiquem contradições grosseiras nesta que aqui vai. Aliás, não sei se a designe como crônica ou conto. Faz anos que discuto com amigos chegados à literatura a distinção entre uma e outro sem que cheguemos a um acordo. Por isso, visando encurtar a intriga, passei a repisar este juízo de Mário de Andrade: conto é o que o autor diz que é conto. Sendo assim, democraticamente estendo o critério libertino ao próprio leitor: conto ou crônica é o que o leitor diz que é conto ou crônica. Sei que uma solução arbitrária como esta irrita os acadêmicos, que de resto ficam sem ter o que fazer. O que seria do ganha-pão deles sem essas bizantinices?
Prometo não ir longe na consideração das contradições grosseiras que o leitor pode identificar entre esta crônica e outras postadas no blog de Fernando da Mota Lima, que me tolera apenas por falta de melhor companhia. A recíproca é verdadeira e assim vou em frente. Fico na consideração de uma única contradição. O leitor notará que desta vez o tema da crônica não são minhas aventuras eróticas costumeiras. O blogueiro que me acolhe diz que sou cínico e cruel. Ora, precisamos afinal ser alguma coisa na vida, é o que respondo e ele engole rindo. Apesar das evidências em contrário, sou como todo mundo. Quero dizer, também visito amigos, até inimigos suportáveis, e muitos são casados, uns raros bem casados. Isso prova que, apesar dos meus inimigos, sobretudo dos amigos, nunca pratiquei o celibato militante e promíscuo. Pratico apenas o celibato promíscuo. E com tanta honestidade que repito Misael, o misógino, sem língua entre as pernas: troco de mulher como troco de roupa. Portanto, não tenho culpa se as enganadas lavam roupa suja na lavanderia errada.
Como bom brasileiro, passo ao assunto da crônica reiterando um dos bordões da nossa inconsciência nacional: não tenho preconceito. Sou mulherengo, cínico, misógino, racista, autoritário, faço o que não digo e desfaço o que não faço, mas juro de pés juntos: não tenho preconceito. Chega de autoelogio. Passemos à crônica.
Confesso que nunca entendi o amor tenaz e inabalável que Natália nutre por Leôncio e Marcela por Cristóvão. Mais que isso, que incapacidade de explicá-lo, tinha ressentimento desse amor. Como sou humano com um travo de mesquinharia na minha humanidade, ficava ressentido por não ser afortunado como eles. Eis que um dia, às vésperas do Natal, em pleno clima de festa e consumo natalino, estávamos reunidos num jantar animado na época em que Marcela e Cristóvão moravam numa casa da Rua Real da Torre cuja varanda ouviu muita gargalhada de amizade e prazer.
Alguém falou em queijo suíço, que em tempos de hiperinflação era um luxo, e então brinquei dizendo algo do tipo: sempre desconfiei de que havia um vínculo secreto entre Cristóvão e a Suíça. Foi aí que surpreendi um brilho estranho, diria sutilmente monetário, nos olhos sempre puros e delicados de Marcela. Perturbada por meu olhar, que por uns vagos segundos ficou cego diante daquele brilho intenso e fugaz, Marcela prontamente disse: “Você é um fantasioso. Imagine Cristóvão com conta secreta em banco suíço... Além disso, se um dia tiver a infelicidade de ficar viúva, serei viúva pobre, rica apenas de amor”.
De repente, tudo miraculosamente se esclareceu e assim sosseguei meu ressentimento diante desse amor que tanto invejava, ao ponto de me inspirar insone ressentimento. Só os infelizes no amor, aqueles que convertem essa infelicidade em solidão ressentida, somente eles podem avaliar a dor que nos causa a felicidade alheia, ainda que seja a dos amigos. Para mim, tudo ficou explicado e desde então dormi em paz diante desse amor tão belo e constante que tem atravessado nossa longa vida. A partir de então, suportava à vontade seus estados de felicidade espontânea em contraste com minha solidão contraída. Bastava-me dizer para meus botões, embora não costume usá-los: Isso não passa de felicidade conjugal com depósito bancário na Suíça.
Sucedeu que ontem almocei com Leôncio e Natália. Não foi tudo perfeito (nada afinal é perfeito, como dizemos invocando chuva no aguaceiro) porque Leôncio teve a infeliz ideia de convidar Lúcio Siqueira. Além de péssima companhia, Lúcio me obrigou a lhe dar carona, o que significa dizer que tive de suportá-lo sóbrio na ida e bêbado na volta. Como não dou uma pela outra – isto é, a sobriedade pela embriaguês, no caso dele – tive vontade de largá-lo no alto do viaduto Joana Bezerra.
Mas volto ao fio da meada. O almoço não foi perfeito porque havia Lúcio e porque faltava queijo suíço. Não sei por que, a meio daquela reunião divertida, avivada pelos vinhos e pratos deliciosos que Natália nos servia, tive de repente uma insofreável saudade de queijo suíço. Deixei então que me escapasse essa impropriedade: Só não está perfeito porque falta queijo suíço. E até emendei: estamos por acaso em tempos de hiperinflação?
Ao me voltar para Natália, por um instante paralisada, notei no seu olhar o mesmo brilho estranho, a mesma profundidade insondável que muitos anos antes lera no olhar de Marcela. Como que por um milagre somente concebível em divã de psicanalista (não de um qualquer, mas o de Freud), ouvi Natália repetir as mesmas palavras que anos antes ouvira dos lábios de Marcela: “Você é um fantasioso. Imagine Leôncio com conta secreta em banco suíço... Além disso, se um dia tiver a infelicidade de ficar viúva, serei viúva pobre, rica apenas de amor”.
Por pouco não saltei de desafogo e vingança. Foi como se me tirassem das costas e do coração travado um grande peso, um peso de ressentimento que não se pesa em balança de bodega. Então estava tudo explicado: esse amor que tanto invejo, que tanto me separou desses dois afortunados, Leôncio e Cristóvão, esse amor não passa de uma tenaz ilusão de viúva pobre. Elas pensam que ambos têm fortunas fechadas a sete chaves num inviolável banco suíço. Como se ambos, coitados, fossem irmãos eleitos de Maluf. Ainda bem que ambos são imortais, elas também, pois do contrário não herdariam nem queijo suíço. Razão tinha certo amigo meu que costumava dizer: amor é coisa de louco. Sendo de mulher, é loucura tresloucada.
Recife, 9 de dezembro de 2012.
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