segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Viagem a Buenos Aires II



Buenos Aires, 17 de fevereiro de 1995

Depois de percorrer tantas lojas de música em Buenos Aires, chego à conclusão inquestionável de que a Argentina está musicalmente mais próxima do Brasil do que o Brasil da Argentina. Quem Perde? Sei que a Argentina ganharia ainda mais se em lugar ou para além de Xuxa, Daniela Mercury e os roqueiros ouvisse mais Tom Jobim, Chico Buarque, João Gilberto, Villa-Lobos, Noel Rosa, Pixinguinha, etc. De outro lado, estou certo de que a música argentina não é apenas Piazzolla. Portanto, também nós saímos perdendo nesse comércio de relações musicais.
Mas que dizer de Fito Paez, autor da belíssima canção "Un vestido y un amor", revelada no Brasil por Caetano Veloso no seu último cd? Dizem-me os argentinos com quem conversei que Paez vale por tudo que criou, tudo que ainda ignoro. Vi sem no entanto ouvir os seus cds em várias lojas de Buenos Aires. Embora tanto tenha pensado em adquiri-los, findei sempre por concluir que mais prudente será antes conhecê-los através do argentino José Luís quando retornar a Recife.

Compro livros de Ernesto Sabato. Entre outros, entre la letra y la sangre, livro que reúne uma série de conversas com Carlos Catania. Sabato fala de tudo, ou quase, inclusive da metafísica do tango. Isentando-se de especulações pedantes acaso sugeridas pela metafísica que associa ao tango, assinala as raízes históricas desse gênero de música popular difundido pelo mundo inteiro como o jazz, a bossa nova e o rock. Lembra que, à semelhança do jazz, o tango brotou do mundo da pobreza e da marginalidade social. Música parida nos bordéis, onde migrantes pobres e privados de amor recorriam ao simulacro deste, que é a prostituição, o tango acabou ascendendo a extratos sociais inteiramente dissociados da sua origem. Sabato comprime a nota da tristeza e da solidão nitidamente desenhadas nesse gênero de música tão passional e violento. Enquanto gênero, o tango é a expressão musical mais dilacerante e sensual que conheço. Lendo essas passagens do seu livro, lembrei-me da definição proposta por Astor Piazzolla, o Tom Jobim do tango. Entrevistado por um jornalista inglês que lhe perguntou o que era o tango, replicou em tom curto e grosso, mas absolutamente certeiro: “it´s a vertical rape”.

Porque a condição humana se funda sobre uma cisão de raiz entre desejo e satisfação, entre ser e querer, haverá arte enquanto houver código, imaginação, poeira humana vivente nesse universo de indecifráveis enigmas. Criar arte é um dos modos humanos, ambição sempre falhada, de compensar e transcender nossa cisão de origem.
Um dos mais recentes delírios utópicos nutrido por intelectuais revolucionários consistiu na tola presunção de acreditar que o mundo sem classes produzido pela revolução proletária suprimiria essa ferida aberta entre ser e querer. Tomando como historicamente determinada, e portanto superável pela práxis humana, a cisão que é de natureza metafísica, apostaram nessa tolice que chamei de delírio utópico. Lembro-me de Kostas Axelos, por exemplo, antevendo em escritos dos anos sessenta essa atualização secular do mito do paraíso que é a utopia marxista projetada num tempo sem opressão e sem classes sociais.
Evidentemente, a utopia não foi formulada por Marx e seguidores ilustres, para não mencionar os diluidores mais grosseiros, nos termos em que aqui a interpreto. Seu fundamento imediato ou aparente é, sabemos, a análise materialista objetiva das condições históricas determinantes da opressão e infelicidade humanas. Compreendida entretanto na sua dimensão mais profunda, não passa a utopia de uma teorização sofisticada da nossa cisão de origem. E se aqui a formulo em termos metafísicos, ou meta-históricos, é porque me move a convicção de que esta é sua real natureza.

Quando vivi na Inglaterra, tendo pela primeira vez a oportunidade de conviver com estudantes latino-americanos, dei-me conta do quanto reciprocamente nos ignorávamos. Pois se é verdade que em princípio tantas coisas tendem a nos aproximar, geografia e história marcadas por condições de permanente dependência frente ao colonizador europeu, sucedido pelo americano do norte, imensas barreiras nos têm secularmente dividido. Talvez uma das possíveis explicações para essas barreiras derive do caráter de dependência cultural que de um lado sempre nos vinculou, seja à Europa, seja mais proximamente aos Estados Unidos, enquanto do outro conduziu à profunda ignorância mútua a que me refiro.

No se puede vivir sin amar. Li esta frase desolado, assim em espanhol tal como a transcrevo, em Under the Volcano, de Malcolm Lowry, o atormentado e extraordinário Lowry que lenta e inexoravelmente se destruiu errante nesse mundo tanto carecido de amor. A frase me penetrou um certo dia em Recife, de imediato através do filme adaptado por John Huston, revisitou-me frequentes vezes em momentos de solidão purgada na Inglaterra e afinal em mim se enraizou com o mesmo tom desolado que percorre a carência e a embriaguês literal de Geoffrey Firmin, o protagonista de Under the Volcano. A obra e vida de Lowry, tanto quanto a estragosa e inconfessável privação que me fere, impelem-me a repetir através da Plaza de Mayo: No se puede vivir sin amar.

Quanto mais percorro e descubro Buenos Aires, mais me apaixono por sua beleza, suas formas arquitetônicas de corte nitidamente europeu. Como é bela esta ciudad. "Y quando me pierdo en la ciudad / Vos ya sabés comprender / Es solo un rato no más / Tendría que llorar o salir a matar / Te vi, te vi, te vi / Yo no buscaba a nadie y te vi".

Se de minha parte posso dizer que intensamente amei quatro mulheres na minha vida, com todas tendo compartilhado momentos intraduzíveis de felicidade e prazer, não posso entretanto sustentar que nos limites da experiência repartida logrei alcançar essa ventura expressa em um sutil e inefável acordo entre duas almas apaixonadas. Como Isak Dinesen evocando Denys Finch Hatton (ver o filme Entre dois amores), muitas vezes na Inglaterra adaptei para meu uso pessoal a frase que condensa o grande e belo amor que viveu na África: “I had a love in Africa”. Evocando e em mim sofrendo a dor sem remédio de ter perdido C. no Brasil, no fundo da minha solidão e carência padecidas na Inglaterra assim disse e dizia de mim para mim: I had a love in Brazil. Mas esse amor, não importando quanto grande foi e seja ainda no que dele sobrevive como matéria da memória, este amor apenas excepcionalmente alcançou consumar-se tanto quanto conjugação erótica quanto acordo entre as duas almas amantes. Tal como quase todos que amaram, meus amores foram sobretudo vividos fruídos e gozados na sua dimensão dominantemente erótica. Direi melhor: carnal.
É assim por esse motivo, em alguns consciente, noutros obscuro, que tendemos a invejar, no bom quanto no mau sentido, os amantes venturosos. Terei eu um dia a felicidade de viver esse modo de plenitude? Refletindo em escala pouco mais modesta, viverei eu um dia com uma mulher a completude assentada sobre o domínio das almas, já que é tão rara a conjugação acima descrita? Well, well... Dizem que somente a partir dos 65 anos T. S. Eliot alcançou a felicidade à qual ao longo da vida tanto aspirara. Veio ela com Valerie Fletcher, sua secretária na editora Faber & Faber. Foi aparentemente tão feliz que nada mais de importante conseguiu literariamente criar. Well, well, se Eliot somente começou a ser feliz aos 65, por que não posso eu esperar?

Como acima registrei, quanto mais percorro e descubro Buenos Aires, mais me apaixono pela extraordinária beleza da sua arquitetura de inspiração francamente européia definindo as linhas e volumes de largas avenidas e praças. Tanto me apaixona esse tipo de cidade, sintoma, entre outros, de minha aderência talvez excessiva a valores e padrões estéticos de procedência européia, que involuntariamente penso no Recife. Comparando-a em seguida a Buenos Aires, concluo que sai ela de minha ligeira comparação como se não passasse de um acampamento urbano, uma mera caricatura de cidade compreendida no sentido civilizado do termo. Afinal, não foi por um acaso que civilização derivou de cidade. Assim compreendido, o paralelo entre as duas cidades vai muito além de suas configurações materiais estendendo-se aos modos peculiares de vida cultural que encerram. Algumas diferenças elementares e imediatamente perceptíveis: enquanto aqui as normas reguladoras do trânsito são rigorosamente obedecidas, lá enraizou-se o caos, quando não a prática homicida, resultante da nossa cultura da transgressão; enquanto aqui prevalecem o respeito ao silêncio e à privacidade nas esferas pública e privada, lá o gregarismo ruidoso e predatório se tem imposto de modo progressivo. Por essas e outras é que já me compenetrei de que sou um apátrida exilado nos trópicos onde a permissividade das normas e costumes, quando não a pura e simples anomia, se sobrepõem aos princípios de civilidade segundo os quais tenho procurado ordenar minha vida. Neste sentido, não resta qualquer dúvida de que me senti muito mais em casa na Inglaterra, assim como aqui em Buenos Aires, do que no Sudeste e sobretudo Nordeste brasileiros. A julgar pelo pouco que conheci de Santa Catarina e do Paraná, quando da minha viagem com Daniel e Célia em 1976, penso que por lá também me sentiria vivendo num Brasil mais condizente com meu modo de ser.

Retomo minha jornada através das livrarias de Buenos Aires. Explorei hoje a faixa da Avenida de Mayo que liga a 9 de Julio à Plaza de Mayo, além de também percorrer a Rivadavia, via que corrre imediatamente paralela à Avenida de Mayo. Deparei em livrarias e sebos um tal despropósito de preciosidades bibliográficas, algumas em línguas inglesa e francesa, que precisei de sobre mim exercer rigorosa polícia para não desandar a comprar parte desse tesouro cultural. Penso também, e esse pensamento me parece de efeito decisivo, no excesso de bagagem que precisaria comigo transportar.
Embora tomadas de assalto por toda a sorte de publicação pornográfica, além do lixo difundido pela cultura de massa, também nas bancas de revista circulam produtos excelentes da cultura de elite. Uma coleção de pensadores, belamente encadernada em capa dura e relativamente barata exibe obras importantes de Adorno, Ortega y Gasset, Mircea Eliade e outros. Estas já decidi que comprarei, mas somente quando já estiver no aeroporto prestes a voar de volta para São Paulo. No mais, são também excelentes as coleções de literatura universal, economia, esta originalmente editada pelo Financial Time, e a de música incorporando ao fascículo obras gravadas em tape ou cd.

Buenos Aires, 18 de fevereiro 1995

A oportunidade da minha vinda a Buenos Aires animou-me a tratar de leituras longamente proteladas. Por isso lembrei-me de agregar à minha bagagem um livrinho de Emir Rodriguez Monegal que leio de uma assentada no quarto do hotel. Tanto apreciei a leitura, e tanto com ela aprendi, que devo principiar esta nota frisando que o termo "livrinho" aplica-se às proporções físicas da obra, não à sua qualidade. Pois me refiro aqui ao livrinho em formato de bolso Mário de Andrade/Borges, compacto mas denso ensaio de literatura comparada no qual Monegal justifica o tom elogioso com que o trata Vargas Llosa no prólogo que assina para a edição brasileira de La Ciudad Letrada, de Angel Rama. Comparando os dois críticos uruguaios, Vargas Llosa realça com franca admiração o prazer que lhe inspiravam a inteligência crítica e a destreza polêmica de ambos: "Angel, mais sociológico e polêmico; Emir, mais literário e acadêmico; aquele mais à esquerda, este mais à direita. As diferenças entre os dois uruguaios foram providenciais e originaram as disputas intelectuais mais estimulantes que já pude assistir, confrontos em que, graças à destreza dialética, à elegância e à cultura dos adversários, não havia nunca um derrotado, e saíam ganhando, sempre, o público e a literatura".

Embora em Mário de Andrade/Borges prevaleça a crítica orientada para o ensaio de literatura comparada com oportunas achegas informativas, justificadas pela distância mútua que tem marcado as ralas relações culturais entretidas por Brasil e Argentina, não deixa Monegal de sugerir ao leitor algo do seu vigor polêmico quando de passagem desacredita o tom desonesto com que Guillermo de Torre traçou o movimento histórico das vanguardas reivindicando para si uma posição de relevo improcedente. Mas o cerne do livrinho consiste, como já se anuncia no título, no rico parelelo por ele traçado entre Mário e Borges. Acentuando as imagens divergentes que de ambos guardam respectivamente brasileiros e argentinos, frisa Monegal como à imagem do Mário nacionalista, aderente a uma estética empenhada tanto apreciada pela esquerda, se opõe a de um Borges cosmopolita execrado pela esquerda do seu país. E conclui assinalando os dois modos de errada apreciação que objetiva contornar ao longo da sua compacta investigação: "A esquerda perde frente a Mário toda a capacidade de análise; frente a Borges, todo exercício de leitura.Um venerado por cada migalha que escreveu; outro, condenado em ausência. Mário é um santo leigo; Borges, um trânsfuga". (p. 10)
Demonstrando que as imagens acima são deformadoras, esclarece Monegal como nos anos vinte profundas afinidades aproximavam a atuação intelectual dos dois escritores que entanto se ignoravam. Se ambos a princípio seguiram a onda cosmopolita traçada pelos movimentos da vanguarda européia de que se aproximaram, mais tarde Mário abraça o nacionalismo assim como Borges transita do Ultraísmo para o Criollismo. Assinala, por outro lado, como Borges foi nesse tempo até mais radical que Mário na valorização da cultura popular. A partir daí, cuida Monegal de acompanhar, em tom sempre oportuno e esclarecedor, dentro dos objetivos comparativos que se propõe, um conjunto de artigos sobre literatura argentina publicados por Mário de Andrade nas páginas do Diário Nacional. Destacando-os como sendo "O documento talvez mais importante para a exata reconstrução do aspecto das relações entre o Modernismo brasileiro e o ultraísmo argentino" (pp. 27-8), corretamente agrega-os ao volume como apêndice documental.

Um mal-estar quase irritante, dado o que implica de privação de vida fruída nas ruas, prende-me à cama do hotel durante o dia. Valho-me desse estado indesejável para ler uma larga fração do último ou talvez último livro de Octavio Paz: Itinerario. Combinando às qualidades do poeta e crítico extraordinários o tom especulativo do pensador liberto das amarras esquerdistas que têm encurtado as asas tanto intelectuais quanto éticas de algumas das melhores cabeças latino-americanas, esboça nessas páginas uma autobiografia intelectual admirável na forma artística da composição e igualmente nas questões de fundo que lhe marcaram a vida.
Distribuída a matéria do livro em duas partes, na primeira, a pretexto de explicar por que escrevera El Laberinto de la Soledad, retoma as indagações e análises mais candentes contidas na sua talvez obra-prima explicitamente articulando-as às experiências que ressalta como cruciais na sua trajetória humana e intelectual. Aclarando desse modo os elos mais íntimos que vinculam a obra ao autor, sobressai agora com maior nitidez o caráter livremente autobiográfico de El Laberinto de la Soledad. A segunda parte constitui antes uma variação do processo compositivo do que do conteúdo da obra, já que nela recorrem as questões estéticas, políticas e filosóficas abordadas na primeira. Respondendo no tom ensaístico que distingue sua produção crítica e especulativa a questionários propostos por Juan Cruz, sob o título geral "Respuestas nuevas a preguntas viejas", Sergio Marras, "América en plural y en singular", e finalmente Julio Scherer, "Tela de juicios", procede Octavio Paz a um rico registro ao mesmo tempo rememorativo e crítico dos fatos, problemas e impasses que marcaram sua geração.
Intelectual de vivência abrangente e cosmopolita, seu testemunho é um misto de reflexão e criação participativa, de obra pensada no espírito mas fecundada na e pela experiência impressa na carne. É assim curioso criticarem-no, como em certa passagem faz um dos seus entrevistadores, por formular uma visão puramente racionalista - liberal-racionalista, diria melhor - da realidade sócio-cultural latino-americana em suas conexões mais profundas com a história universal.

A passagem de uma morena de aparência andrógina em plena 9 de Julio acorda em mim a memória de Puck. Dei-lhe esse nome, carinhosamente usado na nossa curta mas intensa intimidade devido ao amor que me confessou alimentar pelo personagem Robin Goodfellow, the puck, o duende de A Midsummer Night's Dream. Mais que isso, logo em seguida ao batismo literário compus dois poemas para ela, um dos quais intitulado Puck. Tudo começou numa festa, de modo imprevisto e intenso, também fugaz. De lá saímos para rodar de carro dentro da madrugada de Recife, raro momento mágico em que me senti reconciliado com a cidade. Ouvíamos uma das minhas fitas quando me pediu para ouvirmos uma das que conduzia na bolsa. Como traduzir minha encantada surpresa ao constatar que a fita de que falava principiava com Años de Soledad, de Piazzolla, interpretada por ele e Gerry Mulligan? E eu que tanto amo esta música me vi imprevistamente ouvindo-a dentro da madrugada recifense graças à mágica aparição de Puck. Lembro-me ainda de que rodamos e rodamos dentro da noite ouvindo música. Em Salgadinho, entre Olinda e Recife, estacionei no alto do viaduto e ali ficamos suspensos dentro da ar deserto da noite, a brisa marítima soprando no fundo da solidão escura. Onde andará Puck?

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