quinta-feira, 28 de julho de 2011

Octavio Paz



Morte de Octavio Paz. Para mim, ele é o ensaísta supremo da América Latina neste século. Especifico o ensaísta por considerá-lo superior ao poeta. El Laberinto de la Soledad, acima de qualquer das suas muitas obras, é um livro ao qual sempre retorno. Refiro-me mais exatamente ao capítulo “La dialéctica de la soledad”, que reli incontáveis vezes e estou certo de que continuarei relendo com o mesmo encantamento resultante da sua densidade analítica e do primor formal do estilo de Paz. Muitas vezes recomendei este capítulo à leitura de amigos, sobretudo de amigas, interessados no assunto – a solidão relacionada à sua negação, o amor. Octavio Paz aí demonstra, com rigor e claridade expressiva, ser um autêntico mestre da argumentação dialética, que muitos tolos presumem indissociável do marxismo.

Dois outros livros seus – livros novamente de ensaísta, no caso empenhado em elucidar temas de estética e história literária com a consistência argumentativa do crítico da cultura – também me parecem fundamentais: El Arco y la Lira e Los Hijos del Limo. Em Tiempo Nublado – livro menor, mas também obrigatório para quem deseje conhecer as muitas faces do ensaísta – Octavio Paz volta-se corajosamente para o domínio da crítica política e ideológica. Digo corajosamente porque ele, ao lado de Mario Vargas Llosa e de José Guilherme Merquior, foi dos poucos que ousaram criticar com argumentos de peso, e de modo algum conservadores, a sólida hegemonia de esquerda na cultura latinoamericana que, no caso brasileiro, se encorpa a partir da década de 1930. Para que se tenha ideia dessa hegemonia, ainda hoje, no cenário do pós-socialismo real, vemos intelectuais do porte de Antonio Candido justificando ideologicamente a ditadura de Fidel Castro, aparentemente decidido a sobreviver exercendo o poder até o último suspiro, ou charuto.

Se no Brasil Merquior foi sempre desprezado e com frequência difamado por essa hegemonia, no contexto mexicano Paz sofreu problemas ideológicos similares. Durante meus anos passados na Universidade de Essex fiz vários amigos mexicanos, quase todos ligados ao Departamento de Ciência Política. Sendo todos de esquerda, novamente a hegemonia em cena, hostilizavam Octavio Paz. Um desses amigos, David Davila-Villers, odiava-o ao ponto de recusar-se a admitir um fato facilmente verificável: em 1968 Octavio Paz renunciou ao cargo de embaixador do México na Índia em sinal de protesto contra a repressão imposta pelo governo do seu país aos estudantes de esquerda. Intolerância cega gente de todos os níveis mentais.

Itinerario, publicado em 1993, pode ser lido como uma biografia intelectual condensada de Octavio Paz. Comprei-o e li-o no início de 1995, quando fiz breve visita a Buenos Aires. Minhas impressões acerca deste livro delicioso, quase todo fruído num modesto quarto de hotel, estão anotadas no diário de viagem que então redigia: De Cidade y Ciudad.

Octavio Paz morre quase ao mesmo tempo em que, no Brasil, morre o político Sérgio Motta, figura proeminente do ministério de Fernando Henrique Cardoso. Embora tenha executado medidas políticas fundamentais à frente do Ministério das Comunicações, concorrendo assim para arejar o setor corroído pelas forças do estatismo parasitário que sustenta nosso indignante atraso social, Sérgio Motta é volátil como uma folha de grama exposta a ventos e marés. Sendo assim, coincidem, ele e Paz, apenas na dimensão da morte material, já que o político também se dissipa enquanto entidade espiritual. Octavio Paz, contrariamente, sobrevive. A matéria contingente, essa se dissipa, seja ela o corpo de Paz, de Sérgio Motta, de Ava Gardner, Ingrid Bergman, o rabo da última gostosa vendida na capa da Playboy, ou qualquer outro corpo.

O privilégio do grande artista, do criador de grandes obras espirituais, seja o poema, a canção, o romance, o sistema filosófico ou religioso, é sobreviver na obra que lega à posteridade. Sócrates, Jesus Cristo, São Francisco de Assis, Shakespeare, Marx, Freud, Montaigne, Bach, Tom Jobim, Machado de Assis, Cervantes, Michelangelo, Turgueniev, Conrad e muitos outros são forças vivas e atuantes no cerne da vida contemporânea. Sobrevivem, portanto, à morte física na obra espiritual que nos legaram. É por isso que não lamento a morte recente de Octavio Paz. Sequer sinto a sua falta. Como iria eu sentir a sua falta, se viveu sempre no meu espírito e nas prateleiras da minha biblioteca desde o primeiro momento em que o li?

Diário - Recife, 20 de abril de 1998.

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