segunda-feira, 25 de julho de 2011

O autor e a obra



“On Paul Goodman” é o título do ensaio no qual Susan Sontag generosamente celebra a morte de um intelectual eminente na cena cultural americana da década de 1960. A eminência de Goodman não se prolongou até o Brasil e se vai esbatendo nos próprios Estados Unidos. Sendo assim, diria que o ensaio importa mais devido à apreciação generosa da autora do que ao valor intrínseco do objeto. A generosidade a que me refiro transparece no descompasso entre a apreciação restritiva feita ao homem Paul Goodman e a excelência da obra por este produzida. Pois, ao mesmo tempo em que naquele acentua negativamente os traços de misoginia, infantilismo sexual e antipatia no convívio, Susan Sontag ressalta o significado renovador da obra no contexto liberador dos anos sessenta e na sua própria formação.

A tensão e o descompasso entre o homem e a obra estão sobretudo vincados nesta passagem: “I suspect there was a nobler human being in his books than in his life, something that happens often in ´literature`. (Sometimes it is the other way around, and the person in real life is nobler than the person in the books. Sometimes there is hardly any relationship between the person in the books and the person in real life.)” (Under the sign of Saturn. New York: Farrar, Straus, Giroux, 1980, p. 9).

Acredito que a situação mais frequente é a primeira, que de resto pontua, como ficou já evidente, o desenvolvimento do ensaio. Embora muito restritamente tenha convivido com intelectuais e artistas, deles provei o suficiente para frisar a frequência com que a obra supera o autor. Ousaria generalizar ainda mais afirmando que a humanidade mais verdadeira e significativa desse animal egocêntrico – mon semblabe, mon frère – reside na obra criada e não na vida vivida. Por isso há muito abrandei meu interesse e fascínio pelo convívio com intelectuais e artistas. O melhor é sem dúvida conhecer-lhes a obra, pois que nela imprimiram o melhor da sua humanidade tantas vezes falhada ou impraticável. Os poetas amam melhor com a palavra do que com o corpo e o que do espírito sobre este se deposita. Mesmo quando tenham vivido generosamente, e não nego que muitos o tenham feito, os intelectuais sublimam na obra produzida os desacertos de sua humanidade insensata.

Talvez a própria natureza dessas práticas humanas – a criação do romance ou do poema, assim como a solidão criativa do ateliê ou da biblioteca -, somada a seus modos específicos de inserção na sociedade contemporânea, concorra de forma decisiva para a acentuação dos traços narcisistas inscritos sobre a pele do artista. Bach e outros gênios anteriores ao advento do capitalismo gerador de um mercado cada vez mais poderoso destinado à circulação da obra convertida em mercadoria altamente rentável, Bach e esses outros foram homens comuns humildemente anexados à propriedade da nobreza tradicional ou da Igreja insaciável no exercício de um patrocínio artístico que lhe reforçava os mecanismos de dominação. Qualquer desses artistas contemporâneos – sobretudo os que operam no circuito da cultura de massa, onde são venerados como deuses – seria um pobre diabo dentro do sistema cultural que precedeu o capitalismo.
Concluindo com uma imagem pouco original, existem duas vias de circulação através da casa da arte: enquanto uma conduz à sala de recepção onde o artista tagarela sua humanidade narcisista ou simplesmente banal, a outra leva à biblioteca com ramificações para a sala de audição, a galeria de arte, a comunhão com a obra purificada das contingências aderentes ao ser que a produziu. Que visitante insensato escolheria a primeira via?
Diário - Recife, 6 de março de 1998.

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