terça-feira, 12 de julho de 2011

Solidão e Poesia



O espetáculo do mundo me desgosta. Por isso meu mundo pessoal cada vez mais se fecha dentro das paredes do meu apartamento. Mesmo os raros e mais íntimos amigos frequento-os quase que exclusivamente por telefone. Os que me telefonam, cada vez menos, pesam para que decisivamente desanime de atender as chamadas do aparelho. Limpe a chaminé cuja fuligem e gás tóxico provêm do seu inconsciente, como Freud recomendava, sem ao mesmo tempo esquecer de filtrar a poluição que vem de fora, da rua e dos habitantes que de ordinário envenenam nossa precária saúde.

Essa gente – não aludo aos amigos, convém frisar - entra pela minha casa através do fio e de ordinário me solicita a ouvir as mesmas e previsíveis lamúrias. São egos feridos mordendo complacentemente a própria egolatria contrariada pela insensata desordem do mundo. Não se dão conta, aparentemente, do quanto concorrem para agravar a desordem que confessam lastimar. Muitas vezes, ao longo dos anos, sofri de compaixão por essa gente, a que integrava de modo direto meu mundo de convivência assim como a gente mais geral e abstrata. Hoje admito pouco sofrer dessa compaixão que tanta dor íntima e inconfessada já me causou. Hoje a insensatez do meu semelhante me causa antes desgosto que compaixão. Ademais, de que lhe serviria a compaixão de um homem que menos e menos entende o mundo ou se dispõe a acolhê-lo tal como é? Isto é, tal como sou.

Venho de mais de uma semana de solidão deliberada em Porto de Galinhas. Alegando precisar de um refúgio contra a fumaça infernal das fogueiras de São João e São Pedro, essa excrescência das tradições rurais que envenena o ambiente urbano nordestino, pedi a meu amigo Marcelo Guerra as chaves do seu apartamento e peguei a estrada. Embora a alegação fosse verdadeira, viajei para Porto de Galinhas antes de tudo para me refugiar das próprias situações de convívio a que me vejo exposto.

Oito dias de completa solidão na praia. Adoro ficar em Porto de Galinhas nesta época do ano. A temperatura é branda, o céu enxutamente luminoso, embora sobrevenham as chuvas que aliás me parecem moderadas, não obstante sejam chuvas de inverno. Moderadas ou não, não me incomodam. Pelo contrário, amo a chuva no mar. Amo caminhar longamente dentro da chuva seguindo a linha sinuosa das ondas que quebram sobre as areias.

Assim vivi meus oito dias de solidão: longas caminhadas à margem das águas ora sob a luz de um sol ameno, ora molhado dentro da chuva. Lá no alto, as estrelas, belas na sua misteriosa cintilação, a tudo assistiam indiferentes ao enredo que aqui embaixo encenamos entre estupidez e engenho, entre alegria e dor, entre esperança e engano. À parte isso, sentava-me numa cadeira de balanço entre a sala e a varanda durante a maior parte do dia. De lá, desse ponto estratégico, descortinava uma paisagem familiar que mais e mais fui aprendendo a amar através dos anos: a cor quente dos telhados borrando o verde esplendor dos coqueirais. Para além, na linha quase invisível, a rumorosa pulsação do mar. De lá, reaprendia com Alberto Caeiro que o mundo é do tamanho da minha varanda.

O mais importante nesses dias de solidão voluntária foi o tempo dedicado à poesia: a poesia de alguns poetas que amo, que ao longo dos anos me eduquei para amar alheio ao ruído do mundo; a poesia de outros que antes leio do que amo e por fim minha própria e errática poesia. A poesia é por vezes a religião de quem não a tem, ou a filosofia de quem não a sabe. A poesia é a minha cachaça, como um dia escreveu Drummond. A poesia é minha consolação, mas bem mais que isso. Consolação pode sugerir refúgio dos desamparados, ou linha de fuga dos que escavam na aridez da vida a ilusão que seja substitutivo da vida. Mais que consolação, a poesia pode ser uma força única de prospecção passível de iluminar zonas obscuras do ser cuja inconsciência nos sufoca.

Contra os preconceitos convencionalmente românticos colados à produção poética, e lato sensu artística, aprendi que o estado de poesia não é nunca espontâneo, não deriva de qualquer disposição subjetiva por alguns tratada como se fora inspiração, por outros como um talento ou gênio manifestado espontaneamente. Aprendi, pelo contrário, que o estado de poesia é induzido pela leitura continuada dos poetas e pela deliberada integração às forças líricas da existência.

Os dias de recolhimento solitário em Porto de Galinhas mais uma vez me confirmam este fato. Resistente à expressão poética por ausência de trabalho e acomodado distanciamento da corrente lírica da realidade, fui gradualmente me refazendo da ausência de poesia através dos mecanismos auto-induzidos acima indicados: a leitura da poesia e a escavação pessoal que em algum ponto invisível toca e retém a expressão antes imperceptível e silenciada. De tudo isso resultou um conjunto de dezesseis poemas aos quais dei o título geral de Águas Atlânticas.

Posso acaso dizer que me apraz ou me completa o estado de solidão a que me recolhi? Decerto que não. Em mim persiste a convicção de que o ser humano precisa e busca realizar-se no convívio com o outro. Antes de tudo, carecemos de amor. E o amor, não importando o quanto o mova a disposição narcisista de se amar fora de si, ou de se querer ou saber amado pelo outro, o amor mais pleno e verdadeiro é sempre uma doação, sempre um movimento generoso e altruísta do eu para o outro. Mas admito estar cansado ou descrente da possibilidade de exercitar essa expressão única e intraduzível de comunhão com o outro. Quando a vivi, quando tive a graça e a felicidade de vivê-la, fui um homem liberto da solidão egoísta, liberto da incapacidade de comunicação significativa com o mundo.

Mas duvido cada vez mais do atingimento desses estados de amor, seja o amor a que acima mais exatamente me referia, o amor passional atando um homem a uma mulher; seja o amor mais abrangente e difuso, o que antes de tudo se traduz em amizade. Admito, contra o humanismo desprendido, mas ingênuo dentro do qual procurei me realizar como ser humano, que a comunicação significativa com o outro é muito difícil; que é difícil compreendê-lo; que é difícil tocá-lo dissolvendo num gesto ou palavra a sombra compacta que dele me separa. Em suma, é muito difícil compreender e amar meu semelhante, esse ser que não se sabe e na própria insensatez se confunde e quase sempre maltrata ou põe a perder as próprias coisas que mais elevadamente deseja e acredita amar.

Diário - Porto de Galinhas, 1 de julho de 1998.

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