segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Fotos, as fotos



Fotos, as fotos. São centenas organizadas em álbuns ou acumuladas dentro de pastas. Imagens de ruas, cidades, campos, monumentos sugerindo um mapa de viagens e experiências desmembradas no tempo e no espaço. São antes de tudo imagens de gente que amei e convivi. Também de gente tão transitiva e fugaz quanto a duração do flash congelando a imagem impressa sobre papel.
Uma foto é sempre mais que uma foto. Uma foto fere e comove e bouleversa não pelo que visualmente expõe, mas pela cadeia de vivência que subtrai e desata na memória involuntária quando esta lhe sofre os estímulos pulsantes no momento ou gesto miraculosamente gravados. A foto é a madeleine proustiana no cerne da visualidade infinitamente reprodutível.

Por exemplo assim: uma mulher alemã é surpreendida no momento em que remove uma luva da mão na minha cozinha. É linda e ri quase de perfil contra a janela aberta para a solidão noturna. Sobre o chão uma sacola na qual recolhera os objetos que lhe presenteara. Era minha última noite no meu apartamento da Mersea Road, Colchester. Na manhã seguinte me mudaria para o apartamento de Isabel, em Londres, onde morei e fui feliz, como talvez nunca fui feliz, até o dia em que retornei ao Brasil. A mulher é Anita. Rever sua foto é como restaurar na linha do presente nossos intraduzíveis momentos de beleza e comunhão afetiva. Um sopro, não sei se de melancolia ou saudade, move-me a interpelar o silêncio que nada me responde: onde andará Anita? Onde sua doçura e limpidez e generosa humanidade?
Por exemplo assim: a casa da Roman Road que frequentei durante uns dois anos. Nela morou Renato, meu amigo paulista ausente de todas essas fotos, e Paulo Branco, meu amigo de Brasília. Frequentá-la foi também um outro modo de frequentar outros moradores, todos estudantes da Universidade de Essex, e sobretudo pessoas de todas as nacionalidades e procedências que acorriam a suas festas e reuniões sociais. Isso explica a presença do norueguês John Skâtun e do chileno Claudio Andia bebendo cerveja na cozinha. Certa vez gravei uma fita com música brasileira, com ênfase sobre Tom Jobim e a bossa nova, e dei-a de presente a John. Como sobrara fita no lado b, gravei minha própria voz cantando Dreamer (Vivo sonhando) e me acompanhando ao violão. Quando me identifiquei, reagiu surpreso e me disse supor que se tratasse de um cantor e violonista profissional. Desmenti-o com minha melhor falsa modéstia.

Agora uma foto externa e noturna no quintal da mesma casa em Roman Road. Brian e Kate contra o fundo impenetrável da noite fechada sobre o Castle Park. Kate ri enquanto Brian se esforça. Kate foi meu grande e frustrado amor inglês. Durante uns dois anos ocupamos uma sala comum no Departamento de Literatura da Universidade de Essex. Como ela trabalhava numa tese sobre o teatro de Tennessee Williams, foi este o ponto de partida para uma longa e sensível e luminosa amizade antes de tudo literária. A ela incorporamos o teatro e a literatura americana e antes de tudo a literatura e o teatro inglês. Chegamos a ir juntos a Londres exclusivamente para ver After the Fall, de Arthur Miller, no National Theatre. Freqüentávamos ainda o teatro de Colchester e o teatro da universidade.

Um dia, passados já muitos meses de convívio e afetuosa amizade, não resisti à tentação de lhe confessar meu amor arduamente dissimulado por força da sua continência inglesa e da minha timidez. Na verdade, o episódio ocorreu pouco depois da foto de que me ocupo. Como morava no lado oposto do Castle Park – no Dutch Quarter, onde também vivi em três diferentes endereços -, acompanhei-a até sua casa. Animado pelo vinho, pela conversa sempre afetuosa e a beleza da noite deserta, disse-lhe assim entre esperançoso e apertado: Kate, I love you. Ela se voltou para mim, não sei se contrariada ou perplexa, e retrucou: Fernando, how can you say that? Love is a very serious matter. Nada mais disse nem me encorajei a argumentar.

Outra foto da Roman Road. No quarto de Phenia Stephanie, minha amiga grega. Com o chinês Chen, o africano Lau-Au, Paulo Branco e Phenia. Paulo e eu estamos fantasiados com coroas reais. Uso de acréscimo um leque vermelho entreaberto. Numa outra foto, dentro do mesmo cenário, representamos Chen e eu: enquanto faço pose de monarca, ele me abana servilmente com o leque.

Agora o cenário é a casa de Suzy e Maggie em Wivenhoe Park. Suzy linda, fazendo pose, olha a câmera de baixo para cima. Claire, ao fundo, também mira a câmera sorvendo uma tragada de cigarro. Na mesma casa, porém noutro cenário, fixo a imagem de Suzy e Leonor dançando. Leonor, minha amiga espanhola residente em Londres, era a dona da casa de Rebow St., Colchester, onde morei durante mais de um ano.

Neve, a neve. Com Justin Spencer, um dos meus melhores e mais constantes amigos ingleses. Descreve com a mão esquerda um gesto engraçado sobre a minha cabeça enquanto sorrio embrulhado em roupas de frio e cachecol. Flocos de neve, caindo do céu, imprimem à foto uma composição estranha. É noite e tudo é noite em Boxford, cenário da foto.

Os flocos ressurgem mais brancos e nítidos na foto em que estou de costas contra o campus deserto. Minhas luvas pretas, minha calça preta e uma bem dissimulada inquietação diante do frio e do isolamento que vêm com a neve borrando todo o fundo da foto. É neve e tudo é neve.

Neve no Square Four da universidade. Estou encolhido no centro da foto. No mesmo plano, uma mulher de preto caminha de costas. Algumas pessoas, ao fundo, circulam no Square já recoberto de neve. A piscina, no centro do Square, também recoberta de neve. Visão parcial das vidraças do Top Bar, onde bebia cerveja e jogava pool com meus amigos gregos e mexicanos.

Estou agora literalmente afundado na neve que chega quase aos meus joelhos. Meu chapéu inglês, presente de Paulo Branco, um casaco mais pesado e quente. O fotógrafo, lembro-me bem, foi Richard Waller, meu amigo residente do Dutch Quarter. Ao fundo, a fachada sombria do castelo romano que dá nome ao Castle Park. Relíquia inglesa do tempo em que Roma dominava o mundo. O mundo romano, bem entendido.

Rebow Street e alguns amigos que nela circulavam. Primeiro eu próprio lendo solitário sobre a poltrona vermelha. O livro, recém adquirido, é identificável pela foto de Freud na capa. Trata-se da aclamada biografia escrita por Peter Gay. Lia ou fingia ler. Quem sabe o que vai entre a pose ostensiva e o flash congelando o gesto ou atitude espontânea?

Agora os amigos. Richard Waller, que sempre me visitava na Rebow Street depois que deixei de ser seu vizinho no Dutch Quarter. Era um dos poucos ingleses expansivos e espontaneamente sociáveis que conheci. Tanto é verdade que partiu dele o primeiro movimento de aproximação e amizade. Bebíamos chá nas nossas casas e falávamos da África, onde sua irmã se engajara em trabalhos de missionária, ou coisa parecida, bem ao estilo da tradição colonialista inglesa. Falávamos sobretudo de religião e educação. Richard era um religioso dedicado. Aliás, quase todos os religiosos ingleses que conheci eram religiosos de verdade. O oposto, por conseguinte, do nosso catolicismo de conveniência ou fachada, um catolicismo inteiramente dissociado das nossas verdadeiras práticas de vida.

Com Nick e Phenia, que moraram comigo durante umas três semanas. A foto antes da desavença que definitivamente nos separou. Nick, pianista e compositor, está sentado entre mim e Phenia no sofá vermelho onde muito nos divertimos e cantamos. Guardo de Phenia uma foto ainda mais bela. É uma foto em preto e branco feita por um profissional grego, também estudante da Universidade de Essex.

No mesmo ambiente, porém com nítida variação de ângulo, Phenia, Paulo Branco e Carol. Mesclando sangue inglês e espanhol, Carol Hernandez era nossa linda amiga, musa de Paulo e minha que insensatamente namorava um bestalhão inglês chamado Simon. Como vivera alguns anos em Portugal, Simon tinha uma peculiaridade divertida e inesquecível: falava português com sotaque idem. Era um misto de estranheza e graça.
Um dia fui visitar Carol no apartamento em que morava na universidade. Ela começou a passar mal e a suar frio sozinha comigo no quarto fechado. Tocado por seu estado de perturbação de fundo inequivocamente sexual, sugeri que passássemos para a cozinha de uso comum aos outros estudantes. Seguiu-me com uma mug de chá fumegante na mão e prontamente se recompôs. Como sou às vezes estupidamente delicado com as mulheres.

Alícia. A espanhola que era de Múrcia. Nunca ouvira falar de Múrcia. Indicou-me sua cidade num mapa. Toco violão a seu lado. Ouve-me concentrada, direi mesmo meditativa. Novamente minha delicadeza. Abriguei-a no meu apartamento quando rompeu com o namorado inglês, um dos poucos ingleses ostensivamente ciumentos que encontrei na vida. Dei-lhe minha cama de casal, onde afundou solitária encolhida dentro do frio que às vezes feria minhas paredes desprovidas de central heating, e fui dormir na sala. Fiquei assim longo tempo dividido entre a hospitalidade civilizada e inofensiva e o desejo de ir para a cama com ela.

Estou sozinho em muitas fotos tanto da Rebow Street quanto de Mersea Road, meu último endereço em Colchester. Confesso gostar muito dessas fotos. Aliás, não apenas delas, mas da maioria das minhas fotos em cenário europeu. Acho isso muito curioso, senão mesmo intrigante, porque nunca antes demonstrara maior interesse em ser fotografado. Talvez porque não me ache um homem bonito, ou fotogênico. Tanto isso é verdadeiro que possuí apenas uma máquina fotográfica na minha vida. Somente depois, cerca de dois anos depois de viver na Inglaterra é que comprei uma câmera de boa qualidade. A que usei aqui no Brasil, quase que restrita ao tempo em que estive ligado a Cilene, fotografou mais paisagem e “natureza morta” do que gente. Muito pouco eu. Pois findei na Europa gostando de ser fotografado. Por isso acumulei tantas imagens em quatro anos de viagens, festas e reuniões sociais.

As fotos minhas que mais amo são as de Paris. Paris é uma cidade tão bela que qualquer sujeito feio acaba realçado pela beleza dos seus cenários. Isso talvez explique minha beleza fixada nessas fotos, beleza que sei nem de longe corresponder à verdadeira composição física do modelo. Fotografado às margens do Sena, diante do Arco do Triunfo, diante da Torre Eiffel, em Montmartre, além de múltiplos ângulos fixando no plano de fundo a Catedral de Notre Dame, sou eu um outro infelizmente não-eu, um Fernando ficcional transfigurado pela luz e a paisagem de Paris.

Se entretanto penso não só na beleza da cidade, mas também nas pessoas com as quais a compartilho e poso para fotos, não hesitaria em dizer que a série mais preciosa para a minha memória de turista ocasional é a de Roma. Pois foi em Roma, num belo domingo romano, que conheci por mero e feliz acaso a mais bela brasileira com quem cruzei em terras estrangeiras. Cristiane viajava com Cristina, que a seu lado compunha um quadro físico ironicamente contrastivo. À parte a semelhança dos nomes, no mais uma constituía o cabal desmentido da outra. Cristiane, a musa que aqui cultuo, era uma morena baiana alta e doce irradiando um sorriso envolvente. Cristina, pobrezinha, era uma curitibana gorda, baixa e castigada por um certo ar resignado de quem tem consciência de não estar aqui para seduzir e virar a cabeça dos homens. A natureza é cruel, talvez ainda mais cruel que a própria sociedade humana que desequilibradamente construímos. Há duas fotos de Cristiane que amo em particular. Por isso integram a seleção de fotos emolduradas que enfeitam as paredes do meu apartamento. Nesta seleção figuram quase todas as pessoas que dentro e fora do Brasil vivi e amei: Cilene, Isabel, Clara, Camila, Cristiane, Raíssa, Suzy, Justin e Gisela, Anita, Paulo Branco, Alex e Iarinha, Lisa, Angélica, Nice e Andrew, Antonella, Kate. O passado é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!

Fotos, as fotos. Meu amigo Sean ri com ar abstrato ou fatigado enquanto me abraça sentado no sofá da Mersea Road. Sean era um marxista de filiação trotskista. Militante convicto, encontrava-o todos os sábados no centro de Colchester fazendo campanha agressiva contra o governo de Margaret Thatcher e vendendo jornais radicais nas ruas mais movimentadas. Por amizade, também por interesse de fundo sociológico, viajei com ele e Suzy para participar do congresso anual marxista promovido pelos trotskistas ingleses na Universidade de Londres.
Fotos de Isabel. Uma, a que tenho diante dos olhos, evoca Mersea Road, meus últimos dias em Mersea Road intensamente vividos a seu lado. Noutra dançamos sorridentes, vagando numa onda de prazer antecipatório, como se a dança e o riso sem reservas anunciassem toda a imprevisível felicidade que usufruiríamos na dobra da primeira esquina. Foi a dança da primeira noite, quando nos conhecemos em Londres e celebramos o aniversário da carioca Olga Becker. Estávamos a um passo de tudo, a um passo do que já não sonhava, e todavia nada pressentíamos. A dança e o riso premonitórios são decerto invenção tardia de quem escreve mirando as fotos do passado irreversível.

Fotos, as fotos. Margaret, mãe de Peter, acolhendo-me em Poole e me guiando através dos cenários de Dorset. Soubera, através de Peter, do meu amor pela obra de Thomas Hardy, que lera traduzido para o português aí por volta dos meus vinte anos. Pois, embora não me conhecesse, telefonou-me do outro lado da Inglaterra convidando-me para visitá-la e para participar das celebrações que assinalaram o sesquicentenário do nascimento de Hardy.

Foi comovente viajar, guiado por ela e Jack, pai de Peter, através da paisagem rural de Dorset que antes eu procurara imaginariamente visualizar lendo Jude The Obscure, Tess of the D´Urbervilles, The Mayor of Casterbridge, Far from the Madding Crowd. A leitura dessas vidas malogradas, sobretudo as de Jude, Sue e Tess - seres tão plenos do possível, tantas as possibilidades do futuro iluminado, e no entanto fadados à ruína na luta contra as restrições opressivas do ambiente - marcou na juventude minha própria construção identitária para além do que eu poderia conscientemente determinar.
Na foto que tenho diante de mim estamos Margaret e eu contra o fundo do cenário no qual se ergue a cottage onde Thomas Hardy nasceu. Margaret está protegida por uma capa vermelha enquanto porto um impermeável azul e uma sombrinha vermelha, ambos por ela emprestados. Era um fim de manhã de chuva, o que explica o uso da sombrinha e dos impermeáveis. Chuva inglesa, fina e quase invisível, mas insistente e importuna. A imagem não alcança sequer sugeri-la no momento em que Jack aciona o dispositivo da câmera.

Outro tempo e cenário. Cruzo o Mar do Norte no ferry boat. Muitas vezes o fiz em diferentes horários e condições climáticas. Quase sempre solitário. Gosto dessas fotos que repicam, lá no mais fundo da memória, um intraduzível gosto de viagem e de descoberta. Gosto não somente intraduzível mas também intrigante, talvez mesmo contraditório com o que julgo compor meus traços dominantes de personalidade. Pois sou antes de tudo um sedentário e, não obstante autoeducado para viver sozinho, definitivamente não me acostumei a viajar sozinho. Aprendi até a fazer prazerosamente sexo sozinho, mas nunca aprendi a viajar sozinho. Não obstante, aí estou eu cruzando as águas que separam a Inglaterra do continente. E como gostava disso, como me entretinha observando, dentro da luz do dia ou imerso na treva da noite, o movimento no geral tumultuoso das águas.

E assim viajei quase sempre solitário através de terras inglesas e européias. As fotos documentam esse percurso, retêm sob o silêncio instantâneo da imagem o vinco da memória na qual se depositam os passos, as visões e imprevistos da viagem. De Dover a Calais. De Calais a Bruges. De Bruges a Amsterdam. De Amsterdam a Ghent e Antuérpia. Ou de Bruges a Bruxelas. Outros roteiros: de Calais a Paris. De Paris a Malesherbe, onde viveu meu amigo Flávio Brayner e onde me embriaguei numa festa promovida por seus amigos franceses e portugueses. Antes disso fui delicadamente posto para fora da casa de uma antropóloga francesa que me hospedara equivocadamente supondo que nos tornaríamos amantes. Os desencontros e ambiguidades envenenando as relações humanas e minha quase incapacidade de dizer não a uma mulher.

Fotos, as fotos. Antonella na varanda do último andar do Royal Festival Hall. Ao fundo, o Tâmisa, Charing Cross Station e Embankment. O dia retorna em ondas, como se as águas vistas ou pressentidas me devolvessem a magia de um dia londrino com Antonella. Talvez somente a convergência dos sangues ou temperamentos latinos possa explicar esse amor tão fantasioso e divertido encenado dentro da frieza e rigidez dos costumes ingleses. Antonella saía na noite de Colchester comigo e me beijava nos restaurantes. Ou seria eu, já meio bêbado, que a beijava? Já não me lembro de quem partia a iniciativa. Lembro porém com clareza a reprimenda puritana dos poucos ingleses presentes ao restaurante. E nosso humor, nosso prazer de viver incontaminado pelo arrepio puritano dos que invejam quem vive para além da letra dos códigos e convenções sociais. Saíamos do restaurante para a noite deserta e dançávamos liricamente sobre as pedras frias da rua, e desafiávamos a paisagem fantasmal do Castle Park around midnight. It begins to tell `round midnight.

Antonella temia os trovões e relâmpagos assaltando o frio e a solidão da noite. Grudava-se a meu corpo sob os cobertores lutando contra os fantasmas acordados pela fúria dos elementos. Eu ria, ria para apaziguá-la, enquanto lhe acariciava o clitóris e sentia o toque umedecer-lhe a vagina e a penetrava em meio ao ribombar dos trovões e ela gemia fundindo gozo e temor nas trevas de Mersea Road.
Fotos, as fotos. Sou eu de óculos escuros fotografado em Swansea por Alex e Iarinha. As águas e barcos ancorados. Swansea de Dylan Thomas e Anthony Hopkins. As fotos documentam a beleza da cidade onde nasceram esses dois ilustres alcoólatras. Fotografo Alex a Iarinha ao pé da estátua de Dylan Thomas. Precisaram talvez reduzi-lo ao estado de estátua imortal para que se aguentasse de pé.

Seguindo ainda as rotas de Alex e Iarinha, hoje vivendo em algum inssabido endereço de Porto Alegre, movem-se as fotos de Swansea para Brighton. Depois de Colchester e Londres, Brighton foi a cidade mais vivida e amada nos percursos que as fotos documentam. Brighton e seus sebos onde adquiri mais livros, quase todos impecavelmente preservados, do que nos próprios sebos da Charing Cross Road. Brighton e seu mar onde no verão as velhinhas se banhavam com os seios expostos. Brighton e um show de Stéphane Grappelli que me comoveu não apenas com seus inefáveis solos de violino mas também com uma desconcertante exibição pianística. Brighton e seus parques onde jogava tênis com Bernardo e Mariana. Brighton e a Universidade de Sussex.

E a roda do tempo gira movida pelas imagens. Agora no Top Bar da Universidade de Essex. Gonzalo, Sandrine, Claudio e Carmen, entre outros. Esta foto evoca o mais quente e belo verão vivido na Inglaterra. Tão quente que cheguei a mergulhar nas águas de Clacton-on-Sea, às onze da manhã, já meio de pileque.
Carmen, a espanhola de Segovia, foi a musa dessa estação feita de festas noturnas à beira dos lagos da universidade, de farras e música na minha casa e nas towers onde residiam muitos desses amigos hoje dispersos pelo mundo. Sua beleza e acima de tudo o deleite com que nos seduzia prontamente a distinguiram dentre todas as mulheres latinas e inglesas que frequentavam nossas noites. Entre seus cultores e pretendentes alinhavam-se Claudio, John Mcgee, meu lírico e gordo amigo irlandês de Cork, Christopher, Walter, um paulista que fazia o tipo trator num jardim, e eu próprio. Entre tantas camas sedentas, Carmen escolheu a de Walter, o trator que, não bastasse ser trator, queria apenas gozar transitivamente no seu corpo.
A queixa deriva não tanto da minha frustração, contaminada por desejos igualmente voláteis, mas do amor mais belo e dedicado dos meus líricos amigos Claudio e John Mcgee. Feridos ao compararem sua medida de amor àquela que Carmen escolhera, não resistiam nos desabafos do Top Bar à generalização ressentida: as mulheres preferem sempre os brutos. Abandonada por Walter, Carmen nem foi para os braços de Claudio ou John Mcgee nem tampouco para os meus. Saiu da tórrida brutalidade do paulista para a fria sexualidade do inglês Christopher. Foi quando na verdade viveu mais perto de mim. Encontrava-me no Top Bar onde bebíamos chopp e, entre um e outro, insinuava sua insatisfação com o modo inglês de amor praticado por Christopher. Mas falávamos, falávamos, insatisfações recíprocas escorrendo entre um chope e outro, até que Chris aparecia e sentava conosco e falava do clima, dos mesmos e previsíveis assuntos e depois se iam os dois para casa frustrados como eu que me retardava no bar.

Fotos, as fotos. Há muitas outras, algumas que já nem lembro, que poderia interminavelmente traduzir em clave verbal, converter em matéria de memória escrita o que repousa em álbuns e gavetas esquecidas como uma cadeia de imagens da vida ida fruída e dissipada. Se acaso deplorasse o tempo irreversível, o que flui sem margem de regressão ou errata, em vão buscaria nessas fotos a vida perdida ou desperdiçada. Mas isso que escrevo é apenas um exercício de memória, que de resto também pratico valendo-me de outros meios e circunstâncias. Pois que isso é tudo o que resta ou fica: a memória generosa da vida ida com seu inumerável cortejo de sombras humanas e paisagens, com expressões de amor, tantas apenas esboçadas e intransitivas. A vida ida acrescida de erros irreparáveis que hoje em mim acolho como resignado sintoma de minha imperfeição. As fotos são, assim, bem mais que fotos, bem mais que neutras imagens impressas sobre papel ou tela. As fotos retraçam na memória e sentidos as mesmas obscuras veredas que no nosso corpo subjazem às rugas, cicatrizes e sopros de som e luz pontilhando o percurso de uma vida. Mais que puras imagens, as fotos condensam muito do que fui e converto em memória.

Diário - Recife, 20 de Fevereiro de 1998

Leia também: England, my England

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