terça-feira, 4 de junho de 2013

Um Passeio pela Cidade II


Como toda a classe média motorizada, já não ando pelas ruas do Recife. Aliás, a julgar pelo trote dos automóveis imobilizados nas ruas, nem andamos nem transitamos. Daí padecermos hoje do paradoxo seguinte: somos habitantes de um trânsito imóvel, hermeticamente protegidos dentro de nossas máquinas que são mais que meros meios de transporte. Na cidade brasileira, o carro reveste-se de muitas outras funções. A principal, depois da de meio de transporte, é a de proteger-nos da ameaça das ruas. Antes de tudo, da ameaça da miséria, seja ela violenta ou não, armada ou não. A miséria tornou-se perigosa e ameaçadora devido ao simples fato de ser miséria. Entramos nos nossos carros e neles nos fechamos porque há muito vigora um estado de medo disseminado pelas ruas, um estado de guerra latente entre a minoria motorizada e a massa movente das ruas. Importaria ainda considerar a péssima qualidade do transporte público. Ele impede que uma minoria abastada, avessa às razões de privilégio e diferenciação acima, troque o carro pelo transporte coletivo. Morei na Inglaterra durante mais de 4 anos e nunca tive sequer uma bicicleta. Durante esse tempo viajei praticamente por todo o país, além de outros europeus. Tentei um dia aderir aos chamados geladinhos do Recife. Desisti depois da primeira tentativa. Tudo isso, espremido num único parágrafo, comprova o quanto continuamos reproduzindo no presente das cidades superpopulosas e crivadas de problemas urbanos nossas formas tradicionais de privilégio e desigualdade. Aliás, esta é uma das raizes do caos cotidiano que sofremos.
Se consideramos as ruas e seus pedestres, enquanto pilotamos veículos que mais se assemelham a fortalezas móveis, aqueles, os pedestres, têm bem mais razões de medo. Para começar, circulam expostos à permanente ameaça de veículos regidos pelo código do salve-se quem puder. Resisti até há pouco a adotar práticas correntes de defesa e isolamento no espaço público como vidro fumê hermeticamente fechado. Muitos vão além disso e se protegem, não raro agredindo os direitos do outro, com alarme automático e buzina e outros expedientes incivis que concorrem para agravar o estado de guerra surda com que nos confrontamos. Dentro das nossas fortalezas móveis, suprimimos a realidade do pedestre, que sequer nos vê. Apesar de hoje sentir-me mais inseguro, insisto em me expor ao contato com os miseráveis concentrados nos sinais de trânsito mais movimentados.
A despeito de toda a violência que vejo nas ruas, acrescida daquela exposta na mídia e na conversa dos que a reportam em todo tipo de contato social, recuso-me a proceder como a maioria dos que dirigem nas nossas ruas. Embora procure compreender as razões do seu medo, penso que a maioria pratica uma das formas mais cruéis de humanidade. Refiro-me a uma estranha mescla de desprezo e medo identificável em quem, ao avizinhar-se de um desses sinais temidos, refugia-se na brecha menos insegura do asfalto, isto é, a mais distante, preferivelmente a mais inacessível ao assédio dos miseráveis.
O acaso obriga-nos a pisar no freio diante do sinal vermelho aceso nessas vias mais movimentadas. É nelas que a miséria compreensivelmente se concentra para acionar seus meios precários de sobrevivência. É a experiência rotinizada da nossa barbárie urbana. Ainda assim, recuso-me a tratar essa pavorosa massa de miseráveis como o esgoto de nossas ruas. Embora certos sociólogos da Fundação Getúlio Vargas tenham recentemente inventado, com sua hilariante ciência empírica, um país de classe média, a miséria insiste em brotar como mosca em todo o nosso cenário urbano. Portanto, não preciso ir longe para percebê-la.
Longe de mim desprezar o risco presente em certos pontos da cidade. Longe de mim idealizar os miseráveis. Deixo isso para os populistas líricos que todavia se acautelam o bastante para fazer do lirismo de classe um confortável e prestigioso meio de vida. Sei dos perigos presentes nas nossas ruas e estou pessoalmente longe do brasileiro heróico. Acredito, no entanto, na força dessa atitude de reconhecimento humano elementar que se traduz num gesto banal de atenção ao miserável. Essa gente está afeita a ser tratada como o lixo das ruas. O desprezo de que é vítima está inscrito no nosso olhar, no vidro dos carros hermeticamente blindados. Um simples gesto de reconhecimento tem o poder de restituir-lhes por uns breves segundos uma noção obscura de dignidade suprimida, um lampejo de humanidade que logo se dissolve na crua realidade do asfalto brasileiro.
O Recife não está crescendo, muito menos corrigindo seus males crônicos que remontam às origens da cidade. Basta ler um pouco o processo da nossa formação urbana nas páginas insuspeitas de estudiosos como Gilberto Freyre. Qualifico-o como insuspeito porque, mais que amante incondicional do Recife e da região Nordeste, que interpretou de forma sócio-antropológica insuperável, é a fonte primacial de uma ideologia regionalista tenaz. No entanto, estou certo de que ele próprio, fosse ainda vivo, clamaria contra o processo acelerado e predatório de expansão da cidade. No ritmo insensato em que vamos, entregues a políticos incompetentes que não passam de títeres de um punhado de construtoras e grupos econômicos enceguecidos pela ganância do lucro indiferentes ao interesse público, em breve a cidade vai parar literalmente. Privada já de espaço de expansão física e cercada por Jaboatão dos Guararapes, Olinda e Camaragibe, que na prática formam hoje com o Recife uma cidade única, tudo que nos resta é crescer verticalmente. E é isso o que as construtoras fazem em corrida predatória e infrene.
A área onde moro, às bordas do parque Dona Lindu, se é que no caso se pode abusar do sentido do termo parque, evidencia o processo de degradação acima aludido. Mudei-me para esta área há 9 anos. Desde então, pude assistir, e sofrer, à verdadeira devastação da paisagem. Não bastasse tanto, uma das estatais cuja função seria promover a melhoria das nossas ruas, refiro-me à Compesa, vem há anos destruindo literalmente toda a malha das vias asfaltadas. Ir de carro da minha rua à Barão de Souza Leão, trajeto que se estende por cerca de 1 km, é atravessar uma sucessão de buracos, ruas alagadas, se chove qualquer gota de água, e toda a sorte de transtorno inconcebível numa cidade digna deste nome. Esse processo de degradação acintosa independe de governo e partido, pois os que estão no poder desgovernam a cidade com a mesma e impune incompetência, sejam eles filiados ao PT, PSB ou qualquer dessas siglas cuja variedade e vácuo ideológico desacreditam a institucionalização da democracia brasileira. Quem pode conceder algum crédito ideológico a esse balaio de gatos que são os partidos políticos brasileiros? Não saberia contá-los nem decifrar-lhes as siglas. No caso, minha ignorância confessa é apenas uma defesa razoável contra a farsa democrática que representam.
Voltando a meu passeio, quando andamos um pouco pelas ruas nitidamente percebemos o estado geral de degradação do espaço urbano. Impossível caminhar algumas dezenas de metros sobre calçadas seguras. O esgoto e o odor fétido são visíveis a céu aberto e se alastram diante da nossa indiferença. Como em quase todos os bairros da cidade, constato que este onde moro não cresceu, inchou. Outros, de população mais pobre, ramificaram-se por ruas sujas e maltratadas. Em tudo surpreendo a mancha da pobreza, não raro da miséria. Friso empregar estes termos, pobreza e miséria, para além de suas conotações estreitamente materiais. O mais grave, porém, eu o surpreendo nesse modo de desleixo típico do brasileiro, não importa de que condição social. Trata as ruas, a cidade onde vive, como algo dissociado de sua existência, como matéria alheia apenas digna de descaso e destruição. É triste morar numa cidade desse tipo, mover-me dentro dela como se dela não fizesse parte, como se ela, num certo grau, não fosse uma extensão da minha casa. Somos estranhos hostis, quando não inimigos declarados. Quando afinal seremos uma cidade no sentido pleno do termo, uma cidade construída e habitada por cidadãos?
Tenho perfeita consciência de que a realidade esboçada neste artigo contrasta radicalmente com a imagem corrente da cidade, sobretudo a imagem publicitária oficial – que é paga com dinheiro público, convém sempre lembrar. De acordo com esta imagem, a oficial, e a publicitária compreendida em termos mais amplos, o Recife é uma cidade que inspira orgulho, pois vai muito bem e marcha para um padrão de progresso (material, friso no subtexto) invejável. Que fazer diante da incurável inconsciência social da nossa classe dirigente, da indiferença política de uma população cada vez mais refém, também cúmplice, de um processo de crescimento caótico agravado com freqüência por ações políticas criminosas que, num país realmente regulamentado, seriam severamente punidas?
A realidade crua é outra. Recife é hoje, de longe, a pior das capitais que conheço. Prescindindo de comparações com o Sul, onde conheço cidades modelares como Curitiba, restrinjo minha comparação a capitais mais próximas, como João Pessoa, Natal e Fortaleza. Todas têm hoje uma qualidade de vida urbana muito melhor que a de Recife.
O único registro otimista que aqui faço, já arrematando o artigo, refere-se à constatação de que um grupo crescente de pessoas começa afinal a mobilizar-se contra esse processo de expansão urbana que está tornando o Recife inviável. Registro, em particular, o movimento Direitos Urbanos, que através das redes sociais, além de mobilizações práticas efetivas, tem oposto resistência tenaz e admirável à classe dirigente e ao punhado de empreiteiras e construtoras responsáveis pelo estado de desagregação urbana a que chegamos. Espero que esse movimento se amplie e acabe por constituir uma força política capaz de deter ou reorientar a expansão do Recife.

Um comentário: