quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Do cinismo



Como é estranha e fascinante a história das palavras. Para os que apreciam termos técnicos, como é estranha e fascinante a etimologia. As palavras e seus sentidos instáveis e até turbulentos - o objeto da etimologia, noutras palavras - dizem muito da inconstância e falibilidade de tudo que é humano. Sendo criação nossa, teriam elas, as palavras, que fatalmente refletir o que temos de melhor e pior, para não fugir ao lugar comum.

Entro agora no meu assunto antes que o leitor já entediado vire a página. Estava eu acompanhando o noticiário relativo ao trem de demissões do Ministério dos Transportes quando me ocorreu lembrar um filósofo de bem remota existência, mas ainda muito oportuno. Refiro-me a Diógenes, o cínico. É este aposto, cínico, o fantasma que move as linhas do parágrafo inicial do meu artigo. O cinismo, palavra hoje revestida de tão má reputação, transportada de uma para outra baixeza, de livre trânsito no Ministério dos Transportes, perdeu por completo suas virtudes originais.

Diógenes foi o grande representante da filosofia cínica, de longeva existência, quando o cinismo significava algo totalmente oposto ao sentido dominante no presente. Ele era cínico porque, desprezando radicalmente as convenções sociais, toda a pompa e futilidade do mundo, decidiu-se a viver como um cão. Daí o termo cínico, que originalmente significa canino, ou de origem canina. Cinismo hoje, sabemos, é algo bem diferente, para não dizer oposto ao sentido que acabo de anotar. A elite política brasileira ilustra o sentido corrente do termo melhor talvez que qualquer outro grupo social. Aliás, como bem observa o historiador Evaldo Cabral de Mello, o Brasil não tem elite, tem clientela. Assim, nossa clientela reparte os bens públicos sob o balcão, ou sob os tapetes dos palácios, embora os mais impudentes e imprudentes, mais confiantes na impunidade, operem à luz do dia.

Voltando a Diógenes, lembro uma anedota que o leitor talvez conheça. Um dia saiu pelas ruas de Atenas com uma lanterna acesa à luz do dia. Intrigados diante do fato, alguns curiosos perguntaram-lhe a razão daquela extravagância, de resto costumeira no comportamento do filósofo. Respondeu simplesmente que procurava um homem honesto. Imagino Diógenes redivivo andando pelas ruas de Brasília não mais com uma lanterna, mas com um refletor ou uma filmadora à procura de um político honesto, ou simplesmente um brasileiro honesto.

Vivendo como um cão, Diógenes com certeza prescindiria de ruas devidamente asfaltadas e estradas transitáveis. Prescindiria ainda mais da filmadora, que todavia lhe enfiei nas mãos para melhor ilustrar a cultura corrente no nosso tempo. Seu alvo era a virtude, ou ausência de virtude dos seres humanos que, à sua diferença, livremente ajustado à sua condição canina, vestiam as vestes enganadoras das convenções para exibir poder e fortuna amealhados mediantes expedientes corruptos, portanto indignos de um cão como ele. Destoando dos cães contemporâneos, todos corrompidos por nossa humanidade consumista e egocêntrica, Diógenes fundamentou sua filosofia na busca da virtude subjetiva indiferente à futilidade do mundo.

No entanto, que dizer de nós? Se acaso somos honestos, o fato é que pouco ou nada nos indignamos em face da desfaçatez com que os cínicos e corruptos da política negociam as fortunas arrancadas da população que paga impostos, isto é, toda a população brasileira. Como há muitos desavisados supondo que quem paga imposto é apenas a fração colhida pela rede dos impostos diretos, talvez seja preciso esclarecer que todos pagamos impostos, pois a maior parte da carga tributária procede dos impostos indiretos, que afetam a totalidade da população.

Seria a ignorância acima indicada explicação suficiente para nossa inércia política, a apatia ou indiferença com que todos os dias ouvimos, lemos e vemos as notícias rotineiras sobre a desonestidade dos políticos, tão previsível e frequente quanto a luz do sol e a água da chuva? Há alguns dias minha ex-namorada enviou-me o link de um artigo publicado em El País sobre a corrupção corrente durante o governo Lula que vazou para o governo de Dilma Roussef. Sendo espanhola, além disso totalmente alheia a certos traços da história e da cultura brasileira, Isabel pareceu-me desorientada diante da nossa inércia. O artigo do El País explicita essa perplexidade compreensível numa sociedade na qual a tolerância diante da corrupção é mínima, ou pelo menos incomparavelmente mais reduzida. O autor do artigo se perguntava, noutras palavras, por que os brasileiros não se indignavam quando agora assistimos perplexos até aos movimentos regeneradores de combate à corrupção e à ditadura em países do Oriente Médio.

Se ele, o jornalista espanhol, não explica nossa apatia política, nossa incapacidade de indignação em face da corrupção endêmica na nossa política, que direi de mim? O leitor curioso poderá conferir no artigo as explicações que esboça. Quanto a mim, brasileiro comum equilibrando-se para não cair nos buracos cavados até nas vias centrais da capital em que moro; desanimado de empreender viagens de carro por não suportar o caos rotineiro das nossas rodovias; há muito descrente de políticos e partidos brasileiros, embora ciente e consciente de que alguns se salvam do atoleiro no qual chafurdam nossos políticos, quanto a mim contento-me em repisar a frase famosa de Tom Jobim: o Brasil não é para principiantes.

Confesso que muito gastei do meu tempo e trabalho visando explicar os enigmas do Brasil. Tendo antes a presunção de chegar a explicações suficientes, muita palavra e saliva consumi aspirando a melhor compreender enigmas do tipo: por que o Brasil piora até quando se desenvolve? Por que um país tão rico mantém em estado de semiescravidão grande parcela do seu povo? Por que não somos sequer capazes de lutar de forma tenaz contra nossas tradições mais retrógadas e revoltantes? Por que a imagem de um país em ruínas se confunde com a imagem de um país que progride? Por que nosso orgulho e nossa resignação ancoram na frase delirantemente nacionalista segundo a qual Deus é brasileiro? Por que Kafka não nasceu no Brasil? Ou melhor: por que não criamos na nossa literatura uma tradição de corte kafkiano? O Brasil que pensei, o Brasil que figurei como possibilidade, esse Brasil nunca existiu nem existirá. O que há é esse no qual os homens desprezam os ideais éticos e as virtudes propostas por Diógenes, no qual a possibilidade de Diógenes foi suprimida e os cães nunca são cínicos como o filósofo grego que preferiu a luz do sol, os dons gratuitos da natureza, à grandeza da sombra de Alexandre Magno.

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