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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Viagem a Buenos Aires II



Buenos Aires, 17 de fevereiro de 1995

Depois de percorrer tantas lojas de música em Buenos Aires, chego à conclusão inquestionável de que a Argentina está musicalmente mais próxima do Brasil do que o Brasil da Argentina. Quem Perde? Sei que a Argentina ganharia ainda mais se em lugar ou para além de Xuxa, Daniela Mercury e os roqueiros ouvisse mais Tom Jobim, Chico Buarque, João Gilberto, Villa-Lobos, Noel Rosa, Pixinguinha, etc. De outro lado, estou certo de que a música argentina não é apenas Piazzolla. Portanto, também nós saímos perdendo nesse comércio de relações musicais.
Mas que dizer de Fito Paez, autor da belíssima canção "Un vestido y un amor", revelada no Brasil por Caetano Veloso no seu último cd? Dizem-me os argentinos com quem conversei que Paez vale por tudo que criou, tudo que ainda ignoro. Vi sem no entanto ouvir os seus cds em várias lojas de Buenos Aires. Embora tanto tenha pensado em adquiri-los, findei sempre por concluir que mais prudente será antes conhecê-los através do argentino José Luís quando retornar a Recife.

Compro livros de Ernesto Sabato. Entre outros, entre la letra y la sangre, livro que reúne uma série de conversas com Carlos Catania. Sabato fala de tudo, ou quase, inclusive da metafísica do tango. Isentando-se de especulações pedantes acaso sugeridas pela metafísica que associa ao tango, assinala as raízes históricas desse gênero de música popular difundido pelo mundo inteiro como o jazz, a bossa nova e o rock. Lembra que, à semelhança do jazz, o tango brotou do mundo da pobreza e da marginalidade social. Música parida nos bordéis, onde migrantes pobres e privados de amor recorriam ao simulacro deste, que é a prostituição, o tango acabou ascendendo a extratos sociais inteiramente dissociados da sua origem. Sabato comprime a nota da tristeza e da solidão nitidamente desenhadas nesse gênero de música tão passional e violento. Enquanto gênero, o tango é a expressão musical mais dilacerante e sensual que conheço. Lendo essas passagens do seu livro, lembrei-me da definição proposta por Astor Piazzolla, o Tom Jobim do tango. Entrevistado por um jornalista inglês que lhe perguntou o que era o tango, replicou em tom curto e grosso, mas absolutamente certeiro: “it´s a vertical rape”.

Porque a condição humana se funda sobre uma cisão de raiz entre desejo e satisfação, entre ser e querer, haverá arte enquanto houver código, imaginação, poeira humana vivente nesse universo de indecifráveis enigmas. Criar arte é um dos modos humanos, ambição sempre falhada, de compensar e transcender nossa cisão de origem.
Um dos mais recentes delírios utópicos nutrido por intelectuais revolucionários consistiu na tola presunção de acreditar que o mundo sem classes produzido pela revolução proletária suprimiria essa ferida aberta entre ser e querer. Tomando como historicamente determinada, e portanto superável pela práxis humana, a cisão que é de natureza metafísica, apostaram nessa tolice que chamei de delírio utópico. Lembro-me de Kostas Axelos, por exemplo, antevendo em escritos dos anos sessenta essa atualização secular do mito do paraíso que é a utopia marxista projetada num tempo sem opressão e sem classes sociais.
Evidentemente, a utopia não foi formulada por Marx e seguidores ilustres, para não mencionar os diluidores mais grosseiros, nos termos em que aqui a interpreto. Seu fundamento imediato ou aparente é, sabemos, a análise materialista objetiva das condições históricas determinantes da opressão e infelicidade humanas. Compreendida entretanto na sua dimensão mais profunda, não passa a utopia de uma teorização sofisticada da nossa cisão de origem. E se aqui a formulo em termos metafísicos, ou meta-históricos, é porque me move a convicção de que esta é sua real natureza.

Quando vivi na Inglaterra, tendo pela primeira vez a oportunidade de conviver com estudantes latino-americanos, dei-me conta do quanto reciprocamente nos ignorávamos. Pois se é verdade que em princípio tantas coisas tendem a nos aproximar, geografia e história marcadas por condições de permanente dependência frente ao colonizador europeu, sucedido pelo americano do norte, imensas barreiras nos têm secularmente dividido. Talvez uma das possíveis explicações para essas barreiras derive do caráter de dependência cultural que de um lado sempre nos vinculou, seja à Europa, seja mais proximamente aos Estados Unidos, enquanto do outro conduziu à profunda ignorância mútua a que me refiro.

No se puede vivir sin amar. Li esta frase desolado, assim em espanhol tal como a transcrevo, em Under the Volcano, de Malcolm Lowry, o atormentado e extraordinário Lowry que lenta e inexoravelmente se destruiu errante nesse mundo tanto carecido de amor. A frase me penetrou um certo dia em Recife, de imediato através do filme adaptado por John Huston, revisitou-me frequentes vezes em momentos de solidão purgada na Inglaterra e afinal em mim se enraizou com o mesmo tom desolado que percorre a carência e a embriaguês literal de Geoffrey Firmin, o protagonista de Under the Volcano. A obra e vida de Lowry, tanto quanto a estragosa e inconfessável privação que me fere, impelem-me a repetir através da Plaza de Mayo: No se puede vivir sin amar.

Quanto mais percorro e descubro Buenos Aires, mais me apaixono por sua beleza, suas formas arquitetônicas de corte nitidamente europeu. Como é bela esta ciudad. "Y quando me pierdo en la ciudad / Vos ya sabés comprender / Es solo un rato no más / Tendría que llorar o salir a matar / Te vi, te vi, te vi / Yo no buscaba a nadie y te vi".

Se de minha parte posso dizer que intensamente amei quatro mulheres na minha vida, com todas tendo compartilhado momentos intraduzíveis de felicidade e prazer, não posso entretanto sustentar que nos limites da experiência repartida logrei alcançar essa ventura expressa em um sutil e inefável acordo entre duas almas apaixonadas. Como Isak Dinesen evocando Denys Finch Hatton (ver o filme Entre dois amores), muitas vezes na Inglaterra adaptei para meu uso pessoal a frase que condensa o grande e belo amor que viveu na África: “I had a love in Africa”. Evocando e em mim sofrendo a dor sem remédio de ter perdido C. no Brasil, no fundo da minha solidão e carência padecidas na Inglaterra assim disse e dizia de mim para mim: I had a love in Brazil. Mas esse amor, não importando quanto grande foi e seja ainda no que dele sobrevive como matéria da memória, este amor apenas excepcionalmente alcançou consumar-se tanto quanto conjugação erótica quanto acordo entre as duas almas amantes. Tal como quase todos que amaram, meus amores foram sobretudo vividos fruídos e gozados na sua dimensão dominantemente erótica. Direi melhor: carnal.
É assim por esse motivo, em alguns consciente, noutros obscuro, que tendemos a invejar, no bom quanto no mau sentido, os amantes venturosos. Terei eu um dia a felicidade de viver esse modo de plenitude? Refletindo em escala pouco mais modesta, viverei eu um dia com uma mulher a completude assentada sobre o domínio das almas, já que é tão rara a conjugação acima descrita? Well, well... Dizem que somente a partir dos 65 anos T. S. Eliot alcançou a felicidade à qual ao longo da vida tanto aspirara. Veio ela com Valerie Fletcher, sua secretária na editora Faber & Faber. Foi aparentemente tão feliz que nada mais de importante conseguiu literariamente criar. Well, well, se Eliot somente começou a ser feliz aos 65, por que não posso eu esperar?

Como acima registrei, quanto mais percorro e descubro Buenos Aires, mais me apaixono pela extraordinária beleza da sua arquitetura de inspiração francamente européia definindo as linhas e volumes de largas avenidas e praças. Tanto me apaixona esse tipo de cidade, sintoma, entre outros, de minha aderência talvez excessiva a valores e padrões estéticos de procedência européia, que involuntariamente penso no Recife. Comparando-a em seguida a Buenos Aires, concluo que sai ela de minha ligeira comparação como se não passasse de um acampamento urbano, uma mera caricatura de cidade compreendida no sentido civilizado do termo. Afinal, não foi por um acaso que civilização derivou de cidade. Assim compreendido, o paralelo entre as duas cidades vai muito além de suas configurações materiais estendendo-se aos modos peculiares de vida cultural que encerram. Algumas diferenças elementares e imediatamente perceptíveis: enquanto aqui as normas reguladoras do trânsito são rigorosamente obedecidas, lá enraizou-se o caos, quando não a prática homicida, resultante da nossa cultura da transgressão; enquanto aqui prevalecem o respeito ao silêncio e à privacidade nas esferas pública e privada, lá o gregarismo ruidoso e predatório se tem imposto de modo progressivo. Por essas e outras é que já me compenetrei de que sou um apátrida exilado nos trópicos onde a permissividade das normas e costumes, quando não a pura e simples anomia, se sobrepõem aos princípios de civilidade segundo os quais tenho procurado ordenar minha vida. Neste sentido, não resta qualquer dúvida de que me senti muito mais em casa na Inglaterra, assim como aqui em Buenos Aires, do que no Sudeste e sobretudo Nordeste brasileiros. A julgar pelo pouco que conheci de Santa Catarina e do Paraná, quando da minha viagem com Daniel e Célia em 1976, penso que por lá também me sentiria vivendo num Brasil mais condizente com meu modo de ser.

Retomo minha jornada através das livrarias de Buenos Aires. Explorei hoje a faixa da Avenida de Mayo que liga a 9 de Julio à Plaza de Mayo, além de também percorrer a Rivadavia, via que corrre imediatamente paralela à Avenida de Mayo. Deparei em livrarias e sebos um tal despropósito de preciosidades bibliográficas, algumas em línguas inglesa e francesa, que precisei de sobre mim exercer rigorosa polícia para não desandar a comprar parte desse tesouro cultural. Penso também, e esse pensamento me parece de efeito decisivo, no excesso de bagagem que precisaria comigo transportar.
Embora tomadas de assalto por toda a sorte de publicação pornográfica, além do lixo difundido pela cultura de massa, também nas bancas de revista circulam produtos excelentes da cultura de elite. Uma coleção de pensadores, belamente encadernada em capa dura e relativamente barata exibe obras importantes de Adorno, Ortega y Gasset, Mircea Eliade e outros. Estas já decidi que comprarei, mas somente quando já estiver no aeroporto prestes a voar de volta para São Paulo. No mais, são também excelentes as coleções de literatura universal, economia, esta originalmente editada pelo Financial Time, e a de música incorporando ao fascículo obras gravadas em tape ou cd.

Buenos Aires, 18 de fevereiro 1995

A oportunidade da minha vinda a Buenos Aires animou-me a tratar de leituras longamente proteladas. Por isso lembrei-me de agregar à minha bagagem um livrinho de Emir Rodriguez Monegal que leio de uma assentada no quarto do hotel. Tanto apreciei a leitura, e tanto com ela aprendi, que devo principiar esta nota frisando que o termo "livrinho" aplica-se às proporções físicas da obra, não à sua qualidade. Pois me refiro aqui ao livrinho em formato de bolso Mário de Andrade/Borges, compacto mas denso ensaio de literatura comparada no qual Monegal justifica o tom elogioso com que o trata Vargas Llosa no prólogo que assina para a edição brasileira de La Ciudad Letrada, de Angel Rama. Comparando os dois críticos uruguaios, Vargas Llosa realça com franca admiração o prazer que lhe inspiravam a inteligência crítica e a destreza polêmica de ambos: "Angel, mais sociológico e polêmico; Emir, mais literário e acadêmico; aquele mais à esquerda, este mais à direita. As diferenças entre os dois uruguaios foram providenciais e originaram as disputas intelectuais mais estimulantes que já pude assistir, confrontos em que, graças à destreza dialética, à elegância e à cultura dos adversários, não havia nunca um derrotado, e saíam ganhando, sempre, o público e a literatura".

Embora em Mário de Andrade/Borges prevaleça a crítica orientada para o ensaio de literatura comparada com oportunas achegas informativas, justificadas pela distância mútua que tem marcado as ralas relações culturais entretidas por Brasil e Argentina, não deixa Monegal de sugerir ao leitor algo do seu vigor polêmico quando de passagem desacredita o tom desonesto com que Guillermo de Torre traçou o movimento histórico das vanguardas reivindicando para si uma posição de relevo improcedente. Mas o cerne do livrinho consiste, como já se anuncia no título, no rico parelelo por ele traçado entre Mário e Borges. Acentuando as imagens divergentes que de ambos guardam respectivamente brasileiros e argentinos, frisa Monegal como à imagem do Mário nacionalista, aderente a uma estética empenhada tanto apreciada pela esquerda, se opõe a de um Borges cosmopolita execrado pela esquerda do seu país. E conclui assinalando os dois modos de errada apreciação que objetiva contornar ao longo da sua compacta investigação: "A esquerda perde frente a Mário toda a capacidade de análise; frente a Borges, todo exercício de leitura.Um venerado por cada migalha que escreveu; outro, condenado em ausência. Mário é um santo leigo; Borges, um trânsfuga". (p. 10)
Demonstrando que as imagens acima são deformadoras, esclarece Monegal como nos anos vinte profundas afinidades aproximavam a atuação intelectual dos dois escritores que entanto se ignoravam. Se ambos a princípio seguiram a onda cosmopolita traçada pelos movimentos da vanguarda européia de que se aproximaram, mais tarde Mário abraça o nacionalismo assim como Borges transita do Ultraísmo para o Criollismo. Assinala, por outro lado, como Borges foi nesse tempo até mais radical que Mário na valorização da cultura popular. A partir daí, cuida Monegal de acompanhar, em tom sempre oportuno e esclarecedor, dentro dos objetivos comparativos que se propõe, um conjunto de artigos sobre literatura argentina publicados por Mário de Andrade nas páginas do Diário Nacional. Destacando-os como sendo "O documento talvez mais importante para a exata reconstrução do aspecto das relações entre o Modernismo brasileiro e o ultraísmo argentino" (pp. 27-8), corretamente agrega-os ao volume como apêndice documental.

Um mal-estar quase irritante, dado o que implica de privação de vida fruída nas ruas, prende-me à cama do hotel durante o dia. Valho-me desse estado indesejável para ler uma larga fração do último ou talvez último livro de Octavio Paz: Itinerario. Combinando às qualidades do poeta e crítico extraordinários o tom especulativo do pensador liberto das amarras esquerdistas que têm encurtado as asas tanto intelectuais quanto éticas de algumas das melhores cabeças latino-americanas, esboça nessas páginas uma autobiografia intelectual admirável na forma artística da composição e igualmente nas questões de fundo que lhe marcaram a vida.
Distribuída a matéria do livro em duas partes, na primeira, a pretexto de explicar por que escrevera El Laberinto de la Soledad, retoma as indagações e análises mais candentes contidas na sua talvez obra-prima explicitamente articulando-as às experiências que ressalta como cruciais na sua trajetória humana e intelectual. Aclarando desse modo os elos mais íntimos que vinculam a obra ao autor, sobressai agora com maior nitidez o caráter livremente autobiográfico de El Laberinto de la Soledad. A segunda parte constitui antes uma variação do processo compositivo do que do conteúdo da obra, já que nela recorrem as questões estéticas, políticas e filosóficas abordadas na primeira. Respondendo no tom ensaístico que distingue sua produção crítica e especulativa a questionários propostos por Juan Cruz, sob o título geral "Respuestas nuevas a preguntas viejas", Sergio Marras, "América en plural y en singular", e finalmente Julio Scherer, "Tela de juicios", procede Octavio Paz a um rico registro ao mesmo tempo rememorativo e crítico dos fatos, problemas e impasses que marcaram sua geração.
Intelectual de vivência abrangente e cosmopolita, seu testemunho é um misto de reflexão e criação participativa, de obra pensada no espírito mas fecundada na e pela experiência impressa na carne. É assim curioso criticarem-no, como em certa passagem faz um dos seus entrevistadores, por formular uma visão puramente racionalista - liberal-racionalista, diria melhor - da realidade sócio-cultural latino-americana em suas conexões mais profundas com a história universal.

A passagem de uma morena de aparência andrógina em plena 9 de Julio acorda em mim a memória de Puck. Dei-lhe esse nome, carinhosamente usado na nossa curta mas intensa intimidade devido ao amor que me confessou alimentar pelo personagem Robin Goodfellow, the puck, o duende de A Midsummer Night's Dream. Mais que isso, logo em seguida ao batismo literário compus dois poemas para ela, um dos quais intitulado Puck. Tudo começou numa festa, de modo imprevisto e intenso, também fugaz. De lá saímos para rodar de carro dentro da madrugada de Recife, raro momento mágico em que me senti reconciliado com a cidade. Ouvíamos uma das minhas fitas quando me pediu para ouvirmos uma das que conduzia na bolsa. Como traduzir minha encantada surpresa ao constatar que a fita de que falava principiava com Años de Soledad, de Piazzolla, interpretada por ele e Gerry Mulligan? E eu que tanto amo esta música me vi imprevistamente ouvindo-a dentro da madrugada recifense graças à mágica aparição de Puck. Lembro-me ainda de que rodamos e rodamos dentro da noite ouvindo música. Em Salgadinho, entre Olinda e Recife, estacionei no alto do viaduto e ali ficamos suspensos dentro da ar deserto da noite, a brisa marítima soprando no fundo da solidão escura. Onde andará Puck?

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Octavio Paz



Morte de Octavio Paz. Para mim, ele é o ensaísta supremo da América Latina neste século. Especifico o ensaísta por considerá-lo superior ao poeta. El Laberinto de la Soledad, acima de qualquer das suas muitas obras, é um livro ao qual sempre retorno. Refiro-me mais exatamente ao capítulo “La dialéctica de la soledad”, que reli incontáveis vezes e estou certo de que continuarei relendo com o mesmo encantamento resultante da sua densidade analítica e do primor formal do estilo de Paz. Muitas vezes recomendei este capítulo à leitura de amigos, sobretudo de amigas, interessados no assunto – a solidão relacionada à sua negação, o amor. Octavio Paz aí demonstra, com rigor e claridade expressiva, ser um autêntico mestre da argumentação dialética, que muitos tolos presumem indissociável do marxismo.

Dois outros livros seus – livros novamente de ensaísta, no caso empenhado em elucidar temas de estética e história literária com a consistência argumentativa do crítico da cultura – também me parecem fundamentais: El Arco y la Lira e Los Hijos del Limo. Em Tiempo Nublado – livro menor, mas também obrigatório para quem deseje conhecer as muitas faces do ensaísta – Octavio Paz volta-se corajosamente para o domínio da crítica política e ideológica. Digo corajosamente porque ele, ao lado de Mario Vargas Llosa e de José Guilherme Merquior, foi dos poucos que ousaram criticar com argumentos de peso, e de modo algum conservadores, a sólida hegemonia de esquerda na cultura latinoamericana que, no caso brasileiro, se encorpa a partir da década de 1930. Para que se tenha ideia dessa hegemonia, ainda hoje, no cenário do pós-socialismo real, vemos intelectuais do porte de Antonio Candido justificando ideologicamente a ditadura de Fidel Castro, aparentemente decidido a sobreviver exercendo o poder até o último suspiro, ou charuto.

Se no Brasil Merquior foi sempre desprezado e com frequência difamado por essa hegemonia, no contexto mexicano Paz sofreu problemas ideológicos similares. Durante meus anos passados na Universidade de Essex fiz vários amigos mexicanos, quase todos ligados ao Departamento de Ciência Política. Sendo todos de esquerda, novamente a hegemonia em cena, hostilizavam Octavio Paz. Um desses amigos, David Davila-Villers, odiava-o ao ponto de recusar-se a admitir um fato facilmente verificável: em 1968 Octavio Paz renunciou ao cargo de embaixador do México na Índia em sinal de protesto contra a repressão imposta pelo governo do seu país aos estudantes de esquerda. Intolerância cega gente de todos os níveis mentais.

Itinerario, publicado em 1993, pode ser lido como uma biografia intelectual condensada de Octavio Paz. Comprei-o e li-o no início de 1995, quando fiz breve visita a Buenos Aires. Minhas impressões acerca deste livro delicioso, quase todo fruído num modesto quarto de hotel, estão anotadas no diário de viagem que então redigia: De Cidade y Ciudad.

Octavio Paz morre quase ao mesmo tempo em que, no Brasil, morre o político Sérgio Motta, figura proeminente do ministério de Fernando Henrique Cardoso. Embora tenha executado medidas políticas fundamentais à frente do Ministério das Comunicações, concorrendo assim para arejar o setor corroído pelas forças do estatismo parasitário que sustenta nosso indignante atraso social, Sérgio Motta é volátil como uma folha de grama exposta a ventos e marés. Sendo assim, coincidem, ele e Paz, apenas na dimensão da morte material, já que o político também se dissipa enquanto entidade espiritual. Octavio Paz, contrariamente, sobrevive. A matéria contingente, essa se dissipa, seja ela o corpo de Paz, de Sérgio Motta, de Ava Gardner, Ingrid Bergman, o rabo da última gostosa vendida na capa da Playboy, ou qualquer outro corpo.

O privilégio do grande artista, do criador de grandes obras espirituais, seja o poema, a canção, o romance, o sistema filosófico ou religioso, é sobreviver na obra que lega à posteridade. Sócrates, Jesus Cristo, São Francisco de Assis, Shakespeare, Marx, Freud, Montaigne, Bach, Tom Jobim, Machado de Assis, Cervantes, Michelangelo, Turgueniev, Conrad e muitos outros são forças vivas e atuantes no cerne da vida contemporânea. Sobrevivem, portanto, à morte física na obra espiritual que nos legaram. É por isso que não lamento a morte recente de Octavio Paz. Sequer sinto a sua falta. Como iria eu sentir a sua falta, se viveu sempre no meu espírito e nas prateleiras da minha biblioteca desde o primeiro momento em que o li?

Diário - Recife, 20 de abril de 1998.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O Liberal Vargas Llosa


Sabres e Utopias, a mais recente coletânea de artigos e ensaios de Mario Vargas Llosa publicada no Brasil, reúne em mais de 400 páginas substanciosa e variada amostragem da sua obra de intelectual público empenhado em questões políticas e culturais. O critério de seleção adotado pelo prefaciador do volume, Carlos Granés, privilegia a política e o combate ideológico em detrimento da literatura. Esta é inserida na coletânea já no capítulo final intitulado: “Os Benefícios do Irreal: Arte e Literatura Latino-americanas”. Além de Borges, Octavio Paz e outros poucos escritores hispano-americanos, comparecem os brasileiros Euclides da Cunha e Jorge Amado.

Saliento, todavia, que Vargas Llosa bem pouco considera a literatura compreendida no seu sentido estrito. Já aludi num outro artigo a essa característica tão marcante em romancistas de renome como Vargas Llosa e José Saramago no debate público da cultura. Embora prioritariamente escritores literários, o fato é que quase sempre se pronunciaram sobre questões políticas e ideológicas. A literatura importa, em termos práticos, apenas como aval ou credencial de sucesso para que intervenham na cena cultural contemporânea.

O que Vargas Llosa escreve acerca de Euclides da Cunha e Jorge Amado, também de outros escritores literários, amplia no campo estético suas obsessões político-culturais enraizadas na América Latina. Noutras palavras, lê Os Sertões, por exemplo, antes de tudo como uma das manifestações supremas dos males típicos que infestam nossas sociedades herdeiras do colonialismo ibérico, do misticismo obscurantista, do nacionalismo estatizante e parasitário, das ditaduras e da corrupção endêmicas apoiadas em ideologias que mantêm o conjunto da América Latina na periferia da modernidade e do autêntico liberalismo democrático.

O que é afinal o liberalismo há décadas ardentemente postulado por Vargas Llosa como solução para os problemas crônicos indicados no parágrafo precedente? A pergunta se impõe em face das incompreensões, quando não grosseiras calúnias, que sobre ele correntemente recaem no conjunto dos países latino-americanos. No Brasil, para ficar no nosso terreiro, o conceito do liberalismo é frequentemente deformado na mídia e no que se pode ainda qualificar como franco debate de ideias. Basta que se pense no abuso com que se emprega sua variante, neoliberalismo. Este é sempre usado não como um conceito, mas simplesmente um insulto ideológico, uma forma de se desqualificar sumariamente um político, pensem em Fernando Henrique Cardoso, uma orientação política ou ainda uma opção ideológica.

Mas voltemos a Vargas Llosa. Esclarecer a noção de liberalismo que adota e propõe como solução para a América Latina saturada de ditaduras e populismos é já um meio de melhor situar nossas turvas disputas relativas a conceitos políticos fundamentais. Os textos chave do livro que comento no que se refere ao liberalismo do autor são “Confissões de um liberal” (páginas 299-308) e “Ganhar batalhas, não a guerra” (páginas 245-58), ambos incluídos no capítulo relativo à democracia e ao liberalismo na América Latina.

Destaco e adiante comento estes textos porque nos ajudam a melhor compreender o liberalismo adotado por Vargas Llosa e também, à parte variantes acidentais, Octavio Paz, a quem dedica um belo artigo intitulado “A Linguagem da Paixão”, e José Guilherme Merquior. Cito nominalmente estes por se distinguirem há décadas entre os grandes intelectuais latino-americanos na defesa de políticas liberais como solução gradual para os problemas crônicos de atraso e subdesenvolvimento que tanto marginalizam nosso subcontinente no contexto do capitalismo globalizado. Assim procedendo, opuseram-se corajosamente ao que o comunismo cubano representa como expressão de caudilhismo político e violação sistemática dos direitos humanos. Quando lembramos que a maioria dos nossos intelectuais, dentro e fora das universidades, ainda reluta em tomar posição contra a persistência do comunismo cubano, para não mencionar os que simplesmente insistem em apoiá-lo, não é de espantar que sua postura liberal tenha provocado tanta incompreensão crítica, não raro também intolerância caluniosa. Embora combatam com igual veemência as ditaduras de direita, este fato, como seria previsível, não os isenta dos ataques procedentes de ambos os lados. Afinal, esta é uma verdade tão antiga quanto a política: quem ousa opor-se aos extremos acaba apanhando de ambos.

“Confissões de um liberal” é o texto de uma palestra proferida por Vargas Llosa no American Enterprise Institute for Public Policy Research na oportunidade em que lhe foi outorgado o prêmio Irving Kristol. Depois de salientar que pela primeira vez, ao lhe conferirem o prêmio, lhe reconhecem a unidade ou coerência que sempre procurou realizar no homem e na obra, na literatura quanto na identidade política, Vargas Llosa acentua a imprecisão do conceito de liberal.

Começa por fixar a distinção observável no emprego do termo na tradição anglo-saxônica e na América Latina – também na Espanha, país que há anos lhe concedeu cidadania quando foi expatriado do Peru por combater uma de suas ditaduras costumeiras. Na primeira o termo tem conotações de esquerda, sendo por vezes associado ao socialismo e ao radicalismo político. Já na segunda tradição o termo sofreu um processo singular de perversão semântica, sobretudo quando consideramos sua última variação, o neoliberalismo. No Brasil ele se converte num insulto ideológico, pois o neoliberal é sempre visto como um conservador ou reacionário, adepto desprezível de toda política privatista geradora da opressão imposta aos pobres do mundo. Em suma, é um chavão usado em bloco por todo esquerdista de sindicato ou militante acadêmico. Confundir o liberalismo de Vargas Llosa, Octavio Paz e Merquior, por exemplo, com as políticas adotadas por gente como George Bush, ou com a política externa norte-americana tout court, é mais que um erro de apreciação ideológica, é incorrer na corrupção leviana da linguagem política.

O conceito se torna ainda mais turvo quando os próprios que se definem como liberais divergem entre si, como é aliás frequente. Melhor dar a palavra ao próprio Vargas Llosa, que num parágrafo exemplar ressalta os traços fundamentais do liberalismo que defende:
“Como o liberalismo não é uma ideologia, ou seja, uma religião laica e dogmática, mas sim uma doutrina aberta que evolui e se adapta à realidade em vez de procurar forçar a realidade a se adaptar a ela, há entre os liberais várias tendências e profundas divergências. No que diz respeito à religião, por exemplo, ou aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, ou ao aborto. Assim, os liberais que, como eu, são agnósticos, partidários da separação ente Igreja e Estado e defensores da descriminilização do aborto, bem como do casamento homossexual, são às vezes criticados com dureza por outros liberais que, nesses assuntos, pensam o contrário de nós. Tais divergências são saudáveis e produtivas, pois não ferem os pressupostos básicos do liberalismo que são a democracia política, a economia de mercado e a defesa do indivíduo frente ao Estado”. (p. 301).

A citação um tanto longa parece-me bem esclarecedora do liberalismo adotado por Vargas Llosa. Ele consiste fundamentalmente na afirmação integrada dos três pressupostos anotados ao final do parágrafo. Compreendendo-os de forma integradora, não incorre na adoção do liberalismo puramente econômico, que tudo entrega às forças do mercado. Pelo contrário, critica em termos veementes esta forma parcial de liberalismo, que na sua perspectiva precisa associar-se à democracia política. Como afirma sem meias palavras, o que distingue a civilização da barbárie não é a liberdade de mercado, não importando o quanto seja eficiente, mas a cultura consistente de um corpo de ideias, valores, crenças e costumes compartilhados em termos democráticos. Se o mercado for entregue a suas forças competitivas cegas, produzirá riqueza, mas sempre ao preço de uma batalha darwiniana, como frisa citando em seguida Isaiah Berlin, um dos teóricos supremos do liberalismo: “os lobos comem todos os cordeiros”.

Além de ressaltar a liberdade como expressão maior do liberalismo que postula, Vargas Llosa coerentemente sublinha a defesa fundamental do indivíduo perante os poderes do Estado. É em nome desse valor supremo, a liberdade individual, que assinala a tolerância como medida civilizada da nossa relação com o outro, sobretudo o outro que nos nega, que pensa diferentemente de nós. Afinal, é fácil concordar com quem conosco concorda. A liberdade individual e a tolerância cívica se expressam antes de tudo diante do diferente, do que pensa diferentemente de nós. Como disse Rosa Luxemburgo, uma comunista libertária, a liberdade é sempre e exclusivamente a liberdade de discordarem de nós.

O problema do comunismo, para aludir aqui a uma ideologia de esquerda que exerceu poderosa influência sobre os intelectuais e camadas mais críticas das sociedades ocidentais, é que ele, pelo menos em termos práticos, baseou a liberdade na realização da igualdade econômica, além de abolir o Estado burguês embalado pela utopia da extinção do Estado de classe. Ora, o que ele de fato realizou foi a instituição do Estado totalitário a partir do momento em que suprimiu as liberdades civis sob o pretexto de que não passavam de liberdades burguesas. Isso é tão verdadeiro que os melhores comunistas brasileiros precisaram amargar no nosso país uma ditadura militar para aprenderem a importância dessas liberdades, que não podem ser confundidas com valores da classe burguesa. Elas representam nossa defesa última contra o poder do Estado que ameaça nossa autonomia individual.

É dentro do contexto acima que me inquieta, numa dimensão em último caso política, a difusão de uma cultura narcisista, votada ao espetáculo do consumo hedonista, que induz as pessoas a renunciarem à sua liberdade, à defesa de sua vida privada que, reitero, constitui nossa defesa última contra os poderes do Estado. Essa renúncia é bem patente neste trocadilho penetrante: evasão da privacidade. Rendidas ao desejo de aparecer, de usufruir os 15 minutos de fama cronometrados na famosa boutade de Andy Warhol, as pessoas tudo negociam, relembrem o caso exemplar de Geisy Arruda, para conquistarem uma ilusória sensação de importância passível de removê-las das vidas insignificantes que sofrem. Essa renúncia à liberdade individual, servilmente negociada no palco ou passarela onde desfilamos nosso narcisismo insaciável, constitui, no meu entender, uma das mais graves ameaças à liberdade no mundo em que vivemos. Portanto, não é por motivações estreitamente moralistas que a critico, mas por considerar o valor político que em última instância encerra.

Vargas Llosa dedica alguma atenção à cena política e cultural brasileiras quando de algumas passagens pelo país. Louva a política liberal adotada por Lula – o que é fato, não obstante o foguetório retórico deste e de muitos que o apoiam – ao mesmo tempo em que duramente o critica pelos passos mais desastrosos de sua política externa. Para ser mais preciso: critica-o quando posa sorridente ao lado de Fidel Castro, emprestando assim apoio público ao ditador no momento em que este golpeava de morte os direitos humanos de prisioneiros políticos da ilha.

É sem dúvida admirável a tenacidade com que, ao longo de uma longa vida, Vargas Llosa combate em defesa da liberdade compreendida dentro dos termos liberais que procurei esboçar neste artigo. O melhor evidentemente é o leitor conferir com seus próprios olhos os fundamentos do liberalismo que adota atentando em particular para os dois textos acima referidos. Melhor ainda é antes remover a névoa dos preconceitos que contaminam as apreciações ideológicas sobre o liberalismo correntes no nosso meio. Confundir o liberalismo de Vargas Llosa, por exemplo, com o da esmagadora maioria dos nossos políticos, dentro quanto fora do congresso, é apenas concorrer para turvar ainda mais essas águas que somente uma autêntica cultura política poderia adequadamente iluminar.

Por fim, restaria assinalar que Vargas Llosa, dentro da sua tenacidade combativa, é um dos últimos representantes de uma espécie em vias de extinção: a do intelectual público, empenhado na luta das ideias e na defesa das liberdades fundamentais do indivíduo ou ainda dos valores humanos invocados por uma longa tradição humanista que aparenta atravessar um declínio irreversível. Russell Jacoby escreveu há alguns anos um livro, The Last Intellectuals, devotado a essa questão na cena cultural americana. Nele demonstra, em síntese, o processo que deslocou os intelectuais da cena pública (bastaria lembrar nomes como Edmund Wilson, Lionel Trilling e Norman Mailer) para o refúgio da academia, onde hoje entretêm teorias complicadas e radicalismo de cátedra para consumo dos próprios pares, como um jogo de castália praticado em nichos impenetráveis à participação mais ampla do povo no reino da cultura letrada. Vargas Llosa, assim como seus parceiros liberais antes mencionados, Octavio Paz e Merquior, constitui a negação dessa realidade que tende a se impor cada vez mais.
Recife, 24 de dezembro de 2010.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Vargas Llosa e o Nobel




Vargas Llosa foi enfim agraciado com o Nobel de Literatura, o que é de justiça, ainda que tardia. Sabemos que o Nobel com frequência sobrepõe critérios políticos aos estéticos, que no meu entender deveriam ser prevalecentes. Isso fica evidente quando acaso corremos os olhos pela lista dos premiados, não poucos desconhecidos por grande parte do público universal da literatura. Além de conhecidos e apreciados numa esfera restrita, logo mergulham no esquecimento mal a repercussão momentânea decorrente do prêmio se dissolve na mídia e no mercado editorial. Bastaria a propósito observar os nomes destes premiados a partir de 2000: Gao Xingjian, Imre Kertész, Elfriede Jelinek, Orhan Pamuk, Herta Müller. Quem de fato os conhece no Brasil e em grande parte do mundo ocidental, incluídas suas extensões periféricas?

O leitor pode discutir os méritos estéticos da obra de Vargas Llosa, assim como os discutem alguns críticos que lhe depreciam a obra no que encerra de filiação ao realismo típico do romance novecentista. Ressaltando o quanto os condicionantes políticos e ideológicos perturbam apreciações dessa natureza, acrescentaria que Vargas Llosa é combatido antes de tudo devido à natureza ideológica do discurso com que desde a juventude intervém no debate público.

Até recentemente o intelectual procedente da América Latina se distinguia como intelectual público. Até mesmo Borges, o mais atípico e livresco rebento dessa tradição, teve sua obra e biografia momentaneamente subordinadas à força imperativa dessa circunstância político-cultural. Já que seu nome veio à baila, importa lembrar que morreu sem ganhar o Nobel, erro que o atual presidente da Academia Sueca é o primeiro a reconhecer. Vargas Llosa constitui um dos exemplos mais vivos e constantes do intelectual militante, tão constante, aliás, que teimosamente se destaca como um dos últimos sobreviventes dessa espécie em vias de extinção. Autor de obra e notoriedade precoces, literatura e apaixonada participação política se entrelaçam no desdobramento de sua biografia.

Por que Vargas Llosa é tão combatido no Brasil e sobretudo no Peru, seu país de origem? Antes de tudo, por se opor ao comunismo e a ditaduras de direita e esquerda tão comuns na história da América Latina. Na juventude aderiu ao marxismo e apoiou entusiasticamente a Revolução Cubana. Não obstante, ousou discordar desta quando os fatos passaram a comprovar o desvio ditatorial contraditório dos ideais libertários que antes justificavam sua adesão.

Como é também típico da história intelectual latino-americana, Vargas Llosa formou-se tendo como modelo a cultura parisiense. Espelhou-se antes de tudo em Sartre, o grande mandarim da inteligência de esquerda entre as décadas de 1950 e 1970. Quando eclodiu a histórica polêmica entre Sartre e Camus (documentada num livro de Vargas Llosa: Contra Vento e Maré), Vargas Llosa tomou o partido do primeiro. Anos mais tarde, depois de um percurso acidentado, que passa da adesão ao comunismo e à Revolução Cubana à crítica das utopias de esquerda e conversão combativa ao liberalismo, Vargas Llosa dá enfim razão a Camus.

É curioso o fato de que, escrevendo sobre Sartre no remoto ano de 1964, quando este provocou momentosa polêmica ao recusar o prêmio Nobel de Literatura, Vargas Llosa o aprecie em termos que anos mais tarde, também hoje, se encaixam perfeitamente na imagem controvertida que seus críticos traçam dele próprio. Vale a pena conferir: “Sartre não facilita a tarefa dos críticos, obriga-os a correr, a ir e vir, a experimentar cada vez novas algemas para prendê-lo. O que não perdoam nele é a sua condição de franco-atirador, sua independência de julgamento, sua atitude alerta, sua imprevisibilidade, seu inconformismo. Nem a direita nem a esquerda conseguiram ´oficializá-lo`: por isto o atacam com tanta virulência”. (Mário Vargas Llosa, Contra Vento e Maré, p. 55).

Salvo o fato de que a virulência cedeu no tom e no ímpeto, sintoma do abrandamento dos antagonismos ideológicos na cena intelectual do presente, a citação acima aplica-se perfeitamente ao percurso ideológico de Vargas Llosa. Ele e Octavio Paz foram dos primeiros, vale a pena lembrar aqui o exemplo de José Guilherme Merquior no contexto brasileiro, que se reconciliaram com a melhor tradição liberal para combater Cuba e os movimentos de esquerda e direita na América Latina. Assim procedendo, como seria previsível, pois a história ideológica está saturada de exemplos semelhantes, foram atacados por ambos os lados. Mas é sempre difícil, salvo para os intolerantes e dogmáticos indiferentes aos fatos impositivos da realidade, acomodá-los num extremo ou noutro. Afinal, ambos aderiram ao liberalismo não para justificar regimes opressivos de direita, não para se acomodarem às iniquidades da nossa história social e política, mas para denunciarem a desigualdade e a injustiça produzidas tanto à esquerda quanto à direita.

Vargas Llosa esteve muitas vezes no Brasil e muito conhece da nossa tradição social e literária. Quando escreveu A Guerra do Fim do Mundo, ampla narrativa inspirada no grande clássico de Euclides da Cunha, fez demorada viagem de pesquisa através do sertão da Bahia. Antes disso leu muito sobre o Brasil, em particular sobre essa guerra que vincou de modo traumático o início da nossa história republicana e sobrevive na nossa memória social como uma das evidências mais brutais de extermínio de uma sofrida fração do nosso povo incendiado por um ideal utópico inspirador de resistência inédita na história dos nossos conflitos sociais. Seu romance é antes de tudo uma recriação ficcional do messianismo primitivo do sertanejo brasileiro e da intolerância ideológica que resulta em cegueira mútua: cegueira dos seguidores de Antônio Conselheiro, transfigurados pelo delírio utópico do beato; cegueira dos adeptos intolerantes da República, que erradamente figuraram a resistência de rebeldes miseráveis como se fosse um movimento de restauração da monarquia associado até ao capitalismo inglês.

Durante muito tempo Vargas Llosa afirmou que A Guerra do Fim do Mundo era o melhor romance que tinha escrito. Outros no entanto preferem Conversa na Catedral. Ele próprio, crítico literário refinado e grande manipulador das técnicas narrativas, reconhece o quanto escolhas dessa natureza são discutíveis. Uma coisa, porém, continuou sustentando: A Guerra do Fim do Mundo foi o romance que mais lhe deu trabalho e portanto lhe consumiu energia e imaginação recriadora dos eventos e documentos pesquisados.

O Paraíso na outra Esquina, belo título de romance, foi um projeto que Vargas Llosa nutriu durante muito tempo. Embora somente publicado em 2003, já por volta de 1985 a figura extraordinária de Flora Tristán, protagonista feminina da obra, já o fascinava. Avó do grande pintor Paul Gauguin, ambos dividem o conjunto dessa extensa narrativa que desdobra em linhas paralelas suas vidas desenhadas em capítulos justapostos. Parece-me pertinente afirmar que esse romance constitui outra variação ficcional das frustrações e desastres germinados pela imaginação e ideais utópicos dos personagens. Flora foi sem dúvida uma mulher extraordinária, admirável precursora dos movimentos feministas numa época cuja intolerância com relação a tais ideias o leitor pode facilmente desenhar. Quanto a seu neto, Gauguin, renunciou às vantagens e conveniências da vida burguesa em Paris ao migrar para o Taiti em busca de um sentido de vida liberto das convenções civilizadas em meio a povos e culturas remotas e aderentes ao mundo da natureza.

Outro dos romaces recentes de Vargas Llosa que merece registro num breve artigo de circunstância é Travessuras da Menina Má. Este é um romance de rica e envolvente ação. Narrando os encontros e desencontros amorosos de Ricardo e Lily, que se conhecem ainda adolescentes no Peru, o livro se estende através de décadas movimentadas e turbulentas num percurso que compreende a Paris revolucionária dos anos 1960 e a swinging Londres do mesmo período (não seria arbitrário concluir que uma substancial fração dessa parte da narrativa é projeção da própria biografia do autor); a cultura hippie associada à liberação do sexo e da droga; a Tóquio dos mafiosos e por fim a conturbada atmosfera de Madri durante a transição política dos anos 1980. A meio disso, as contínuas e desconcertantes mutações de Lily, a menina má, podem ser lidas como expressão literária de um mundo cultural regido pela mudança acelerada e atordoante. Daí se desprendem nossas incertezas tão dolorosas, as identidades confusas que vestimos e logo trocamos e logo perdemos ou simplesmente rejeitamos, pois Lily não tem sequer identidade nominal estável.

Por fim, acrescentaria meu apreço pelo crítico literário e pelo infatigável artesão das formas narrativas que Vargas Llosa tem espelhado em obras como A Orgia Perpétua (1979), La Verdad de las Mentiras (2002) e Letters to a Young Novelist (2002). Peço desculpas ao leitor por citar edições em línguas e datas divergentes das edições brasileiras correntes. É que recorri exclusivamente aos livros que tenho à mão. Repetindo o que já escrevi na primeira linha deste artigo, o Nobel faz enfim justiça, ainda que tardia, ao grande romancista, intelectual público e homem de pensamento e ação Mário Vargas Llosa.
Recife, 9 de outubro de 2010.

sábado, 24 de julho de 2010

Variações sobre a Solidão


Também fui leitor de Hemingway. Não dos mais entusiastas, mas fui. Quem hoje o lê? Meu preferido é The sun also rises (O Sol também se levanta), que fui incapaz de compreender à primeira leitura. Era ainda leitor jovem e bem limitado. Precisei ler mais tarde um belo ensaio de Otto Maria Carpeaux, de longe o mais erudito crítico que tivemos. Nesse ensaio, que lembro vagamente, Carpeaux procede a uma apreciação altamente positiva da obra de Hemingway sublinhando a precisão e objetividade do seu estilo, que então fez escola, e distinguindo The sun also rises como o romance fundador da moderna ficção americana; não porém sua obra mais importante, distinção que confere a Farewell to arms (Adeus às armas). Carpeaux procede então a uma interpretação iluminadora do romance. Lendo-a tive uma outra percepção da obra e então, vexado de minha ignorância, cuidei de a reler como se a lesse pela primeira vez. Mas seu romance de maior repercussão foi provavelmente For whom the bell tolls (Por quem o sino dobra).

Chega de divagação. Afinal, o parágrafo acima não passa de pura divagação, já que meu propósito não é escrever sobre Hemingway, mas sobre a solidão. Se Hemingway veio à tona, foi apenas devido ao fato de eu haver antes pensado em algumas palavras célebres assinadas por John Donne, palavras que inspiraram o título do romance de Hemingway sobre a guerra civil espanhola. Voltarei às palavras de Donne que importam.

A solidão é algo que sempre me interessou, talvez por estar tão enraizada na minha vida. Mais que isso, acredito que está enraizada na vida de todo ser humano, portanto na nossa própria condição. Em “La dialéctica de la soledad” – apêndice constante de El laberinto de la soledad – Octavio Paz ressalta sua importância crucial na nossa existência ao frisar que nossas experiências extremas, nascer e morrer, fundam-se na solidão. Nascemos e morremos sozinhos, é isto que certeiramente frisa. Nunca mais esqueci este fato tão evidente, tão revelador da nossa condição solitária, e todavia tão ignorado ou imperceptível. Este belo ensaio de Octavio Paz, que muitas vezes reli no curso de minha vida com admiração inalterável, é um dos pontos culminantes do gênero, de resto tão ambíguo quanto a natureza humana. Aludindo tão-somente a ensaios mais curtos, acomodáveis nos limites de um capítulo de livro, ocorre-me lembrar um outro de valor equivalente: To please a shadow, de Joseph Brodsky, inspirado por Auden,a quem Brodsky distingue como o maior e mais inteligente poeta do século 20. Mas continuo divagando.

As palavras de Donne que agora transcrevo apontam para o oposto da solidão, para uma dimensão de humanismo abstrato passível de dela nos salvar: “Any man´s death diminishes me, because I am involved in Mankind; and therefore never send to know for whom the bell tolls, it tolls for thee”. Minha transcrição é baseada no Dicionário Universal de Citações, de Paulo Rónai. Cotejei-a em seguida com o ensaio de Carpeaux e então notei variantes que deixo apenas assinaladas. Traduzindo livremente, o que Donne quer dizer é que a morte de qualquer ser humano nos afeta, pois somos parte da humanidade, pois em cada ser humano pulsa uma fração de humanidade comum a todos nós. Daí a verdade segundo a qual o sino que dobra como um ritual de morte do nosso semelhante dobra também por cada um de nós.

Durante minha juventude impregnada de humanismo de esquerda - qualificativo de amplo espectro que neste contexto inclui influências marxistas, liberais e católicas – acreditei profundamente no ideal de solidariedade abstrata implicado nas palavras de Donne que, como se sabe, inspiraram o romance famoso de Hemingway. A própria leitura do romance - também o filme nele baseado, que vi comovido diante da beleza de Ingrid Bergman – reforçou na minha consciência a crença na solidariedade do gênero humano. Hoje não mais acredito em nada disso. Acredito, sim, que há ainda, como sempre houve, seres humanos excepcionais capazes de renunciar à tirania do egoísmo dominante na espécie em favor da doação solidária orientada para o próximo. Isto é verdadeiro em escala quantitativamente modesta, portanto não anula em nenhum sentido a raiz solitária de nossa condição penetrantemente analisada no ensaio de Octavio Paz. Mais que a crença na revisão que faço destas considerações abstratas, importa o metro da experiência vivida. Se nele me detenho, não reluto em afirmar minha condição solitária. Não apenas aquela universal e abstrata, acima indicada, mas a mais rotineira e sensível inscrita no meu percurso biográfico. Sou solitário não apenas por reconhecer em mim a condição solitária que partilho com todo ser humano, e bem identifico nos extremos da existência enfatizados por Octavio Paz, mas também por tocá-la e vivê-la em muitas circunstâncias de minha vida.

Sou solitário, por exemplo, na doença. Como todo mundo, já adoeci. Mais que isso, fui vítima de doença grave. Mais que o medo da morte, na juventude, a doença revelou-me o desamparo da solidão, a indiferença dolorosa das pessoas nas quais presumia poder apoiar-me. Elas me faltaram. Por dever de justiça, antes de tudo de memória generosa, que comigo espero conduzir ao limite último de minha vida, a indiferença daqueles em quem em vão busquei apoio foi contrabalançada por uma solidariedade absolutamente inesperada, já que procedente de pessoas que sequer então conhecia. Acima das muitas que em circunstâncias penosas me ampararam, lembraria Ednaldo Batista, médico de bondade humana rara e talvez em vias de extinção imposta pela crueldade da medicina mercantil hoje generalizada. Ednaldo e Rejane, minha namorada, apareceram na minha vida num momento em que me via privado de tudo: saúde, emprego, residência, fortaleza moral e psíquica para suportar a situação extrema em que me vi mergulhado. Não fossem eles, a meio de circunstâncias tão adversas, não sei o que teria sido de minha vida. Por isso devoto-lhes minha gratidão que, reitero, espero sobreviver na medida em que eu próprio sobreviva.

Somos solitários no amor quando o amor nos abandona, ou trai, ou simplesmente acaba. Quem já não sofreu em algum grau essa forma de solidão? Refiro-me não só ao amor passional, o que nos ata a uma mulher, mas ao amor dos amigos, ou dos que tal supomos. O amor, quando excepcionalmente verdadeiro, é falível como toda forma de experiência humana. Por isso nos falha ou nos falta quando nos trai por vias imprevisíveis e obscuras. Quando assim nos castiga, no cerne da dor e da perda novamente defrontamos a sombra opressiva da solidão, da solidão dos que amam para perder.

Considerem, por exemplo, o amor que os pais de ordinário devotam aos filhos. Não duvido da sinceridade com que o vivem. Apenas acredito que com frequência amam de modo errado, por vezes com consequências desastrosas para o que eles, os filhos, serão na vida. Se amássemos com um pouco de discernimento e clarividência, aprenderíamos que amamos nossos filhos não para retê-los na rede do nosso egoísmo, do narcisismo que neles projetamos para que na vida realizem o que não pudemos ou desejamos ser. Houvesse um pouco mais de altruísmo e lucidez no amor dos pais, não tenho dúvida de que amariam para perder os filhos. Amariam para entregá-los à vida tão somente amando-os para que as vivessem, as vidas que são deles e intransferivelmente deles, do melhor modo possível.

Aprendi a duras penas o quanto esses modos de amor são inconstantes e vulneráveis. Aliás, em muitos casos eles sequer existem de fato. Se os tomamos como reais, é porque carecemos de neles acreditar. De resto, em país de laços tão frouxos quanto o nosso, onde qualquer conhecido transitório ou companheiro ocasional de farra é levianamente confundido com um amigo, a amizade é transacionada e esquecida a troco de bem pouca coisa.

Há uma ordem de solidão que se manifesta em situações rotineiras de nossa vida. Estamos todos os dias sozinhos: no sono, também na vigília, no vaso sanitário, nas apreensões palpáveis ou imaginárias que sofremos. Estamos sobretudo sozinhos na massa, em todos os tipos de massa concebíveis e rotineiramente presentes na sociedade que é por definição... de massas. Estamos sozinhos diluídos nas massas errantes e moventes das grandes cidades. Estamos sozinhos nos megashows onde regredimos à nossa ancestralidade tribal. Estamos sozinhos nos estádios de futebol, nas grandes celebrações coletivas. Estamos sozinhos nos bares e clubes bêbados de gente ruidosa e vazia. Estamos sozinhos diante do sexo que é hoje vendido e barateado em toda a sorte de comércio humano. Estamos sozinhos na cama onde todas as noites dormimos, mesmo quando acompanhados por imposição de cadeias legais que somos incapazes de romper. Estamos sozinhos na noite, na noite imensa dentro da qual vagamos sob o peso e suor do cansaço de um dia inutilmente gasto. Estamos sozinhos dentro de carros que rolam através de ruas indiferentes, ou ainda quando engavetados na maré congelada do trânsito que paralisa a cidade sem alma. Estamos sozinhos ao lado do vizinho com quem dividimos paredes grudadas, mas totalmente incomunicáveis. Estamos sozinhos diante do outro que amamos e todavia incompreendemos na mesma e insolúvel medida em que ele nos incompreende. O homem solitário, não esse das massas temerosas da própria sombra individual, mas o homem que se sabe solitário, irremediavelmente solitário, mas antes de tudo senhor de sua solidão, este é o que melhor preza o amor, a amizade, a vinculação solidária ao outro que por vezes nos salva da consciência de que somos sozinhos e sozinhos morreremos.
Recife, 20 de setembro de 2008.