quinta-feira, 27 de junho de 2013

O Inferno é o Outro


No seu inferno o inferno
era de fato o outro.
Mas como ser sem o outro, sem ser o outro?
Depois de lutar uma vida
contra seu próprio inferno
logrou elevar-se do caos subterrâneo
à superfície da casa
penosamente construída.
Tijolo sobre tijolo
parede emendada a parede
entre recortes de janelas
linhas de repouso e sombra
a luz derramada na espiral da escada
e até um jardim
onde plantou uma flor
batizada como solidão lunar.

Enfim, artes do engano, a sua ilha
com cada coisa em seu lugar.
Mas logo sobrevieram as forças
elementares e incontornáveis do Continente:
o mar de ressaca, tempestades
tufões, maremotos e tornados.
Afundou com sua ilha
numa ensolarada manhã de outubro.
Uma bela manhã para morrer,
eis tudo que disse.

Recife, 09 de junho de 2013.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Poema intransitivo


Escrever o poema que não se fala
muito menos grita
o poema da rua, do povo pisado
o poema voz coletiva, todavia lírico
de uma ardência lírica própria do indivíduo.

Escrever o poema de amor
impessoal como um conceito geométrico
lúcido como a luz do sol
intransparente como a treva
estóico como a vontade que nada redime.

Escrever o poema que me confessasse sem identidade
que amasse sem objeto singular
e celebrasse a vida que importa por ser mortal.
O poema que fosse doação sem recompensa
eternidade de tudo que é presente.

Escrever o poema que me ligasse ao outro
sitiado na sua humanidade como eu na minha.
O poema que me libertasse de mim
diluindo-me na energia cósmica
que já não fosse eu nem universo.
Recife, junho 2013.

sábado, 22 de junho de 2013

Meditação Budista


Se queres ser sábio
se almejas ser o que tão raros são
vence teu eu, teu odioso eu.
Se o mundo é impermanência
insensato é quem elege
como fundamento do sentido
o mundo votado ao transitório e à extinção.

Amar o outro, seja quem for
é conferir sentido ao que não tem sentido.
Se queres ser, nega teu desejo de ser
apaga teu odioso eu no horizonte do sentido.

Liberta-te de ti e do mundo
para que a vida se desenhe
isenta do teu eu e da impermanência de tudo
e afinal alcances o sentido da jornada:
ser é aniquilar o ser.

Recife, 12 de junho de 2013.
Nota: O propósito desta nota não é explicar o poema. Se ele tem algum valor, então se explica por si próprio. Escrevo esta nota movido por um propósito de honestidade autoral, digamos assim. Não sou budista e pouco conheço a doutrina budista. Ela me atrai por muitas razões, que não importa aqui expor, mas temo que o grão de sabedoria que nela busco esteja além da minha imperfeição. Portanto, tudo que tentei foi recriar poeticamente um preceito fundamental do budismo.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

O Enigma


Quantos poemas de fato
caem na boca do povo?
Quando a poesia é um ato
transpondo em código novo
a fala viva da vida?

Quantos poemas importam
para a vivência do povo?
Quantos potentes transportam
no sopro do verbo novo
a senha que muda a vida?

Por que se faz o poeta
em cada verso que escreve
se sua voz mais secreta
a nada e a ninguém serve?
O que ele muda na vida?

O que dá vida ao poema
e da raiz o desprende
se no seu turvo dilema
nada se lucra ou se vende?

O poeta silencia
e o enigma se refugia
no céu sem voz da poesia.
Recife, maio de 2013.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Um Passeio pela Cidade II


Como toda a classe média motorizada, já não ando pelas ruas do Recife. Aliás, a julgar pelo trote dos automóveis imobilizados nas ruas, nem andamos nem transitamos. Daí padecermos hoje do paradoxo seguinte: somos habitantes de um trânsito imóvel, hermeticamente protegidos dentro de nossas máquinas que são mais que meros meios de transporte. Na cidade brasileira, o carro reveste-se de muitas outras funções. A principal, depois da de meio de transporte, é a de proteger-nos da ameaça das ruas. Antes de tudo, da ameaça da miséria, seja ela violenta ou não, armada ou não. A miséria tornou-se perigosa e ameaçadora devido ao simples fato de ser miséria. Entramos nos nossos carros e neles nos fechamos porque há muito vigora um estado de medo disseminado pelas ruas, um estado de guerra latente entre a minoria motorizada e a massa movente das ruas. Importaria ainda considerar a péssima qualidade do transporte público. Ele impede que uma minoria abastada, avessa às razões de privilégio e diferenciação acima, troque o carro pelo transporte coletivo. Morei na Inglaterra durante mais de 4 anos e nunca tive sequer uma bicicleta. Durante esse tempo viajei praticamente por todo o país, além de outros europeus. Tentei um dia aderir aos chamados geladinhos do Recife. Desisti depois da primeira tentativa. Tudo isso, espremido num único parágrafo, comprova o quanto continuamos reproduzindo no presente das cidades superpopulosas e crivadas de problemas urbanos nossas formas tradicionais de privilégio e desigualdade. Aliás, esta é uma das raizes do caos cotidiano que sofremos.
Se consideramos as ruas e seus pedestres, enquanto pilotamos veículos que mais se assemelham a fortalezas móveis, aqueles, os pedestres, têm bem mais razões de medo. Para começar, circulam expostos à permanente ameaça de veículos regidos pelo código do salve-se quem puder. Resisti até há pouco a adotar práticas correntes de defesa e isolamento no espaço público como vidro fumê hermeticamente fechado. Muitos vão além disso e se protegem, não raro agredindo os direitos do outro, com alarme automático e buzina e outros expedientes incivis que concorrem para agravar o estado de guerra surda com que nos confrontamos. Dentro das nossas fortalezas móveis, suprimimos a realidade do pedestre, que sequer nos vê. Apesar de hoje sentir-me mais inseguro, insisto em me expor ao contato com os miseráveis concentrados nos sinais de trânsito mais movimentados.
A despeito de toda a violência que vejo nas ruas, acrescida daquela exposta na mídia e na conversa dos que a reportam em todo tipo de contato social, recuso-me a proceder como a maioria dos que dirigem nas nossas ruas. Embora procure compreender as razões do seu medo, penso que a maioria pratica uma das formas mais cruéis de humanidade. Refiro-me a uma estranha mescla de desprezo e medo identificável em quem, ao avizinhar-se de um desses sinais temidos, refugia-se na brecha menos insegura do asfalto, isto é, a mais distante, preferivelmente a mais inacessível ao assédio dos miseráveis.
O acaso obriga-nos a pisar no freio diante do sinal vermelho aceso nessas vias mais movimentadas. É nelas que a miséria compreensivelmente se concentra para acionar seus meios precários de sobrevivência. É a experiência rotinizada da nossa barbárie urbana. Ainda assim, recuso-me a tratar essa pavorosa massa de miseráveis como o esgoto de nossas ruas. Embora certos sociólogos da Fundação Getúlio Vargas tenham recentemente inventado, com sua hilariante ciência empírica, um país de classe média, a miséria insiste em brotar como mosca em todo o nosso cenário urbano. Portanto, não preciso ir longe para percebê-la.
Longe de mim desprezar o risco presente em certos pontos da cidade. Longe de mim idealizar os miseráveis. Deixo isso para os populistas líricos que todavia se acautelam o bastante para fazer do lirismo de classe um confortável e prestigioso meio de vida. Sei dos perigos presentes nas nossas ruas e estou pessoalmente longe do brasileiro heróico. Acredito, no entanto, na força dessa atitude de reconhecimento humano elementar que se traduz num gesto banal de atenção ao miserável. Essa gente está afeita a ser tratada como o lixo das ruas. O desprezo de que é vítima está inscrito no nosso olhar, no vidro dos carros hermeticamente blindados. Um simples gesto de reconhecimento tem o poder de restituir-lhes por uns breves segundos uma noção obscura de dignidade suprimida, um lampejo de humanidade que logo se dissolve na crua realidade do asfalto brasileiro.
O Recife não está crescendo, muito menos corrigindo seus males crônicos que remontam às origens da cidade. Basta ler um pouco o processo da nossa formação urbana nas páginas insuspeitas de estudiosos como Gilberto Freyre. Qualifico-o como insuspeito porque, mais que amante incondicional do Recife e da região Nordeste, que interpretou de forma sócio-antropológica insuperável, é a fonte primacial de uma ideologia regionalista tenaz. No entanto, estou certo de que ele próprio, fosse ainda vivo, clamaria contra o processo acelerado e predatório de expansão da cidade. No ritmo insensato em que vamos, entregues a políticos incompetentes que não passam de títeres de um punhado de construtoras e grupos econômicos enceguecidos pela ganância do lucro indiferentes ao interesse público, em breve a cidade vai parar literalmente. Privada já de espaço de expansão física e cercada por Jaboatão dos Guararapes, Olinda e Camaragibe, que na prática formam hoje com o Recife uma cidade única, tudo que nos resta é crescer verticalmente. E é isso o que as construtoras fazem em corrida predatória e infrene.
A área onde moro, às bordas do parque Dona Lindu, se é que no caso se pode abusar do sentido do termo parque, evidencia o processo de degradação acima aludido. Mudei-me para esta área há 9 anos. Desde então, pude assistir, e sofrer, à verdadeira devastação da paisagem. Não bastasse tanto, uma das estatais cuja função seria promover a melhoria das nossas ruas, refiro-me à Compesa, vem há anos destruindo literalmente toda a malha das vias asfaltadas. Ir de carro da minha rua à Barão de Souza Leão, trajeto que se estende por cerca de 1 km, é atravessar uma sucessão de buracos, ruas alagadas, se chove qualquer gota de água, e toda a sorte de transtorno inconcebível numa cidade digna deste nome. Esse processo de degradação acintosa independe de governo e partido, pois os que estão no poder desgovernam a cidade com a mesma e impune incompetência, sejam eles filiados ao PT, PSB ou qualquer dessas siglas cuja variedade e vácuo ideológico desacreditam a institucionalização da democracia brasileira. Quem pode conceder algum crédito ideológico a esse balaio de gatos que são os partidos políticos brasileiros? Não saberia contá-los nem decifrar-lhes as siglas. No caso, minha ignorância confessa é apenas uma defesa razoável contra a farsa democrática que representam.
Voltando a meu passeio, quando andamos um pouco pelas ruas nitidamente percebemos o estado geral de degradação do espaço urbano. Impossível caminhar algumas dezenas de metros sobre calçadas seguras. O esgoto e o odor fétido são visíveis a céu aberto e se alastram diante da nossa indiferença. Como em quase todos os bairros da cidade, constato que este onde moro não cresceu, inchou. Outros, de população mais pobre, ramificaram-se por ruas sujas e maltratadas. Em tudo surpreendo a mancha da pobreza, não raro da miséria. Friso empregar estes termos, pobreza e miséria, para além de suas conotações estreitamente materiais. O mais grave, porém, eu o surpreendo nesse modo de desleixo típico do brasileiro, não importa de que condição social. Trata as ruas, a cidade onde vive, como algo dissociado de sua existência, como matéria alheia apenas digna de descaso e destruição. É triste morar numa cidade desse tipo, mover-me dentro dela como se dela não fizesse parte, como se ela, num certo grau, não fosse uma extensão da minha casa. Somos estranhos hostis, quando não inimigos declarados. Quando afinal seremos uma cidade no sentido pleno do termo, uma cidade construída e habitada por cidadãos?
Tenho perfeita consciência de que a realidade esboçada neste artigo contrasta radicalmente com a imagem corrente da cidade, sobretudo a imagem publicitária oficial – que é paga com dinheiro público, convém sempre lembrar. De acordo com esta imagem, a oficial, e a publicitária compreendida em termos mais amplos, o Recife é uma cidade que inspira orgulho, pois vai muito bem e marcha para um padrão de progresso (material, friso no subtexto) invejável. Que fazer diante da incurável inconsciência social da nossa classe dirigente, da indiferença política de uma população cada vez mais refém, também cúmplice, de um processo de crescimento caótico agravado com freqüência por ações políticas criminosas que, num país realmente regulamentado, seriam severamente punidas?
A realidade crua é outra. Recife é hoje, de longe, a pior das capitais que conheço. Prescindindo de comparações com o Sul, onde conheço cidades modelares como Curitiba, restrinjo minha comparação a capitais mais próximas, como João Pessoa, Natal e Fortaleza. Todas têm hoje uma qualidade de vida urbana muito melhor que a de Recife.
O único registro otimista que aqui faço, já arrematando o artigo, refere-se à constatação de que um grupo crescente de pessoas começa afinal a mobilizar-se contra esse processo de expansão urbana que está tornando o Recife inviável. Registro, em particular, o movimento Direitos Urbanos, que através das redes sociais, além de mobilizações práticas efetivas, tem oposto resistência tenaz e admirável à classe dirigente e ao punhado de empreiteiras e construtoras responsáveis pelo estado de desagregação urbana a que chegamos. Espero que esse movimento se amplie e acabe por constituir uma força política capaz de deter ou reorientar a expansão do Recife.

sábado, 1 de junho de 2013

Liberdade e Identidade II


Meus sentimentos de estrangeiro tendem a acentuar-se durante o carnaval. Sendo uma das mais profundas e extensivas expressões da cultura brasileira, portanto um dos seus momentos de suprema integração social, não é de estranhar que estados subjetivos dessa natureza se agravem imprimindo transparência à linha fronteiriça entre o eu e o outro coletivo, entre minha brasilidade gauche, sempre distanciada e dissonante, e o espírito gregário e ruidoso do povo brasileiro.
Isso se repete, em tom às vezes ainda mais exacerbado, durante a Copa do Mundo. Este, aliás, será um ano – junho e julho, mais exatamente – que me submeterá a mais uma dessas provas de brasilidade a contrapelo, de celebração futebolística contrafeita, já que sempre vivida com reserva, quando não com franca resistência à integração dissoluta no corpo da massa infranqueável ao exercício da individualidade e da alteridade.

Meu estranhamento desdobra-se ainda nas festas de fim de ano, além dos festejos do meio do ano, como é o caso das festas juninas que já tive a esperança de ver superadas pela dinâmica urbana do país. A mídia e a indústria da publicidade, entretanto, operaram recentemente no sentido de ativá-las integrando-as ao circuito do consumo e deslocando-as dos arraiais e da geografia rural para o shopping center; para o cerne, portanto, do espaço onde se desenvolve a cultura urbana. Fenômenos dessa natureza sugerem a complexidade da dinâmica sociocultural do capitalismo em países do tipo do Brasil.

Será necessariamente negativo ou indesejável o estado de estranhamento dentro do meu próprio país? Minha amiga Vivian Schelling, culturalmente dividida numa linha de intersecção simbólica que compreende Alemanha, Espanha, Inglaterra e Brasil, muitas vezes se queixou nas nossas conversas londrinas da sua personalidade culturalmente dividida. Talvez por isso tanto se voltasse para o seu curto passado brasileiro, vivido entre o Rio e São Paulo, tingindo-o com cores idealizadoras. Será assim indesejável ou negativo esse processo de interna divisão cultural? Se todos tendessem a comportar-se como Vivian, diria que o mundo contemporâneo, pelo menos o ocidental, estaria saturado da infelicidade gerada pela divisão cultural das personalidades. Dado isso como um fato, seria igualmente compreensível a representação regressiva e idealizadora do passado pré-moderno. Foscamente dividido por essas fronteiras que demarcam a linha da modernidade e a da pré-modernidade, o Brasil se prestaria a acomodar na sua geografia cultural o olhar nostálgico do pós-modernista contrafeito.

Recuando entretanto para a modesta e palpável dimensão da minha subjetividade, não me vejo como um infeliz ou carente de identidade socialmente integrada. Sem pretender subestimar o fardo que é viver regido por valores que não alcançam o estatuto de valor dominante na minha cultura de origem, sempre discriminei esse peso negativo do positivo. Tanto quanto aquele, este se constitui na expressão da minha personalidade como consequência muitas vezes consciente e até previsível dos conflitos implícita ou explicitamente travados no cerne da minha subjetividade que compreende valores coletivos, alguns imperativos, mas também valores individualmente selecionados.

É nessa linha de tensão em que se relacionam o eu-Fernando e o outro-coletivo que se define a minha subjetividade. Antes de concebê-la como mera expressão individual e reflexa da sociedade, aprendi que é possível investir-me do poder e da liberdade de traçar uma linha de diferença e individualidade diante dos mecanismos sociais tendentes a produzir o conformismo e a indiferenciação. Dependo evidentemente da sociedade em que vivo para me constituir enquanto entidade autônoma e individualizada sem que entretanto isso de modo algum pressuponha o consentimento ou dócil aderência aos valores dominantes.

Se um homem não é capaz de demarcar sua diferença contra o outro coletivo, não pode legitimamente falar de si próprio como um ser livre. É por isso que um dos problemas mais inquietantes da cultura contemporânea, regida pelas agências geradoras dos valores difundidos em alta e sistemática escala pela mídia, é a ilusão da autonomia e da liberdade individual. Digo ilusão porque a noção de liberdade vendida pela mídia é objetivamente uma forma de conformismo e escravização aos ditames do mercado. Seja você mesmo: beba coca-cola. Esta frase, mote publicitário do produto que anuncia, sintetiza à perfeição o que intento traduzir neste parágrafo.

Essa cultura da mídia, fundada no princípio da permissividade, da completa dessacralização dos valores coletivos, exerce a forma mais insidiosa de dominação, já que é abstrata e assim nunca se materializa num indivíduo ou instância concreta. Costumo ainda hoje lembrar um episódio que tipifica este fenômeno. Quando ensinava sociologia no curso de arquitetura da UFPE costumava selecionar alguns filmes para debatê-los com os alunos. Vimos, certa vez, Sociedade dos poetas mortos (Dead Poets Society). Um dos alunos, aliás dos mais inteligentes da turma, observou que a diferença essencial entre a escola tradicional retratada no filme e a contemporânea consistia no fato de que naquela os alunos não eram livres, enquanto o eram nesta.
Ora, o que o episódio ilustra é a crença espontânea na liberdade. Dissolvendo o princípio necessário da autoridade no seio da permissividade mercadológica, a mídia despersonaliza a liberdade dissociando-a de qualquer forma concreta de autoridade. Lembrei ao meu aluno que uma das características positivas da sociedade tradicional residia no fato de a autoridade se encarnar na figura concreta do pai, da mãe, do professor, etc. Na medida em que era visível e concreta, era por conseguinte mais fácil identificá-la e opor-lhe resistência, sobretudo nas circunstâncias em que deixava de ser autoridade para converter-se em dominação autoritária.
O próprio processo de conquista da identidade individual, um fato imperativo na vida de qualquer pessoa formada nos quadros da cultura ocidental, me parece que resultava menos problemático no âmbito de uma cultura em que a autoridade estava concretamente materializada na ação de alguns agentes sociais básicos. Na medida porém em que a autoridade tende a se tornar abstrata dissolvendo-se na ideologia da permissividade, que nunca se pronuncia no imperativo nem é veiculada por agentes identificáveis com a autoridade indesejada e hostilizável, a sensação de desorientação e impotência, sobretudo do jovem, tende a acentuar-se. Falando de modo interrogativamente concreto: contra quem conquistarei minha liberdade? A quem opor minha resistência e meu desejo de afirmação individual, minha sede de liberdade, em suma? Como reivindicar minha liberdade numa cultura onde pai e mãe não apenas estão esvaziados de autoridade, mas se tornaram presas dóceis, meros financiadores da liberdade mercadológica?

A própria psicologia corrente, a julgar pelo que que dela aparece na mídia, pouco difere do discurso publicitário. Um conceito psicológico como auto-estima em nada difere do emprego que lhe empresta o discurso publicitário. Falam de auto-estima como se fosse um processo de constituição da subjetividade totalmente dependente de fontes externas ao sujeito. Trocando em miúdos, minha auto-estima é produzida e validada apenas pelo outro, pelo mercado, pelas correntes onipotentes da opinião. Em suma, estamos falando de psicologia da integração passiva do sujeito ao ambiente, a integração compreendida como escravização inconsciente a fatores externos ao sujeito. Isso me faz lembrar um dos contos mais extraordinários de Machado de Assis: O Espelho. Machado soube traduzir literariamente mais que qualquer outro dos nossos escritores literários as forças de subordinação do indivíduo ao meio social. Jacobina, narrador e protagonista do conto mencionado, parece provar que nossa liberdade individual, o cerne mesmo da nossa identidade social, radica na nossa dócil internalização dos valores do meio em que nos formamos. Alferes da Guarda Nacional, ele de tal modo se confunde e dissolve na farda que usa que se desintegra a partir do momento em que o outro que lhe confere existência identificando seu ser social com a farda se ausenta. O conto é engenhosamente elaborado do ponto de vista psicológico, do ponto de vista da constituição do sujeito, mas pode desse ponto de vista ser desmentido por uma questão bem simples: se Jacobina simboliza o protótipo da constituição do sujeito, da subjetividade que seria apenas o espelho do meio que a molda, como explicar a existência do próprio Machado de Assis, para não falar da sua obra que ardilosa e impiedosamente põe em questão toda a ordem social dominante no seu tempo?

Ser livre hoje talvez signifique a recusa de ir ao shopping center comportando-se como o avesso da máquina dócil imantada à engrenagem do guichê e do cartão de crédito. Ser livre hoje talvez signifique dizer não ao carnaval, ou antes brincá-lo sem subordinar-se aos invisíveis mecanismos de pressão que nos reduzem a um número estatístico ou a uma cota negociada no mercado de ações, ou ainda a um flash sonhado na telinha da rede Globo.
Ser livre talvez signifique ser ninguém ou nada no caldeirão antropofágico do capitalismo de consumo, variante tropical, Pernambuco, Brasil.