quinta-feira, 4 de agosto de 2011
Viagem a Buenos Aires
En aquel tiempo, buscaba los atardeceres, los
arrabales y la desdicha; ahora, las mañanas, el centro
y la serenidad. - Jorge Luis Borges.
Embora raramente converse com passageiros, ainda quando deles proceda a iniciativa da apresentação, desta feita baixei a guarda e dirigi-me à senhora loura e alta sentada a meu lado. Como em Guarulhos involuntariamente ouvira parte do que falava para uma outra mulher, e ouvira o bastante para saber que vivera muitos anos em Buenos Aires, decidi valer-me dela para melhor orientar-me no mundo portenho que absolutamente desconheço na sua dimensão prática e vivida. Muito amável e solidária, prontamente se dispôs a ajudar-me no que pudesse. Notando que era uma mulher inteligente e muito experiente, logo passei das informações de ordem prática para assuntos mais gerais e até pessoais. Conversamos assim à vontade e proveitosamente durante todo o tempo em que ficamos no aeroporto de Buenos Aires e também durante todo o trajeto no ônibus especial até a Avenida Santa Fé. Fiquei sabendo, entre outras coisas, que se chama Karin e é alemã. Veio para Buenos Aires com os pais logo depois da Segunda Guerra. Profissionalmente bem sucedida como tradutora e bem casada, pelo menos em termos materiais, em 1975 emigrou para São Paulo com a família devido ao estado de terror instalado durante a ditadura militar. Pensei de início que sua insegurança derivava da circunstância de em alguma instância haver feito oposição ao regime. Afiançou-me entretanto que saíra simplesmente porque o terror, imposto pelo Estado, quanto pelos radicais que a ele se opunham, ramificou-se pelo conjunto da sociedade pondo em risco virtual a segurança de qualquer indivíduo argentino.
Embora se abale ainda com os terríveis padrões de desigualdade social dominantes no Brasil, padrões cuja visibilidade prescinde de qualquer iniciação sociológica, Karin reitera o que já ouvi de tantos estrangeiros (se é que posso ainda tratá-la assim): o louvor à nossa extraordinária plasticidade étnico-cultural. Se de um lado rememora ainda o choque que lhe causou o atraso social observável no Rio de Janeiro do início dos anos sessenta, quando então visitou o Brasil pela primeira vez, de outro impressionou-a, como ainda a impressiona, o modo livre como culturalmente se interpenetram os contingentes formadores da totalidade cultural brasileira. Como julgo ser este um assunto de enorme importância, espero cedo retomá-lo no corpo destas anotações. Agora porém, afinal instalado no Hotel Marvella, onde arremato a redação dessas impressões iniciadas em pleno voo entre São Paulo e Buenos Aires, tudo que desejo e no momento preciso é cair na cama e dormir como quem morre: sem sonhos, som ou ruído. Pois o dia foi longo e cheio de admiráveis descobertas visto que, totalmente estranho a Buenos Aires, não descansei um minuto desde minha chegada.
Buenos Aires, 16 de fevereiro,1995
Estou simplesmente encantado com a beleza de Buenos Aires. Como Paris é meu modelo de cidade, e o traçado urbano de Buenos Aires muito se assemelha ao dela, é lógico deduzir que desde já passo a incluir a capital argentina entre as mais belas cidades do mundo. Dado seu plano simetricamente harmonioso, longas e formosas avenidas, como a 9 de Julio e a Av. de Mayo, articulando outras avenidas e imensas ruas por sua vez estritamente divididas a intervalos de cem números, somente um idiota consumado se extraviaria flanando através desses esplêndidos espaços. Ao recorte simétrico da cidade acrescentaria a beleza de suas praças. Salvo as majestosas figuras equestres, erguidas em memória de algum general ou militar libertador, é um puro luxo vaguear pela San Martin, por exemplo. Vaguear ou por outra sentar à sombra das árvores dentro da manhã de sol e observar as pessoas que passam, ou ler, como o fiz, El Império de los Sentimientos, de Beatriz Sarlo.
Se de um lado me desagradam as obras públicas representando caudilhos reinando sobre cavalos, o que figuro como sendo o limite do clichê na esfera do imaginário político-cultural, doutro é inegável que este dado encerra extraordinário valor simbólico. Indicia o papel exercido pelos militares na história política da América Latina expondo assim as bases autoritárias sobre as quais se tem desenvolvido. Outro traço simbólico relevante está inscrito nos nomes de certas ruas e títulos que traduzem o status dos heróis celebrados pela nação. Claro que também nós, latinos de fala portuguesa, padecemos desses males. Como esquecer, notadamente depois de 1964, as avenidas, ruas, viadutos, conjuntos residenciais, etc., consagrados à celebração de tiranos militares?
À parte essas e outras desvirtudes da formação histórica latinoamericana, espelhada nos cenários e simbologia dos espaços urbanos, Buenos Aires é, já o disse, um puro luxo de cidade. A ela comparada, São Paulo não passa de um opressivo monstro de concreto. De fato, vejo São Paulo como o exemplo mais calamitoso de urbanização que se possa imaginar. Se no final dos anos setenta lá não suportei viver sequer um ano, estou certo de que o mal não residia apenas em mim, na minha inadaptação individual e irresoluções autodestrutivas de fundo subjetivo. Naquele momento, tanto quanto agora, via e estimava viver São Paulo tão só como um lugar transitório, reino trepidante onde cultuo e cultivo algumas mulheres, reencontro amigos e em certas faixas restritas tomo o melhor banho de civilização possível dentro dos limites brasileiros.
Tenho despendido a maior e talvez melhor parte do meu tempo nas livrarias. Não me surpreenderam a quantidade e variedade delas porque antes já ouvira dizerem que Buenos Aires tinha mais livrarias que todo o nosso imenso e pouco letrado Brasil. Adquiri vários e bons livros. Se não dobrei ou tripliquei a medida, não foi com certeza devido à qualidade da oferta, mas sim ao fato de detestar excesso de bagagem. Ademais, outra coisa que em mim mudou devido à força obscura dos anos vividos e da minha experiência inglesa foi a superação de um desejo compulsivo que me impelia a acumular livros sem maiores critérios de qualidade e portanto de medida.
Algo frustrante observado nas minha peregrinações pelas livrarias é a restritíssima oferta de livros na área de história e crítica literária e cultural. De Angel Rama, por exemplo, que julguei ser escritor de ampla circulação no mercado hispanoamericano, alguém aqui equivalente ao que representa Antonio Candido no contexto brasileiro, dele sequer encontrei um exemplar de La Ciudad Letrada ou Transculturación Narrativa en América Latina. Somente na Fondo de Cultura da Suipacha, onde aliás conversei com um livreiro bem informado, encontrei um único e empoeirado exemplar de Más Allá del Boom - Literatura y Mercado. Trata-se de um conjunto de textos críticos sobre literatura e cultura latinoamericana apresentado em um encontro patrocinado pelo Woodrow Wilson International Centre for Scholars (Smithsonian Institution, Washington). Além de Rama, que assina a introdução e um longo ensaio sobre o boom da literatura hispano-americana, colaboram especialistas prestigiosos como Antonio Candido e Jean Franco. Conheço razoavelmente a obra de Jean Franco porque ela foi a antecessora do meu ex-(des)orientador Gordon Brotherston na University of Essex.
De Beatriz Sarlo encontrei, também com dificuldade, o acima mencionado El Império de los Sentimientos. O que me moveu a interessar-me pela obra dela foi a circunstância de há alguns anos assistir a uma ótima conferência que proferiu no Centre for Latin American Studies da University of London. Dissertando com perspicácia sobre temas de cultura e literatura argentina, declarou ter sido decisivamente influenciada pela obra de Raymond Williams.
Embora não tenha encontrado tempo para ir além da página 42, li já o bastante de El Império de los Sentimientos para afirmar que se trata de uma análise exemplar no âmbito da sociologia da literatura. Estudando a literatura popular argentina, a que também se refere como "narraciones semanales", produzida entre 1917 e 1927, indissociável da expansão de um novo público e novos padrões de consumo cultural provocados pela intensificação do processo urbano de Buenos Aires, Beatriz Sarlo comprova a fecundidade dos instrumentos críticos fornecidos pela sociologia a estudos dessa natureza.
Articulando a pesquisa empírica à crítica cultural, Beatriz Sarlo estabelece observações e descobertas luminosas para uma compreensão mais abrangente das relações entre a literatura de massa e a sociedade argentina das primeiras décadas deste século. Na verdade, algumas decisivas formulações de fundo teórico-conceitual são perfeitamente aplicáveis à análise geral da literatura concebida nos termos que indissociavelmente tende a estabelecer com a cultura de massa. Lendo o que Beatriz Sarlo escreve acerca das "narraciones semanales" circulantes em Buenos Aires entre 1917 e 1927, frequentemente me vi de modo involuntário debruçado sobre problemas dominantes na situação cultural contemporânea. Tais associações involuntárias me parecem sugerir não só a atualidade das questões literárias sociologicamente investigadas pela ensaísta argentina, mas também a constância de situações ou fatores típicos da literatura de massa. Certas características pertinentes à composição do público, artifícios narrativos, posição estético-social do autor, etc., são identificáveis, para fixar-me em alguns exemplos explícitos, tanto na literatura francesa de folhetim do século passado quanto nas narraciones semanales analisadas por Beatriz Sarlo ou ainda nas consumidíssimas telenovelas produzidas pela Rede Globo.
Não há dúvida de que minha mais preciosa aquisição foi Historia del Nacionalismo, de Hans Kohn. Originalmente publicada em inglês em 1944, a obra de Kohn pode hoje ser encarada como um clássico no conjunto da bibliografia referente ao nacionalismo. Anos atrás tive nas mãos um exemplar encontrado em uma livraria no Rio de Janeiro, mas incorri na tolice de deixar que a oportunidade me escapasse. Mais tarde, bem mais consciente da importância da obra, passei a procurá-la em vão. E eis que agora encontro um exemplar impecável, capa dura, da edição espanhola de 1984.
Perco afinal um pouco do controle que sobre mim tenho exercido e me embriago no trajeto entre a 9 de Julio e a Plaza del Congreso. Surpreende-me o preço extorsivo da bebida: enquanto uma garrafa de Brahma, produção brasileira, custa-me 4 dólares, cobram-me 8 em um restaurante por uma garrafa de um vinho qualquer produzido na Argentina. Esquecidos estes golpes extorsivos, de resto assimilados à experiência de qualquer turista, registro aqui alguns fatos e observações que intrigam meu olhar de estrangeiro. Se há tantos bares, cafés e restaurantes, como explicar sua sobrevivência, se do início da tarde até à noite os garçons bocejam de braços cruzados? Por que o centro de Buenos Aires morre tão cedo no sentido figurado da expressão boêmia ou noctívaga? Suponho que grande parte da população esteja gozando férias no interior e sobretudo fora da Argentina. No sul do Brasil, por exemplo.
Enquanto erro embriagado pela Plaza del Congreso, impressiona-me observar às 22h30 essas cenas inusitadas: crianças jogando futebol sobre a grama, velhos repousando sobre os bancos, jovens casais namorando, mulheres solitárias, sons de um violão vibrando entre a luz elétrica e a lua cheia. Parece-me tudo isso tão inusitado que me vem à memória um dos melhores poemas de Drummond: "Lembrança do mundo antigo". Dele retenho na memória o último verso: "Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!"
As cenas acima surpreendidas na Plaza del Congreso somadas a outras, algumas já aqui anotadas, levam-me a considerar uma questão que, talvez mais que qualquer outra, me tem profundamente impressionado no curso desta viagem. Indago-me, em suma, como um país ferido por uma experiência ditatorial incomparavelmente mais devastadora que a nossa, igualmente varrido pela hiperinflação, logrou preservar padrões de civilidade e equilíbrio socioeconômico junto aos quais não passamos de uma taba ululante cindida pelas desigualdades mais brutais. Se em Recife e São Paulo mal consigo dormir em paz, descontado o excesso do meu juízo conscientemente apátrida, em Buenos Aires intriga-me a civilidade que me faculta ler ou comer em paz nas vias centrais da cidade, dormir ouvindo tão só o ruído do ventilador e não ser incomodado sequer pelo garçom que me serve. Confesso que, mais que intrigado, sinto-me perplexo em face dessas situações que aqui tenho vivido.
Pouco sabemos da Argentina no Brasil. O pouco que sabemos, mesmo quando se aplique a indivíduos ciosos de formar opinião para além dos preconceitos e estereótipos, como julgo seja o meu caso, tende precisamente a reforçar as imagens deformadoras que um país em geral nutre acerca de um outro, uma cultura acerca de uma outra geográfica ou historicamente dela distanciada, por vezes próxima. Noutras palavras, a imagem predominante que da Argentina assimilei está diretamente associada à violência militar quanto civil; a um modo de passionalismo mais cruento que o brasileiro; a uma tradição autoritária mais brutal que a nossa. Se entretanto me detenho em traços ordenadores do que chamaria a cultura espontânea e cotidiana de um povo, única imediatamente apreensível e de resto indiciadora das relações macrológicas dominantes em qualquer sociedade, não reluto em afirmar que Buenos Aires é mais democrática e civilizada que qualquer cidade brasileira. E mais democrática não só no que concerne às normas observáveis no cotidiano vivido, mas também na dimensão da democracia econômica. Um exemplo: embora esteja sempre nas ruas, em apenas uma circunstância, quando bebia em um bar na Avenida Cerrito, fui abordado por um mendigo. À parte este, vi apenas um outro, este devidamente "instalado", com cachorro e outros "luxos", numa calçada da Avenida 9 de Julio.
Não me esqueço de que esses instantâneos do cotidiano, colhidos em trânsito pelo olhar do turista que aqui veio apenas por cinco dias, não autorizam muitas das generalizações que venho esboçando no corpo e margens dessas impressões de viagem. Imagino com toda segurança que, para além dos limites centrais da cidade, tropeçaria o viajante com a paisagem de detritos urbanos (e humanos) similar às áreas onde se instalam os homeless ingleses, marginais terceiromundistas da banlieu parisiense ou o inferno dos drogados de Amsterdam. Importa assim frisar que minhas impressões esgotam-se nos limites de uma viagem de cinco dias circunscrita à área central de Buenos Aires. É dentro desses limites que registro o quanto me tem impressionado constatar, em termos de relação contrastiva, como na grande cidade brasileira, sobretudo na nordestina, a miséria está profundamente disseminada.
Buenos Aires, 15 de fevereiro, 1995
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Dear Fernando.
ResponderExcluirA Argentina e Igarapeba são dois dos maiores enigmas da civilização. Por que não deram certo, apesar de Borges e FFmota48?
Abraço
Paulo
São Paulo do Brasil: A Argentina e Igarapeba não deram certo porque deram errado. Melhor dizendo, ao invés de uma Santíssima Dualidade, Borges e Fernando, deveriam ser a Santíssima Trindade: São Paulo, São Borges e Igualapedra.
ResponderExcluirF.