segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Lewis Coser



Masters of Sociological Thought, de Lewis Coser, é um livro de ciências sociais que releio periodicamente com renovado prazer. Um tanto à maneira de Isaiah Berlin, Coser traça fascinantes retratos psicológicos dos teóricos cuja obra expõe em seu livro. Já que principiei sugerindo um paralelo tópico com Berlin, penso não haver no gênero nada comparável ao que este escreveu sobre alguns russos excepcionais em Russian Thinkers, salvo o feito de Edmund Wilson contido nas páginas de To The Finland Station dedicadas à composição do caráter e da personalidade de Marx, Engels, Trotsky e outros grandes revolucionários inscritos numa linhagem histórica que, no livro de Wilson, vai de Michelet a Lênin. Comparado a ambos, Coser é uma inteligência de corte mais acadêmico. Ainda assim, não sei de livro de história das idéias sociológicas tão admiravelmente concebido e executado.

Ao selecionar 14 pensadores fundamentais na história da sociologia, acrescidos de um capítulo final intitulado “Recent trends in American sociological theory”, não se limita ele a uma exposição convencional das ideias mais fecundas, influentes e perduráveis na sociologia. Ajustando os capítulos individuais a um consistente plano geral, cada teórico é apresentado preliminarmente em relação aos aspectos relevantes da obra que produziu. Em seguida, é articulado ao contexto intelectual e ao contexto social. Assim procedendo, Coser invariavelmente ilumina a compreensão do autor, da obra e da época em que aqueles, autor e obra, se situam. Para alcançar tão brilhantes resultados, seleciona e analisa fatores de variada procedência, tanto traços relevantes da biografia dos teóricos estudados quanto fatores intrínsecos à composição da obra exposta; tanto as influências sofridas e exercidas quanto correlações referentes a autor, obra e recepção, nesta compreendida ora a recepção especializada, ora a geral.

Algumas das melhores passagens do livro concentram-se no delineamento do retrato psicológico dos sociólogos estudados por Coser. Surpreendo nestas páginas uma finura de percepção sócio-psicológica, uma atitude de simpatia humana orientada para a apreensão dos traços menos convencionais dos produtores de ideias inconcebível nas obras correntes do gênero. Praticamente todos os teóricos incorporados à seleção do livro merecem do autor esses esboços de retrato que, sendo embora críticos, ecoam em cada linha um sopro de tocante compreensão e humanidade. Como acima assinalei, não me lembro de nada que nesse estilo se compare ao ensaísmo crítico-biográfico de Isaiah Berlin e Edmund Wilson; ou ainda, lembra-me agora, os Portraits from Memory, de Bertrand Russell.

Guiado por um seguro e fecundo critério associável à sociologia do conhecimento, Coser estuda a produção e a recepção das ideias ressaltando os elos necessários que as vinculam à tradição intelectual, às condições do meio, influência e recepção. Outro modo de demonstrar que os teóricos e suas ideias não derivam de nenhuma manifestação espontânea, portanto isenta de qualquer tipo de causalidade, revela-se na sensibilidade crítica com que vincula as ideias e sua repercussão a fatores sócio-psicológicos. Valham como exemplo as páginas em que descreve acertadas e iluminantes correlações entre a rebeldia e a marginalidade intelectual de Marx e as peculiaridades da sua origem judaica, notadamente a vergonha ou pouco respeito que tinha pelo pai. Esquema semelhante lança luz sobre o marginalismo intelectual de Augusto Comte e Herbert Spencer e fatos peculiares a suas biografias.

Ressaltaria ainda, nesta breve anotação de leitura, a limpidez do estilo de Coser, a clareza com que expõe ideias por vezes áridas - quando não na substância, na forma como foram originalmente concebidas. Embora selecione e estude na sua obra autores inegavelmente clássicos – não obstante alguns, como é o caso de Thorstein Veblen, Charles Horton Cooley, Robert Park e Vilfred Pareto, sejam hoje praticamente ignorados nos círculos acadêmicos brasileiros – até o especialista ou sociólogo de osso e ofício passa por duras provações quando se aventura a ler a obra que produziram. Isso explica, em parte, o fato de tantos comentarem e até pontificarem sobre a sociologia de Marx, Weber e Durkheim, limito meu exemplo à Santíssima Trindade da tradição sociológica, sem todavia conhecê-la diretamente. Coser areja a cabeça do leitor iluminando e trocando em miúdos conceitos e teorias que este decerto penaria para adequadamente assimilar indo às fontes diretas. Assim, o leitor preguiçoso sai da leitura bem mais esclarecido sobre a grande tradição da sociologia. Quanto ao que quer ir além do grande comentador que é Coser, para este a obra constitui um exemplo de encorajamento fundamental para que doravante se arrisque a ir aos próprios clássicos.

Diário – Recife, 4 de julho de 2004.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Do cinismo



Como é estranha e fascinante a história das palavras. Para os que apreciam termos técnicos, como é estranha e fascinante a etimologia. As palavras e seus sentidos instáveis e até turbulentos - o objeto da etimologia, noutras palavras - dizem muito da inconstância e falibilidade de tudo que é humano. Sendo criação nossa, teriam elas, as palavras, que fatalmente refletir o que temos de melhor e pior, para não fugir ao lugar comum.

Entro agora no meu assunto antes que o leitor já entediado vire a página. Estava eu acompanhando o noticiário relativo ao trem de demissões do Ministério dos Transportes quando me ocorreu lembrar um filósofo de bem remota existência, mas ainda muito oportuno. Refiro-me a Diógenes, o cínico. É este aposto, cínico, o fantasma que move as linhas do parágrafo inicial do meu artigo. O cinismo, palavra hoje revestida de tão má reputação, transportada de uma para outra baixeza, de livre trânsito no Ministério dos Transportes, perdeu por completo suas virtudes originais.

Diógenes foi o grande representante da filosofia cínica, de longeva existência, quando o cinismo significava algo totalmente oposto ao sentido dominante no presente. Ele era cínico porque, desprezando radicalmente as convenções sociais, toda a pompa e futilidade do mundo, decidiu-se a viver como um cão. Daí o termo cínico, que originalmente significa canino, ou de origem canina. Cinismo hoje, sabemos, é algo bem diferente, para não dizer oposto ao sentido que acabo de anotar. A elite política brasileira ilustra o sentido corrente do termo melhor talvez que qualquer outro grupo social. Aliás, como bem observa o historiador Evaldo Cabral de Mello, o Brasil não tem elite, tem clientela. Assim, nossa clientela reparte os bens públicos sob o balcão, ou sob os tapetes dos palácios, embora os mais impudentes e imprudentes, mais confiantes na impunidade, operem à luz do dia.

Voltando a Diógenes, lembro uma anedota que o leitor talvez conheça. Um dia saiu pelas ruas de Atenas com uma lanterna acesa à luz do dia. Intrigados diante do fato, alguns curiosos perguntaram-lhe a razão daquela extravagância, de resto costumeira no comportamento do filósofo. Respondeu simplesmente que procurava um homem honesto. Imagino Diógenes redivivo andando pelas ruas de Brasília não mais com uma lanterna, mas com um refletor ou uma filmadora à procura de um político honesto, ou simplesmente um brasileiro honesto.

Vivendo como um cão, Diógenes com certeza prescindiria de ruas devidamente asfaltadas e estradas transitáveis. Prescindiria ainda mais da filmadora, que todavia lhe enfiei nas mãos para melhor ilustrar a cultura corrente no nosso tempo. Seu alvo era a virtude, ou ausência de virtude dos seres humanos que, à sua diferença, livremente ajustado à sua condição canina, vestiam as vestes enganadoras das convenções para exibir poder e fortuna amealhados mediantes expedientes corruptos, portanto indignos de um cão como ele. Destoando dos cães contemporâneos, todos corrompidos por nossa humanidade consumista e egocêntrica, Diógenes fundamentou sua filosofia na busca da virtude subjetiva indiferente à futilidade do mundo.

No entanto, que dizer de nós? Se acaso somos honestos, o fato é que pouco ou nada nos indignamos em face da desfaçatez com que os cínicos e corruptos da política negociam as fortunas arrancadas da população que paga impostos, isto é, toda a população brasileira. Como há muitos desavisados supondo que quem paga imposto é apenas a fração colhida pela rede dos impostos diretos, talvez seja preciso esclarecer que todos pagamos impostos, pois a maior parte da carga tributária procede dos impostos indiretos, que afetam a totalidade da população.

Seria a ignorância acima indicada explicação suficiente para nossa inércia política, a apatia ou indiferença com que todos os dias ouvimos, lemos e vemos as notícias rotineiras sobre a desonestidade dos políticos, tão previsível e frequente quanto a luz do sol e a água da chuva? Há alguns dias minha ex-namorada enviou-me o link de um artigo publicado em El País sobre a corrupção corrente durante o governo Lula que vazou para o governo de Dilma Roussef. Sendo espanhola, além disso totalmente alheia a certos traços da história e da cultura brasileira, Isabel pareceu-me desorientada diante da nossa inércia. O artigo do El País explicita essa perplexidade compreensível numa sociedade na qual a tolerância diante da corrupção é mínima, ou pelo menos incomparavelmente mais reduzida. O autor do artigo se perguntava, noutras palavras, por que os brasileiros não se indignavam quando agora assistimos perplexos até aos movimentos regeneradores de combate à corrupção e à ditadura em países do Oriente Médio.

Se ele, o jornalista espanhol, não explica nossa apatia política, nossa incapacidade de indignação em face da corrupção endêmica na nossa política, que direi de mim? O leitor curioso poderá conferir no artigo as explicações que esboça. Quanto a mim, brasileiro comum equilibrando-se para não cair nos buracos cavados até nas vias centrais da capital em que moro; desanimado de empreender viagens de carro por não suportar o caos rotineiro das nossas rodovias; há muito descrente de políticos e partidos brasileiros, embora ciente e consciente de que alguns se salvam do atoleiro no qual chafurdam nossos políticos, quanto a mim contento-me em repisar a frase famosa de Tom Jobim: o Brasil não é para principiantes.

Confesso que muito gastei do meu tempo e trabalho visando explicar os enigmas do Brasil. Tendo antes a presunção de chegar a explicações suficientes, muita palavra e saliva consumi aspirando a melhor compreender enigmas do tipo: por que o Brasil piora até quando se desenvolve? Por que um país tão rico mantém em estado de semiescravidão grande parcela do seu povo? Por que não somos sequer capazes de lutar de forma tenaz contra nossas tradições mais retrógadas e revoltantes? Por que a imagem de um país em ruínas se confunde com a imagem de um país que progride? Por que nosso orgulho e nossa resignação ancoram na frase delirantemente nacionalista segundo a qual Deus é brasileiro? Por que Kafka não nasceu no Brasil? Ou melhor: por que não criamos na nossa literatura uma tradição de corte kafkiano? O Brasil que pensei, o Brasil que figurei como possibilidade, esse Brasil nunca existiu nem existirá. O que há é esse no qual os homens desprezam os ideais éticos e as virtudes propostas por Diógenes, no qual a possibilidade de Diógenes foi suprimida e os cães nunca são cínicos como o filósofo grego que preferiu a luz do sol, os dons gratuitos da natureza, à grandeza da sombra de Alexandre Magno.

sábado, 20 de agosto de 2011

Deus



Deus

Deus nem sabe que existe.
Deus é o eco
Da humana solidão desamparada.
Deus é o sopro dilatado no vazio
O sonho alarmado do meu nada.

Deus nem sabe do eterno em que repousa
Poeira na tormenta
A voz de uma carência indesvendada.
Deus ri da força delirante que o gerou
Temente de mirar-se no seu nada.

Deus nem sabe que sou
Murcha flor
Regada sobre a terra devastada.
Deus despido de si contempla o abismo
E salta para o fundo do meu nada.
Recife, setembro 1995.

Deus
Deus existe.
Deus é chiste
Deux existe
mais je suis un.
Recife, 25 / 02 / 2007


quarta-feira, 17 de agosto de 2011

As Almas de Júlia S.



As almas de Ju são tantas
Tantas as almas de Ju
Uma que à noite se espanta
Outra comendo pão cru
Umas torcendo a garganta
Outras despindo o rei nu.

As almas de Ju são tantas
Errando de norte a sul
Umas vestidas de santas
Outras bailando no azul
Umas requebro de ancas
Outras tormento de um blues.

As almas de Ju são tantas
Tontas vagando nas salas.
Entre perdidas e santas
Quem há de uni-las e atá-las
Quem na paisagem mais branca
Num só relance abarcá-las?

Sendo ela própria e outras
Que sob o teto abriga
Júlia talvez queira poucas
Na teia que se fabrica
Talvez não ache nas loucas
A louca irmã e amiga.

No lado em que se extravia
De porta em porta batendo
A alma irmã anuncia
Dentro da treva do dia
Um outro em Júlia nascendo
Feito de luz e poesia.

A alma que chora e canta
É a mesma que acaricia
Assim como a que descanta
A que no fundo eu queria.
Das almas perdi a conta
De Ju as contas do dia.

De si assim desavinda
Júlia não vê a beleza
Da alma que vibra ainda
No cerne da natureza
Fundindo a face mais linda
Num véu de vaga tristeza.

Fosse eu um outro poeta
Herdeiro da criação
Eu lhe doava completa
A irretocável canção:
A alma branca na preta
Fundidas no coração.

Mas é na linha da falta
Que a gente afia a razão
A vida mais plena e alta
Colhe as sementes no chão.
No metro estreito da pauta
A nota da perfeição.

Recife, 12 de dezembro de 2003.

domingo, 14 de agosto de 2011

Solidão



Quem cuidará de mim quando a doença
Enfim chegar tangida pelos anos
Quem velará no céu minha descrença
Quem meu silêncio à borda do piano?

Quem me amará ao sol desse deserto
Onde meu grão fenece à luz do outono
Quem “meu amor”, dirá, “meu peito aberto
Na solidão embalará teu sono”?

Quem na velhice, quando ela chegar
A mão na minha medirá a estrada
Passando assim, pois tudo há de passar
E a sombra é sobra e é tudo que é meu nada?
Recife, 13 de agosto de 2011.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Viagem a Buenos Aires II



Buenos Aires, 17 de fevereiro de 1995

Depois de percorrer tantas lojas de música em Buenos Aires, chego à conclusão inquestionável de que a Argentina está musicalmente mais próxima do Brasil do que o Brasil da Argentina. Quem Perde? Sei que a Argentina ganharia ainda mais se em lugar ou para além de Xuxa, Daniela Mercury e os roqueiros ouvisse mais Tom Jobim, Chico Buarque, João Gilberto, Villa-Lobos, Noel Rosa, Pixinguinha, etc. De outro lado, estou certo de que a música argentina não é apenas Piazzolla. Portanto, também nós saímos perdendo nesse comércio de relações musicais.
Mas que dizer de Fito Paez, autor da belíssima canção "Un vestido y un amor", revelada no Brasil por Caetano Veloso no seu último cd? Dizem-me os argentinos com quem conversei que Paez vale por tudo que criou, tudo que ainda ignoro. Vi sem no entanto ouvir os seus cds em várias lojas de Buenos Aires. Embora tanto tenha pensado em adquiri-los, findei sempre por concluir que mais prudente será antes conhecê-los através do argentino José Luís quando retornar a Recife.

Compro livros de Ernesto Sabato. Entre outros, entre la letra y la sangre, livro que reúne uma série de conversas com Carlos Catania. Sabato fala de tudo, ou quase, inclusive da metafísica do tango. Isentando-se de especulações pedantes acaso sugeridas pela metafísica que associa ao tango, assinala as raízes históricas desse gênero de música popular difundido pelo mundo inteiro como o jazz, a bossa nova e o rock. Lembra que, à semelhança do jazz, o tango brotou do mundo da pobreza e da marginalidade social. Música parida nos bordéis, onde migrantes pobres e privados de amor recorriam ao simulacro deste, que é a prostituição, o tango acabou ascendendo a extratos sociais inteiramente dissociados da sua origem. Sabato comprime a nota da tristeza e da solidão nitidamente desenhadas nesse gênero de música tão passional e violento. Enquanto gênero, o tango é a expressão musical mais dilacerante e sensual que conheço. Lendo essas passagens do seu livro, lembrei-me da definição proposta por Astor Piazzolla, o Tom Jobim do tango. Entrevistado por um jornalista inglês que lhe perguntou o que era o tango, replicou em tom curto e grosso, mas absolutamente certeiro: “it´s a vertical rape”.

Porque a condição humana se funda sobre uma cisão de raiz entre desejo e satisfação, entre ser e querer, haverá arte enquanto houver código, imaginação, poeira humana vivente nesse universo de indecifráveis enigmas. Criar arte é um dos modos humanos, ambição sempre falhada, de compensar e transcender nossa cisão de origem.
Um dos mais recentes delírios utópicos nutrido por intelectuais revolucionários consistiu na tola presunção de acreditar que o mundo sem classes produzido pela revolução proletária suprimiria essa ferida aberta entre ser e querer. Tomando como historicamente determinada, e portanto superável pela práxis humana, a cisão que é de natureza metafísica, apostaram nessa tolice que chamei de delírio utópico. Lembro-me de Kostas Axelos, por exemplo, antevendo em escritos dos anos sessenta essa atualização secular do mito do paraíso que é a utopia marxista projetada num tempo sem opressão e sem classes sociais.
Evidentemente, a utopia não foi formulada por Marx e seguidores ilustres, para não mencionar os diluidores mais grosseiros, nos termos em que aqui a interpreto. Seu fundamento imediato ou aparente é, sabemos, a análise materialista objetiva das condições históricas determinantes da opressão e infelicidade humanas. Compreendida entretanto na sua dimensão mais profunda, não passa a utopia de uma teorização sofisticada da nossa cisão de origem. E se aqui a formulo em termos metafísicos, ou meta-históricos, é porque me move a convicção de que esta é sua real natureza.

Quando vivi na Inglaterra, tendo pela primeira vez a oportunidade de conviver com estudantes latino-americanos, dei-me conta do quanto reciprocamente nos ignorávamos. Pois se é verdade que em princípio tantas coisas tendem a nos aproximar, geografia e história marcadas por condições de permanente dependência frente ao colonizador europeu, sucedido pelo americano do norte, imensas barreiras nos têm secularmente dividido. Talvez uma das possíveis explicações para essas barreiras derive do caráter de dependência cultural que de um lado sempre nos vinculou, seja à Europa, seja mais proximamente aos Estados Unidos, enquanto do outro conduziu à profunda ignorância mútua a que me refiro.

No se puede vivir sin amar. Li esta frase desolado, assim em espanhol tal como a transcrevo, em Under the Volcano, de Malcolm Lowry, o atormentado e extraordinário Lowry que lenta e inexoravelmente se destruiu errante nesse mundo tanto carecido de amor. A frase me penetrou um certo dia em Recife, de imediato através do filme adaptado por John Huston, revisitou-me frequentes vezes em momentos de solidão purgada na Inglaterra e afinal em mim se enraizou com o mesmo tom desolado que percorre a carência e a embriaguês literal de Geoffrey Firmin, o protagonista de Under the Volcano. A obra e vida de Lowry, tanto quanto a estragosa e inconfessável privação que me fere, impelem-me a repetir através da Plaza de Mayo: No se puede vivir sin amar.

Quanto mais percorro e descubro Buenos Aires, mais me apaixono por sua beleza, suas formas arquitetônicas de corte nitidamente europeu. Como é bela esta ciudad. "Y quando me pierdo en la ciudad / Vos ya sabés comprender / Es solo un rato no más / Tendría que llorar o salir a matar / Te vi, te vi, te vi / Yo no buscaba a nadie y te vi".

Se de minha parte posso dizer que intensamente amei quatro mulheres na minha vida, com todas tendo compartilhado momentos intraduzíveis de felicidade e prazer, não posso entretanto sustentar que nos limites da experiência repartida logrei alcançar essa ventura expressa em um sutil e inefável acordo entre duas almas apaixonadas. Como Isak Dinesen evocando Denys Finch Hatton (ver o filme Entre dois amores), muitas vezes na Inglaterra adaptei para meu uso pessoal a frase que condensa o grande e belo amor que viveu na África: “I had a love in Africa”. Evocando e em mim sofrendo a dor sem remédio de ter perdido C. no Brasil, no fundo da minha solidão e carência padecidas na Inglaterra assim disse e dizia de mim para mim: I had a love in Brazil. Mas esse amor, não importando quanto grande foi e seja ainda no que dele sobrevive como matéria da memória, este amor apenas excepcionalmente alcançou consumar-se tanto quanto conjugação erótica quanto acordo entre as duas almas amantes. Tal como quase todos que amaram, meus amores foram sobretudo vividos fruídos e gozados na sua dimensão dominantemente erótica. Direi melhor: carnal.
É assim por esse motivo, em alguns consciente, noutros obscuro, que tendemos a invejar, no bom quanto no mau sentido, os amantes venturosos. Terei eu um dia a felicidade de viver esse modo de plenitude? Refletindo em escala pouco mais modesta, viverei eu um dia com uma mulher a completude assentada sobre o domínio das almas, já que é tão rara a conjugação acima descrita? Well, well... Dizem que somente a partir dos 65 anos T. S. Eliot alcançou a felicidade à qual ao longo da vida tanto aspirara. Veio ela com Valerie Fletcher, sua secretária na editora Faber & Faber. Foi aparentemente tão feliz que nada mais de importante conseguiu literariamente criar. Well, well, se Eliot somente começou a ser feliz aos 65, por que não posso eu esperar?

Como acima registrei, quanto mais percorro e descubro Buenos Aires, mais me apaixono pela extraordinária beleza da sua arquitetura de inspiração francamente européia definindo as linhas e volumes de largas avenidas e praças. Tanto me apaixona esse tipo de cidade, sintoma, entre outros, de minha aderência talvez excessiva a valores e padrões estéticos de procedência européia, que involuntariamente penso no Recife. Comparando-a em seguida a Buenos Aires, concluo que sai ela de minha ligeira comparação como se não passasse de um acampamento urbano, uma mera caricatura de cidade compreendida no sentido civilizado do termo. Afinal, não foi por um acaso que civilização derivou de cidade. Assim compreendido, o paralelo entre as duas cidades vai muito além de suas configurações materiais estendendo-se aos modos peculiares de vida cultural que encerram. Algumas diferenças elementares e imediatamente perceptíveis: enquanto aqui as normas reguladoras do trânsito são rigorosamente obedecidas, lá enraizou-se o caos, quando não a prática homicida, resultante da nossa cultura da transgressão; enquanto aqui prevalecem o respeito ao silêncio e à privacidade nas esferas pública e privada, lá o gregarismo ruidoso e predatório se tem imposto de modo progressivo. Por essas e outras é que já me compenetrei de que sou um apátrida exilado nos trópicos onde a permissividade das normas e costumes, quando não a pura e simples anomia, se sobrepõem aos princípios de civilidade segundo os quais tenho procurado ordenar minha vida. Neste sentido, não resta qualquer dúvida de que me senti muito mais em casa na Inglaterra, assim como aqui em Buenos Aires, do que no Sudeste e sobretudo Nordeste brasileiros. A julgar pelo pouco que conheci de Santa Catarina e do Paraná, quando da minha viagem com Daniel e Célia em 1976, penso que por lá também me sentiria vivendo num Brasil mais condizente com meu modo de ser.

Retomo minha jornada através das livrarias de Buenos Aires. Explorei hoje a faixa da Avenida de Mayo que liga a 9 de Julio à Plaza de Mayo, além de também percorrer a Rivadavia, via que corrre imediatamente paralela à Avenida de Mayo. Deparei em livrarias e sebos um tal despropósito de preciosidades bibliográficas, algumas em línguas inglesa e francesa, que precisei de sobre mim exercer rigorosa polícia para não desandar a comprar parte desse tesouro cultural. Penso também, e esse pensamento me parece de efeito decisivo, no excesso de bagagem que precisaria comigo transportar.
Embora tomadas de assalto por toda a sorte de publicação pornográfica, além do lixo difundido pela cultura de massa, também nas bancas de revista circulam produtos excelentes da cultura de elite. Uma coleção de pensadores, belamente encadernada em capa dura e relativamente barata exibe obras importantes de Adorno, Ortega y Gasset, Mircea Eliade e outros. Estas já decidi que comprarei, mas somente quando já estiver no aeroporto prestes a voar de volta para São Paulo. No mais, são também excelentes as coleções de literatura universal, economia, esta originalmente editada pelo Financial Time, e a de música incorporando ao fascículo obras gravadas em tape ou cd.

Buenos Aires, 18 de fevereiro 1995

A oportunidade da minha vinda a Buenos Aires animou-me a tratar de leituras longamente proteladas. Por isso lembrei-me de agregar à minha bagagem um livrinho de Emir Rodriguez Monegal que leio de uma assentada no quarto do hotel. Tanto apreciei a leitura, e tanto com ela aprendi, que devo principiar esta nota frisando que o termo "livrinho" aplica-se às proporções físicas da obra, não à sua qualidade. Pois me refiro aqui ao livrinho em formato de bolso Mário de Andrade/Borges, compacto mas denso ensaio de literatura comparada no qual Monegal justifica o tom elogioso com que o trata Vargas Llosa no prólogo que assina para a edição brasileira de La Ciudad Letrada, de Angel Rama. Comparando os dois críticos uruguaios, Vargas Llosa realça com franca admiração o prazer que lhe inspiravam a inteligência crítica e a destreza polêmica de ambos: "Angel, mais sociológico e polêmico; Emir, mais literário e acadêmico; aquele mais à esquerda, este mais à direita. As diferenças entre os dois uruguaios foram providenciais e originaram as disputas intelectuais mais estimulantes que já pude assistir, confrontos em que, graças à destreza dialética, à elegância e à cultura dos adversários, não havia nunca um derrotado, e saíam ganhando, sempre, o público e a literatura".

Embora em Mário de Andrade/Borges prevaleça a crítica orientada para o ensaio de literatura comparada com oportunas achegas informativas, justificadas pela distância mútua que tem marcado as ralas relações culturais entretidas por Brasil e Argentina, não deixa Monegal de sugerir ao leitor algo do seu vigor polêmico quando de passagem desacredita o tom desonesto com que Guillermo de Torre traçou o movimento histórico das vanguardas reivindicando para si uma posição de relevo improcedente. Mas o cerne do livrinho consiste, como já se anuncia no título, no rico parelelo por ele traçado entre Mário e Borges. Acentuando as imagens divergentes que de ambos guardam respectivamente brasileiros e argentinos, frisa Monegal como à imagem do Mário nacionalista, aderente a uma estética empenhada tanto apreciada pela esquerda, se opõe a de um Borges cosmopolita execrado pela esquerda do seu país. E conclui assinalando os dois modos de errada apreciação que objetiva contornar ao longo da sua compacta investigação: "A esquerda perde frente a Mário toda a capacidade de análise; frente a Borges, todo exercício de leitura.Um venerado por cada migalha que escreveu; outro, condenado em ausência. Mário é um santo leigo; Borges, um trânsfuga". (p. 10)
Demonstrando que as imagens acima são deformadoras, esclarece Monegal como nos anos vinte profundas afinidades aproximavam a atuação intelectual dos dois escritores que entanto se ignoravam. Se ambos a princípio seguiram a onda cosmopolita traçada pelos movimentos da vanguarda européia de que se aproximaram, mais tarde Mário abraça o nacionalismo assim como Borges transita do Ultraísmo para o Criollismo. Assinala, por outro lado, como Borges foi nesse tempo até mais radical que Mário na valorização da cultura popular. A partir daí, cuida Monegal de acompanhar, em tom sempre oportuno e esclarecedor, dentro dos objetivos comparativos que se propõe, um conjunto de artigos sobre literatura argentina publicados por Mário de Andrade nas páginas do Diário Nacional. Destacando-os como sendo "O documento talvez mais importante para a exata reconstrução do aspecto das relações entre o Modernismo brasileiro e o ultraísmo argentino" (pp. 27-8), corretamente agrega-os ao volume como apêndice documental.

Um mal-estar quase irritante, dado o que implica de privação de vida fruída nas ruas, prende-me à cama do hotel durante o dia. Valho-me desse estado indesejável para ler uma larga fração do último ou talvez último livro de Octavio Paz: Itinerario. Combinando às qualidades do poeta e crítico extraordinários o tom especulativo do pensador liberto das amarras esquerdistas que têm encurtado as asas tanto intelectuais quanto éticas de algumas das melhores cabeças latino-americanas, esboça nessas páginas uma autobiografia intelectual admirável na forma artística da composição e igualmente nas questões de fundo que lhe marcaram a vida.
Distribuída a matéria do livro em duas partes, na primeira, a pretexto de explicar por que escrevera El Laberinto de la Soledad, retoma as indagações e análises mais candentes contidas na sua talvez obra-prima explicitamente articulando-as às experiências que ressalta como cruciais na sua trajetória humana e intelectual. Aclarando desse modo os elos mais íntimos que vinculam a obra ao autor, sobressai agora com maior nitidez o caráter livremente autobiográfico de El Laberinto de la Soledad. A segunda parte constitui antes uma variação do processo compositivo do que do conteúdo da obra, já que nela recorrem as questões estéticas, políticas e filosóficas abordadas na primeira. Respondendo no tom ensaístico que distingue sua produção crítica e especulativa a questionários propostos por Juan Cruz, sob o título geral "Respuestas nuevas a preguntas viejas", Sergio Marras, "América en plural y en singular", e finalmente Julio Scherer, "Tela de juicios", procede Octavio Paz a um rico registro ao mesmo tempo rememorativo e crítico dos fatos, problemas e impasses que marcaram sua geração.
Intelectual de vivência abrangente e cosmopolita, seu testemunho é um misto de reflexão e criação participativa, de obra pensada no espírito mas fecundada na e pela experiência impressa na carne. É assim curioso criticarem-no, como em certa passagem faz um dos seus entrevistadores, por formular uma visão puramente racionalista - liberal-racionalista, diria melhor - da realidade sócio-cultural latino-americana em suas conexões mais profundas com a história universal.

A passagem de uma morena de aparência andrógina em plena 9 de Julio acorda em mim a memória de Puck. Dei-lhe esse nome, carinhosamente usado na nossa curta mas intensa intimidade devido ao amor que me confessou alimentar pelo personagem Robin Goodfellow, the puck, o duende de A Midsummer Night's Dream. Mais que isso, logo em seguida ao batismo literário compus dois poemas para ela, um dos quais intitulado Puck. Tudo começou numa festa, de modo imprevisto e intenso, também fugaz. De lá saímos para rodar de carro dentro da madrugada de Recife, raro momento mágico em que me senti reconciliado com a cidade. Ouvíamos uma das minhas fitas quando me pediu para ouvirmos uma das que conduzia na bolsa. Como traduzir minha encantada surpresa ao constatar que a fita de que falava principiava com Años de Soledad, de Piazzolla, interpretada por ele e Gerry Mulligan? E eu que tanto amo esta música me vi imprevistamente ouvindo-a dentro da madrugada recifense graças à mágica aparição de Puck. Lembro-me ainda de que rodamos e rodamos dentro da noite ouvindo música. Em Salgadinho, entre Olinda e Recife, estacionei no alto do viaduto e ali ficamos suspensos dentro da ar deserto da noite, a brisa marítima soprando no fundo da solidão escura. Onde andará Puck?

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Viagem a Buenos Aires



En aquel tiempo, buscaba los atardeceres, los
arrabales y la desdicha; ahora, las mañanas, el centro
y la serenidad. - Jorge Luis Borges.

Embora raramente converse com passageiros, ainda quando deles proceda a iniciativa da apresentação, desta feita baixei a guarda e dirigi-me à senhora loura e alta sentada a meu lado. Como em Guarulhos involuntariamente ouvira parte do que falava para uma outra mulher, e ouvira o bastante para saber que vivera muitos anos em Buenos Aires, decidi valer-me dela para melhor orientar-me no mundo portenho que absolutamente desconheço na sua dimensão prática e vivida. Muito amável e solidária, prontamente se dispôs a ajudar-me no que pudesse. Notando que era uma mulher inteligente e muito experiente, logo passei das informações de ordem prática para assuntos mais gerais e até pessoais. Conversamos assim à vontade e proveitosamente durante todo o tempo em que ficamos no aeroporto de Buenos Aires e também durante todo o trajeto no ônibus especial até a Avenida Santa Fé. Fiquei sabendo, entre outras coisas, que se chama Karin e é alemã. Veio para Buenos Aires com os pais logo depois da Segunda Guerra. Profissionalmente bem sucedida como tradutora e bem casada, pelo menos em termos materiais, em 1975 emigrou para São Paulo com a família devido ao estado de terror instalado durante a ditadura militar. Pensei de início que sua insegurança derivava da circunstância de em alguma instância haver feito oposição ao regime. Afiançou-me entretanto que saíra simplesmente porque o terror, imposto pelo Estado, quanto pelos radicais que a ele se opunham, ramificou-se pelo conjunto da sociedade pondo em risco virtual a segurança de qualquer indivíduo argentino.

Embora se abale ainda com os terríveis padrões de desigualdade social dominantes no Brasil, padrões cuja visibilidade prescinde de qualquer iniciação sociológica, Karin reitera o que já ouvi de tantos estrangeiros (se é que posso ainda tratá-la assim): o louvor à nossa extraordinária plasticidade étnico-cultural. Se de um lado rememora ainda o choque que lhe causou o atraso social observável no Rio de Janeiro do início dos anos sessenta, quando então visitou o Brasil pela primeira vez, de outro impressionou-a, como ainda a impressiona, o modo livre como culturalmente se interpenetram os contingentes formadores da totalidade cultural brasileira. Como julgo ser este um assunto de enorme importância, espero cedo retomá-lo no corpo destas anotações. Agora porém, afinal instalado no Hotel Marvella, onde arremato a redação dessas impressões iniciadas em pleno voo entre São Paulo e Buenos Aires, tudo que desejo e no momento preciso é cair na cama e dormir como quem morre: sem sonhos, som ou ruído. Pois o dia foi longo e cheio de admiráveis descobertas visto que, totalmente estranho a Buenos Aires, não descansei um minuto desde minha chegada.

Buenos Aires, 16 de fevereiro,1995
Estou simplesmente encantado com a beleza de Buenos Aires. Como Paris é meu modelo de cidade, e o traçado urbano de Buenos Aires muito se assemelha ao dela, é lógico deduzir que desde já passo a incluir a capital argentina entre as mais belas cidades do mundo. Dado seu plano simetricamente harmonioso, longas e formosas avenidas, como a 9 de Julio e a Av. de Mayo, articulando outras avenidas e imensas ruas por sua vez estritamente divididas a intervalos de cem números, somente um idiota consumado se extraviaria flanando através desses esplêndidos espaços. Ao recorte simétrico da cidade acrescentaria a beleza de suas praças. Salvo as majestosas figuras equestres, erguidas em memória de algum general ou militar libertador, é um puro luxo vaguear pela San Martin, por exemplo. Vaguear ou por outra sentar à sombra das árvores dentro da manhã de sol e observar as pessoas que passam, ou ler, como o fiz, El Império de los Sentimientos, de Beatriz Sarlo.

Se de um lado me desagradam as obras públicas representando caudilhos reinando sobre cavalos, o que figuro como sendo o limite do clichê na esfera do imaginário político-cultural, doutro é inegável que este dado encerra extraordinário valor simbólico. Indicia o papel exercido pelos militares na história política da América Latina expondo assim as bases autoritárias sobre as quais se tem desenvolvido. Outro traço simbólico relevante está inscrito nos nomes de certas ruas e títulos que traduzem o status dos heróis celebrados pela nação. Claro que também nós, latinos de fala portuguesa, padecemos desses males. Como esquecer, notadamente depois de 1964, as avenidas, ruas, viadutos, conjuntos residenciais, etc., consagrados à celebração de tiranos militares?

À parte essas e outras desvirtudes da formação histórica latinoamericana, espelhada nos cenários e simbologia dos espaços urbanos, Buenos Aires é, já o disse, um puro luxo de cidade. A ela comparada, São Paulo não passa de um opressivo monstro de concreto. De fato, vejo São Paulo como o exemplo mais calamitoso de urbanização que se possa imaginar. Se no final dos anos setenta lá não suportei viver sequer um ano, estou certo de que o mal não residia apenas em mim, na minha inadaptação individual e irresoluções autodestrutivas de fundo subjetivo. Naquele momento, tanto quanto agora, via e estimava viver São Paulo tão só como um lugar transitório, reino trepidante onde cultuo e cultivo algumas mulheres, reencontro amigos e em certas faixas restritas tomo o melhor banho de civilização possível dentro dos limites brasileiros.
Tenho despendido a maior e talvez melhor parte do meu tempo nas livrarias. Não me surpreenderam a quantidade e variedade delas porque antes já ouvira dizerem que Buenos Aires tinha mais livrarias que todo o nosso imenso e pouco letrado Brasil. Adquiri vários e bons livros. Se não dobrei ou tripliquei a medida, não foi com certeza devido à qualidade da oferta, mas sim ao fato de detestar excesso de bagagem. Ademais, outra coisa que em mim mudou devido à força obscura dos anos vividos e da minha experiência inglesa foi a superação de um desejo compulsivo que me impelia a acumular livros sem maiores critérios de qualidade e portanto de medida.
Algo frustrante observado nas minha peregrinações pelas livrarias é a restritíssima oferta de livros na área de história e crítica literária e cultural. De Angel Rama, por exemplo, que julguei ser escritor de ampla circulação no mercado hispanoamericano, alguém aqui equivalente ao que representa Antonio Candido no contexto brasileiro, dele sequer encontrei um exemplar de La Ciudad Letrada ou Transculturación Narrativa en América Latina. Somente na Fondo de Cultura da Suipacha, onde aliás conversei com um livreiro bem informado, encontrei um único e empoeirado exemplar de Más Allá del Boom - Literatura y Mercado. Trata-se de um conjunto de textos críticos sobre literatura e cultura latinoamericana apresentado em um encontro patrocinado pelo Woodrow Wilson International Centre for Scholars (Smithsonian Institution, Washington). Além de Rama, que assina a introdução e um longo ensaio sobre o boom da literatura hispano-americana, colaboram especialistas prestigiosos como Antonio Candido e Jean Franco. Conheço razoavelmente a obra de Jean Franco porque ela foi a antecessora do meu ex-(des)orientador Gordon Brotherston na University of Essex.
De Beatriz Sarlo encontrei, também com dificuldade, o acima mencionado El Império de los Sentimientos. O que me moveu a interessar-me pela obra dela foi a circunstância de há alguns anos assistir a uma ótima conferência que proferiu no Centre for Latin American Studies da University of London. Dissertando com perspicácia sobre temas de cultura e literatura argentina, declarou ter sido decisivamente influenciada pela obra de Raymond Williams.
Embora não tenha encontrado tempo para ir além da página 42, li já o bastante de El Império de los Sentimientos para afirmar que se trata de uma análise exemplar no âmbito da sociologia da literatura. Estudando a literatura popular argentina, a que também se refere como "narraciones semanales", produzida entre 1917 e 1927, indissociável da expansão de um novo público e novos padrões de consumo cultural provocados pela intensificação do processo urbano de Buenos Aires, Beatriz Sarlo comprova a fecundidade dos instrumentos críticos fornecidos pela sociologia a estudos dessa natureza.

Articulando a pesquisa empírica à crítica cultural, Beatriz Sarlo estabelece observações e descobertas luminosas para uma compreensão mais abrangente das relações entre a literatura de massa e a sociedade argentina das primeiras décadas deste século. Na verdade, algumas decisivas formulações de fundo teórico-conceitual são perfeitamente aplicáveis à análise geral da literatura concebida nos termos que indissociavelmente tende a estabelecer com a cultura de massa. Lendo o que Beatriz Sarlo escreve acerca das "narraciones semanales" circulantes em Buenos Aires entre 1917 e 1927, frequentemente me vi de modo involuntário debruçado sobre problemas dominantes na situação cultural contemporânea. Tais associações involuntárias me parecem sugerir não só a atualidade das questões literárias sociologicamente investigadas pela ensaísta argentina, mas também a constância de situações ou fatores típicos da literatura de massa. Certas características pertinentes à composição do público, artifícios narrativos, posição estético-social do autor, etc., são identificáveis, para fixar-me em alguns exemplos explícitos, tanto na literatura francesa de folhetim do século passado quanto nas narraciones semanales analisadas por Beatriz Sarlo ou ainda nas consumidíssimas telenovelas produzidas pela Rede Globo.

Não há dúvida de que minha mais preciosa aquisição foi Historia del Nacionalismo, de Hans Kohn. Originalmente publicada em inglês em 1944, a obra de Kohn pode hoje ser encarada como um clássico no conjunto da bibliografia referente ao nacionalismo. Anos atrás tive nas mãos um exemplar encontrado em uma livraria no Rio de Janeiro, mas incorri na tolice de deixar que a oportunidade me escapasse. Mais tarde, bem mais consciente da importância da obra, passei a procurá-la em vão. E eis que agora encontro um exemplar impecável, capa dura, da edição espanhola de 1984.

Perco afinal um pouco do controle que sobre mim tenho exercido e me embriago no trajeto entre a 9 de Julio e a Plaza del Congreso. Surpreende-me o preço extorsivo da bebida: enquanto uma garrafa de Brahma, produção brasileira, custa-me 4 dólares, cobram-me 8 em um restaurante por uma garrafa de um vinho qualquer produzido na Argentina. Esquecidos estes golpes extorsivos, de resto assimilados à experiência de qualquer turista, registro aqui alguns fatos e observações que intrigam meu olhar de estrangeiro. Se há tantos bares, cafés e restaurantes, como explicar sua sobrevivência, se do início da tarde até à noite os garçons bocejam de braços cruzados? Por que o centro de Buenos Aires morre tão cedo no sentido figurado da expressão boêmia ou noctívaga? Suponho que grande parte da população esteja gozando férias no interior e sobretudo fora da Argentina. No sul do Brasil, por exemplo.
Enquanto erro embriagado pela Plaza del Congreso, impressiona-me observar às 22h30 essas cenas inusitadas: crianças jogando futebol sobre a grama, velhos repousando sobre os bancos, jovens casais namorando, mulheres solitárias, sons de um violão vibrando entre a luz elétrica e a lua cheia. Parece-me tudo isso tão inusitado que me vem à memória um dos melhores poemas de Drummond: "Lembrança do mundo antigo". Dele retenho na memória o último verso: "Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!"

As cenas acima surpreendidas na Plaza del Congreso somadas a outras, algumas já aqui anotadas, levam-me a considerar uma questão que, talvez mais que qualquer outra, me tem profundamente impressionado no curso desta viagem. Indago-me, em suma, como um país ferido por uma experiência ditatorial incomparavelmente mais devastadora que a nossa, igualmente varrido pela hiperinflação, logrou preservar padrões de civilidade e equilíbrio socioeconômico junto aos quais não passamos de uma taba ululante cindida pelas desigualdades mais brutais. Se em Recife e São Paulo mal consigo dormir em paz, descontado o excesso do meu juízo conscientemente apátrida, em Buenos Aires intriga-me a civilidade que me faculta ler ou comer em paz nas vias centrais da cidade, dormir ouvindo tão só o ruído do ventilador e não ser incomodado sequer pelo garçom que me serve. Confesso que, mais que intrigado, sinto-me perplexo em face dessas situações que aqui tenho vivido.

Pouco sabemos da Argentina no Brasil. O pouco que sabemos, mesmo quando se aplique a indivíduos ciosos de formar opinião para além dos preconceitos e estereótipos, como julgo seja o meu caso, tende precisamente a reforçar as imagens deformadoras que um país em geral nutre acerca de um outro, uma cultura acerca de uma outra geográfica ou historicamente dela distanciada, por vezes próxima. Noutras palavras, a imagem predominante que da Argentina assimilei está diretamente associada à violência militar quanto civil; a um modo de passionalismo mais cruento que o brasileiro; a uma tradição autoritária mais brutal que a nossa. Se entretanto me detenho em traços ordenadores do que chamaria a cultura espontânea e cotidiana de um povo, única imediatamente apreensível e de resto indiciadora das relações macrológicas dominantes em qualquer sociedade, não reluto em afirmar que Buenos Aires é mais democrática e civilizada que qualquer cidade brasileira. E mais democrática não só no que concerne às normas observáveis no cotidiano vivido, mas também na dimensão da democracia econômica. Um exemplo: embora esteja sempre nas ruas, em apenas uma circunstância, quando bebia em um bar na Avenida Cerrito, fui abordado por um mendigo. À parte este, vi apenas um outro, este devidamente "instalado", com cachorro e outros "luxos", numa calçada da Avenida 9 de Julio.

Não me esqueço de que esses instantâneos do cotidiano, colhidos em trânsito pelo olhar do turista que aqui veio apenas por cinco dias, não autorizam muitas das generalizações que venho esboçando no corpo e margens dessas impressões de viagem. Imagino com toda segurança que, para além dos limites centrais da cidade, tropeçaria o viajante com a paisagem de detritos urbanos (e humanos) similar às áreas onde se instalam os homeless ingleses, marginais terceiromundistas da banlieu parisiense ou o inferno dos drogados de Amsterdam. Importa assim frisar que minhas impressões esgotam-se nos limites de uma viagem de cinco dias circunscrita à área central de Buenos Aires. É dentro desses limites que registro o quanto me tem impressionado constatar, em termos de relação contrastiva, como na grande cidade brasileira, sobretudo na nordestina, a miséria está profundamente disseminada.

Buenos Aires, 15 de fevereiro, 1995

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Fotos, as fotos



Fotos, as fotos. São centenas organizadas em álbuns ou acumuladas dentro de pastas. Imagens de ruas, cidades, campos, monumentos sugerindo um mapa de viagens e experiências desmembradas no tempo e no espaço. São antes de tudo imagens de gente que amei e convivi. Também de gente tão transitiva e fugaz quanto a duração do flash congelando a imagem impressa sobre papel.
Uma foto é sempre mais que uma foto. Uma foto fere e comove e bouleversa não pelo que visualmente expõe, mas pela cadeia de vivência que subtrai e desata na memória involuntária quando esta lhe sofre os estímulos pulsantes no momento ou gesto miraculosamente gravados. A foto é a madeleine proustiana no cerne da visualidade infinitamente reprodutível.

Por exemplo assim: uma mulher alemã é surpreendida no momento em que remove uma luva da mão na minha cozinha. É linda e ri quase de perfil contra a janela aberta para a solidão noturna. Sobre o chão uma sacola na qual recolhera os objetos que lhe presenteara. Era minha última noite no meu apartamento da Mersea Road, Colchester. Na manhã seguinte me mudaria para o apartamento de Isabel, em Londres, onde morei e fui feliz, como talvez nunca fui feliz, até o dia em que retornei ao Brasil. A mulher é Anita. Rever sua foto é como restaurar na linha do presente nossos intraduzíveis momentos de beleza e comunhão afetiva. Um sopro, não sei se de melancolia ou saudade, move-me a interpelar o silêncio que nada me responde: onde andará Anita? Onde sua doçura e limpidez e generosa humanidade?
Por exemplo assim: a casa da Roman Road que frequentei durante uns dois anos. Nela morou Renato, meu amigo paulista ausente de todas essas fotos, e Paulo Branco, meu amigo de Brasília. Frequentá-la foi também um outro modo de frequentar outros moradores, todos estudantes da Universidade de Essex, e sobretudo pessoas de todas as nacionalidades e procedências que acorriam a suas festas e reuniões sociais. Isso explica a presença do norueguês John Skâtun e do chileno Claudio Andia bebendo cerveja na cozinha. Certa vez gravei uma fita com música brasileira, com ênfase sobre Tom Jobim e a bossa nova, e dei-a de presente a John. Como sobrara fita no lado b, gravei minha própria voz cantando Dreamer (Vivo sonhando) e me acompanhando ao violão. Quando me identifiquei, reagiu surpreso e me disse supor que se tratasse de um cantor e violonista profissional. Desmenti-o com minha melhor falsa modéstia.

Agora uma foto externa e noturna no quintal da mesma casa em Roman Road. Brian e Kate contra o fundo impenetrável da noite fechada sobre o Castle Park. Kate ri enquanto Brian se esforça. Kate foi meu grande e frustrado amor inglês. Durante uns dois anos ocupamos uma sala comum no Departamento de Literatura da Universidade de Essex. Como ela trabalhava numa tese sobre o teatro de Tennessee Williams, foi este o ponto de partida para uma longa e sensível e luminosa amizade antes de tudo literária. A ela incorporamos o teatro e a literatura americana e antes de tudo a literatura e o teatro inglês. Chegamos a ir juntos a Londres exclusivamente para ver After the Fall, de Arthur Miller, no National Theatre. Freqüentávamos ainda o teatro de Colchester e o teatro da universidade.

Um dia, passados já muitos meses de convívio e afetuosa amizade, não resisti à tentação de lhe confessar meu amor arduamente dissimulado por força da sua continência inglesa e da minha timidez. Na verdade, o episódio ocorreu pouco depois da foto de que me ocupo. Como morava no lado oposto do Castle Park – no Dutch Quarter, onde também vivi em três diferentes endereços -, acompanhei-a até sua casa. Animado pelo vinho, pela conversa sempre afetuosa e a beleza da noite deserta, disse-lhe assim entre esperançoso e apertado: Kate, I love you. Ela se voltou para mim, não sei se contrariada ou perplexa, e retrucou: Fernando, how can you say that? Love is a very serious matter. Nada mais disse nem me encorajei a argumentar.

Outra foto da Roman Road. No quarto de Phenia Stephanie, minha amiga grega. Com o chinês Chen, o africano Lau-Au, Paulo Branco e Phenia. Paulo e eu estamos fantasiados com coroas reais. Uso de acréscimo um leque vermelho entreaberto. Numa outra foto, dentro do mesmo cenário, representamos Chen e eu: enquanto faço pose de monarca, ele me abana servilmente com o leque.

Agora o cenário é a casa de Suzy e Maggie em Wivenhoe Park. Suzy linda, fazendo pose, olha a câmera de baixo para cima. Claire, ao fundo, também mira a câmera sorvendo uma tragada de cigarro. Na mesma casa, porém noutro cenário, fixo a imagem de Suzy e Leonor dançando. Leonor, minha amiga espanhola residente em Londres, era a dona da casa de Rebow St., Colchester, onde morei durante mais de um ano.

Neve, a neve. Com Justin Spencer, um dos meus melhores e mais constantes amigos ingleses. Descreve com a mão esquerda um gesto engraçado sobre a minha cabeça enquanto sorrio embrulhado em roupas de frio e cachecol. Flocos de neve, caindo do céu, imprimem à foto uma composição estranha. É noite e tudo é noite em Boxford, cenário da foto.

Os flocos ressurgem mais brancos e nítidos na foto em que estou de costas contra o campus deserto. Minhas luvas pretas, minha calça preta e uma bem dissimulada inquietação diante do frio e do isolamento que vêm com a neve borrando todo o fundo da foto. É neve e tudo é neve.

Neve no Square Four da universidade. Estou encolhido no centro da foto. No mesmo plano, uma mulher de preto caminha de costas. Algumas pessoas, ao fundo, circulam no Square já recoberto de neve. A piscina, no centro do Square, também recoberta de neve. Visão parcial das vidraças do Top Bar, onde bebia cerveja e jogava pool com meus amigos gregos e mexicanos.

Estou agora literalmente afundado na neve que chega quase aos meus joelhos. Meu chapéu inglês, presente de Paulo Branco, um casaco mais pesado e quente. O fotógrafo, lembro-me bem, foi Richard Waller, meu amigo residente do Dutch Quarter. Ao fundo, a fachada sombria do castelo romano que dá nome ao Castle Park. Relíquia inglesa do tempo em que Roma dominava o mundo. O mundo romano, bem entendido.

Rebow Street e alguns amigos que nela circulavam. Primeiro eu próprio lendo solitário sobre a poltrona vermelha. O livro, recém adquirido, é identificável pela foto de Freud na capa. Trata-se da aclamada biografia escrita por Peter Gay. Lia ou fingia ler. Quem sabe o que vai entre a pose ostensiva e o flash congelando o gesto ou atitude espontânea?

Agora os amigos. Richard Waller, que sempre me visitava na Rebow Street depois que deixei de ser seu vizinho no Dutch Quarter. Era um dos poucos ingleses expansivos e espontaneamente sociáveis que conheci. Tanto é verdade que partiu dele o primeiro movimento de aproximação e amizade. Bebíamos chá nas nossas casas e falávamos da África, onde sua irmã se engajara em trabalhos de missionária, ou coisa parecida, bem ao estilo da tradição colonialista inglesa. Falávamos sobretudo de religião e educação. Richard era um religioso dedicado. Aliás, quase todos os religiosos ingleses que conheci eram religiosos de verdade. O oposto, por conseguinte, do nosso catolicismo de conveniência ou fachada, um catolicismo inteiramente dissociado das nossas verdadeiras práticas de vida.

Com Nick e Phenia, que moraram comigo durante umas três semanas. A foto antes da desavença que definitivamente nos separou. Nick, pianista e compositor, está sentado entre mim e Phenia no sofá vermelho onde muito nos divertimos e cantamos. Guardo de Phenia uma foto ainda mais bela. É uma foto em preto e branco feita por um profissional grego, também estudante da Universidade de Essex.

No mesmo ambiente, porém com nítida variação de ângulo, Phenia, Paulo Branco e Carol. Mesclando sangue inglês e espanhol, Carol Hernandez era nossa linda amiga, musa de Paulo e minha que insensatamente namorava um bestalhão inglês chamado Simon. Como vivera alguns anos em Portugal, Simon tinha uma peculiaridade divertida e inesquecível: falava português com sotaque idem. Era um misto de estranheza e graça.
Um dia fui visitar Carol no apartamento em que morava na universidade. Ela começou a passar mal e a suar frio sozinha comigo no quarto fechado. Tocado por seu estado de perturbação de fundo inequivocamente sexual, sugeri que passássemos para a cozinha de uso comum aos outros estudantes. Seguiu-me com uma mug de chá fumegante na mão e prontamente se recompôs. Como sou às vezes estupidamente delicado com as mulheres.

Alícia. A espanhola que era de Múrcia. Nunca ouvira falar de Múrcia. Indicou-me sua cidade num mapa. Toco violão a seu lado. Ouve-me concentrada, direi mesmo meditativa. Novamente minha delicadeza. Abriguei-a no meu apartamento quando rompeu com o namorado inglês, um dos poucos ingleses ostensivamente ciumentos que encontrei na vida. Dei-lhe minha cama de casal, onde afundou solitária encolhida dentro do frio que às vezes feria minhas paredes desprovidas de central heating, e fui dormir na sala. Fiquei assim longo tempo dividido entre a hospitalidade civilizada e inofensiva e o desejo de ir para a cama com ela.

Estou sozinho em muitas fotos tanto da Rebow Street quanto de Mersea Road, meu último endereço em Colchester. Confesso gostar muito dessas fotos. Aliás, não apenas delas, mas da maioria das minhas fotos em cenário europeu. Acho isso muito curioso, senão mesmo intrigante, porque nunca antes demonstrara maior interesse em ser fotografado. Talvez porque não me ache um homem bonito, ou fotogênico. Tanto isso é verdadeiro que possuí apenas uma máquina fotográfica na minha vida. Somente depois, cerca de dois anos depois de viver na Inglaterra é que comprei uma câmera de boa qualidade. A que usei aqui no Brasil, quase que restrita ao tempo em que estive ligado a Cilene, fotografou mais paisagem e “natureza morta” do que gente. Muito pouco eu. Pois findei na Europa gostando de ser fotografado. Por isso acumulei tantas imagens em quatro anos de viagens, festas e reuniões sociais.

As fotos minhas que mais amo são as de Paris. Paris é uma cidade tão bela que qualquer sujeito feio acaba realçado pela beleza dos seus cenários. Isso talvez explique minha beleza fixada nessas fotos, beleza que sei nem de longe corresponder à verdadeira composição física do modelo. Fotografado às margens do Sena, diante do Arco do Triunfo, diante da Torre Eiffel, em Montmartre, além de múltiplos ângulos fixando no plano de fundo a Catedral de Notre Dame, sou eu um outro infelizmente não-eu, um Fernando ficcional transfigurado pela luz e a paisagem de Paris.

Se entretanto penso não só na beleza da cidade, mas também nas pessoas com as quais a compartilho e poso para fotos, não hesitaria em dizer que a série mais preciosa para a minha memória de turista ocasional é a de Roma. Pois foi em Roma, num belo domingo romano, que conheci por mero e feliz acaso a mais bela brasileira com quem cruzei em terras estrangeiras. Cristiane viajava com Cristina, que a seu lado compunha um quadro físico ironicamente contrastivo. À parte a semelhança dos nomes, no mais uma constituía o cabal desmentido da outra. Cristiane, a musa que aqui cultuo, era uma morena baiana alta e doce irradiando um sorriso envolvente. Cristina, pobrezinha, era uma curitibana gorda, baixa e castigada por um certo ar resignado de quem tem consciência de não estar aqui para seduzir e virar a cabeça dos homens. A natureza é cruel, talvez ainda mais cruel que a própria sociedade humana que desequilibradamente construímos. Há duas fotos de Cristiane que amo em particular. Por isso integram a seleção de fotos emolduradas que enfeitam as paredes do meu apartamento. Nesta seleção figuram quase todas as pessoas que dentro e fora do Brasil vivi e amei: Cilene, Isabel, Clara, Camila, Cristiane, Raíssa, Suzy, Justin e Gisela, Anita, Paulo Branco, Alex e Iarinha, Lisa, Angélica, Nice e Andrew, Antonella, Kate. O passado é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!

Fotos, as fotos. Meu amigo Sean ri com ar abstrato ou fatigado enquanto me abraça sentado no sofá da Mersea Road. Sean era um marxista de filiação trotskista. Militante convicto, encontrava-o todos os sábados no centro de Colchester fazendo campanha agressiva contra o governo de Margaret Thatcher e vendendo jornais radicais nas ruas mais movimentadas. Por amizade, também por interesse de fundo sociológico, viajei com ele e Suzy para participar do congresso anual marxista promovido pelos trotskistas ingleses na Universidade de Londres.
Fotos de Isabel. Uma, a que tenho diante dos olhos, evoca Mersea Road, meus últimos dias em Mersea Road intensamente vividos a seu lado. Noutra dançamos sorridentes, vagando numa onda de prazer antecipatório, como se a dança e o riso sem reservas anunciassem toda a imprevisível felicidade que usufruiríamos na dobra da primeira esquina. Foi a dança da primeira noite, quando nos conhecemos em Londres e celebramos o aniversário da carioca Olga Becker. Estávamos a um passo de tudo, a um passo do que já não sonhava, e todavia nada pressentíamos. A dança e o riso premonitórios são decerto invenção tardia de quem escreve mirando as fotos do passado irreversível.

Fotos, as fotos. Margaret, mãe de Peter, acolhendo-me em Poole e me guiando através dos cenários de Dorset. Soubera, através de Peter, do meu amor pela obra de Thomas Hardy, que lera traduzido para o português aí por volta dos meus vinte anos. Pois, embora não me conhecesse, telefonou-me do outro lado da Inglaterra convidando-me para visitá-la e para participar das celebrações que assinalaram o sesquicentenário do nascimento de Hardy.

Foi comovente viajar, guiado por ela e Jack, pai de Peter, através da paisagem rural de Dorset que antes eu procurara imaginariamente visualizar lendo Jude The Obscure, Tess of the D´Urbervilles, The Mayor of Casterbridge, Far from the Madding Crowd. A leitura dessas vidas malogradas, sobretudo as de Jude, Sue e Tess - seres tão plenos do possível, tantas as possibilidades do futuro iluminado, e no entanto fadados à ruína na luta contra as restrições opressivas do ambiente - marcou na juventude minha própria construção identitária para além do que eu poderia conscientemente determinar.
Na foto que tenho diante de mim estamos Margaret e eu contra o fundo do cenário no qual se ergue a cottage onde Thomas Hardy nasceu. Margaret está protegida por uma capa vermelha enquanto porto um impermeável azul e uma sombrinha vermelha, ambos por ela emprestados. Era um fim de manhã de chuva, o que explica o uso da sombrinha e dos impermeáveis. Chuva inglesa, fina e quase invisível, mas insistente e importuna. A imagem não alcança sequer sugeri-la no momento em que Jack aciona o dispositivo da câmera.

Outro tempo e cenário. Cruzo o Mar do Norte no ferry boat. Muitas vezes o fiz em diferentes horários e condições climáticas. Quase sempre solitário. Gosto dessas fotos que repicam, lá no mais fundo da memória, um intraduzível gosto de viagem e de descoberta. Gosto não somente intraduzível mas também intrigante, talvez mesmo contraditório com o que julgo compor meus traços dominantes de personalidade. Pois sou antes de tudo um sedentário e, não obstante autoeducado para viver sozinho, definitivamente não me acostumei a viajar sozinho. Aprendi até a fazer prazerosamente sexo sozinho, mas nunca aprendi a viajar sozinho. Não obstante, aí estou eu cruzando as águas que separam a Inglaterra do continente. E como gostava disso, como me entretinha observando, dentro da luz do dia ou imerso na treva da noite, o movimento no geral tumultuoso das águas.

E assim viajei quase sempre solitário através de terras inglesas e européias. As fotos documentam esse percurso, retêm sob o silêncio instantâneo da imagem o vinco da memória na qual se depositam os passos, as visões e imprevistos da viagem. De Dover a Calais. De Calais a Bruges. De Bruges a Amsterdam. De Amsterdam a Ghent e Antuérpia. Ou de Bruges a Bruxelas. Outros roteiros: de Calais a Paris. De Paris a Malesherbe, onde viveu meu amigo Flávio Brayner e onde me embriaguei numa festa promovida por seus amigos franceses e portugueses. Antes disso fui delicadamente posto para fora da casa de uma antropóloga francesa que me hospedara equivocadamente supondo que nos tornaríamos amantes. Os desencontros e ambiguidades envenenando as relações humanas e minha quase incapacidade de dizer não a uma mulher.

Fotos, as fotos. Antonella na varanda do último andar do Royal Festival Hall. Ao fundo, o Tâmisa, Charing Cross Station e Embankment. O dia retorna em ondas, como se as águas vistas ou pressentidas me devolvessem a magia de um dia londrino com Antonella. Talvez somente a convergência dos sangues ou temperamentos latinos possa explicar esse amor tão fantasioso e divertido encenado dentro da frieza e rigidez dos costumes ingleses. Antonella saía na noite de Colchester comigo e me beijava nos restaurantes. Ou seria eu, já meio bêbado, que a beijava? Já não me lembro de quem partia a iniciativa. Lembro porém com clareza a reprimenda puritana dos poucos ingleses presentes ao restaurante. E nosso humor, nosso prazer de viver incontaminado pelo arrepio puritano dos que invejam quem vive para além da letra dos códigos e convenções sociais. Saíamos do restaurante para a noite deserta e dançávamos liricamente sobre as pedras frias da rua, e desafiávamos a paisagem fantasmal do Castle Park around midnight. It begins to tell `round midnight.

Antonella temia os trovões e relâmpagos assaltando o frio e a solidão da noite. Grudava-se a meu corpo sob os cobertores lutando contra os fantasmas acordados pela fúria dos elementos. Eu ria, ria para apaziguá-la, enquanto lhe acariciava o clitóris e sentia o toque umedecer-lhe a vagina e a penetrava em meio ao ribombar dos trovões e ela gemia fundindo gozo e temor nas trevas de Mersea Road.
Fotos, as fotos. Sou eu de óculos escuros fotografado em Swansea por Alex e Iarinha. As águas e barcos ancorados. Swansea de Dylan Thomas e Anthony Hopkins. As fotos documentam a beleza da cidade onde nasceram esses dois ilustres alcoólatras. Fotografo Alex a Iarinha ao pé da estátua de Dylan Thomas. Precisaram talvez reduzi-lo ao estado de estátua imortal para que se aguentasse de pé.

Seguindo ainda as rotas de Alex e Iarinha, hoje vivendo em algum inssabido endereço de Porto Alegre, movem-se as fotos de Swansea para Brighton. Depois de Colchester e Londres, Brighton foi a cidade mais vivida e amada nos percursos que as fotos documentam. Brighton e seus sebos onde adquiri mais livros, quase todos impecavelmente preservados, do que nos próprios sebos da Charing Cross Road. Brighton e seu mar onde no verão as velhinhas se banhavam com os seios expostos. Brighton e um show de Stéphane Grappelli que me comoveu não apenas com seus inefáveis solos de violino mas também com uma desconcertante exibição pianística. Brighton e seus parques onde jogava tênis com Bernardo e Mariana. Brighton e a Universidade de Sussex.

E a roda do tempo gira movida pelas imagens. Agora no Top Bar da Universidade de Essex. Gonzalo, Sandrine, Claudio e Carmen, entre outros. Esta foto evoca o mais quente e belo verão vivido na Inglaterra. Tão quente que cheguei a mergulhar nas águas de Clacton-on-Sea, às onze da manhã, já meio de pileque.
Carmen, a espanhola de Segovia, foi a musa dessa estação feita de festas noturnas à beira dos lagos da universidade, de farras e música na minha casa e nas towers onde residiam muitos desses amigos hoje dispersos pelo mundo. Sua beleza e acima de tudo o deleite com que nos seduzia prontamente a distinguiram dentre todas as mulheres latinas e inglesas que frequentavam nossas noites. Entre seus cultores e pretendentes alinhavam-se Claudio, John Mcgee, meu lírico e gordo amigo irlandês de Cork, Christopher, Walter, um paulista que fazia o tipo trator num jardim, e eu próprio. Entre tantas camas sedentas, Carmen escolheu a de Walter, o trator que, não bastasse ser trator, queria apenas gozar transitivamente no seu corpo.
A queixa deriva não tanto da minha frustração, contaminada por desejos igualmente voláteis, mas do amor mais belo e dedicado dos meus líricos amigos Claudio e John Mcgee. Feridos ao compararem sua medida de amor àquela que Carmen escolhera, não resistiam nos desabafos do Top Bar à generalização ressentida: as mulheres preferem sempre os brutos. Abandonada por Walter, Carmen nem foi para os braços de Claudio ou John Mcgee nem tampouco para os meus. Saiu da tórrida brutalidade do paulista para a fria sexualidade do inglês Christopher. Foi quando na verdade viveu mais perto de mim. Encontrava-me no Top Bar onde bebíamos chopp e, entre um e outro, insinuava sua insatisfação com o modo inglês de amor praticado por Christopher. Mas falávamos, falávamos, insatisfações recíprocas escorrendo entre um chope e outro, até que Chris aparecia e sentava conosco e falava do clima, dos mesmos e previsíveis assuntos e depois se iam os dois para casa frustrados como eu que me retardava no bar.

Fotos, as fotos. Há muitas outras, algumas que já nem lembro, que poderia interminavelmente traduzir em clave verbal, converter em matéria de memória escrita o que repousa em álbuns e gavetas esquecidas como uma cadeia de imagens da vida ida fruída e dissipada. Se acaso deplorasse o tempo irreversível, o que flui sem margem de regressão ou errata, em vão buscaria nessas fotos a vida perdida ou desperdiçada. Mas isso que escrevo é apenas um exercício de memória, que de resto também pratico valendo-me de outros meios e circunstâncias. Pois que isso é tudo o que resta ou fica: a memória generosa da vida ida com seu inumerável cortejo de sombras humanas e paisagens, com expressões de amor, tantas apenas esboçadas e intransitivas. A vida ida acrescida de erros irreparáveis que hoje em mim acolho como resignado sintoma de minha imperfeição. As fotos são, assim, bem mais que fotos, bem mais que neutras imagens impressas sobre papel ou tela. As fotos retraçam na memória e sentidos as mesmas obscuras veredas que no nosso corpo subjazem às rugas, cicatrizes e sopros de som e luz pontilhando o percurso de uma vida. Mais que puras imagens, as fotos condensam muito do que fui e converto em memória.

Diário - Recife, 20 de Fevereiro de 1998

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