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sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A Arrogância do Futebol Brasileiro


Alguém teve acaso a curiosidade de ler as frases escritas na fachada dos ônibus das seleções participantes da Copa do Mundo? O que atraiu minha curiosidade foi ver hoje numa reportagem do Jornal Nacional, ainda sobre a humilhante derrota do Brasil para a Alemanha, a que escolheram para o ônibus da seleção brasileira: “Preparem-se! O hexa está chegando!” Cotejei-a com as das demais seleções. Quase todas invocam o espírito de orgulho nacional, unidade nacional, exaltação mítica da nação, espírito competitivo e guerreiro, valores enfim previsíveis em um contexto de competição esportiva entre nações.
Embora grande parte dos atletas participantes de fato já não representem seleções nacionais, diluídas pela expansão do capitalismo global (basta pensar na seleção brasileira, integrada por muitos jogadores desconhecidos da nossa torcida), o fato é que a Copa desperta um sentido de orgulho nacional que sobrevive antes de tudo como ideologia. Quero dizer, os valores nacionais que celebramos, ou nossas projeções míticas, não mais correspondem aos fatos que regem o futebol global. Dizendo melhor, grande parte dos jogadores não representa de fato suas nações de origem. São uma legião estrangeira. Se quiserem uma expressão mais forte, são como um exército mercenário, ávido de vestir a camisa do clube que paga melhor. Acabada a Copa, com ou sem título, cada um volta para o seu clube, que no geral nada tem a ver com a nação de origem dos jogadores. E convenhamos: o sonho de todo Neymar, de todo craque brasileiro, é jogar na Europa para conquistar fama e fortuna. Defender a seleção brasileira é apenas a cristalização desse sonho.
Voltando ao assunto inicial, a frase adotada pelo Brasil é muito significativa pelo que contém de previsão arrogante. É a única que dá como favas contadas o grande vencedor, o campeão supremo. O hexa foi anunciado antes mesmo de a Copa começar. Isso diz muito da arrogância que sempre regeu a cadeia emotiva do povo brasileiro, um espírito sempre marcado pela arrogância de ser o melhor. É por isso que mergulhamos sempre no apagão e afundamos na perplexidade quando sobrevém alguma derrota decisiva. Não bastasse tanto, a mídia, de forma praticamente absoluta, despreza a mais elementar noção de critério ético, isto é, de isenção informativa. Por mais discutível que seja a ética regente da ação da mídia, investida de força persuasiva e manipulativa num mundo unificado pela revolução comunicativa, ela precisa atender a um ponto mínimo de consenso irrefutável: a isenção informativa.
É claro que os profissionais do esporte, em qualquer lugar do mundo, cultivam suas paixões individuais irredutíveis, sobretudo as que envolvem competições internacionais. No entanto, o fato de torcer não anula a possibilidade, diria mesmo o dever ético, de preservar na medida do possível o caráter isento da informação. Galvão Bueno, locutor simbólico de todas as participações da seleção brasileira em competições internacionais, desmente de forma deslavada o critério de ética midiática elementar que aqui invoco. Este fato está tão entranhado na nossa mentalidade futebolística que nunca ouvi ninguém, nem o mais isento e consciente dos torcedores, dizer uma palavra sobre essa aberração nacionalista, com freqüência levada ao extremo da incitação à arrogância e desapreço pelos adversários.
No fundo, desde pelo menos o tri-campeonato de 1970, trocamos nosso espírito de vira-lata, como disse Nelson Rodrigues, pelo do “melhor futebol do mundo”. Um pouco de humildade, ou pelo menos realismo, não faz mal nem ao maior dos vencedores. Nesse sentido, a seleção alemã e várias outras nos dão uma lição que não sei se somos efetivamente capazes de aprender, ou sequer perceber. Eis o que diz a frase adotada pela Alemanha: “Uma nação, uma equipe, um sonho!” Talvez eles, os alemães, tenham ainda memória do que lhes custou, também ao mundo, sua utopia racista de cujas entranhas irrompeu a maior catástrofe da história da humanidade. Sei que a analogia é um tanto descabida, mas nos dois casos ela tem a ver com o que o nacionalismo agressivo e arrogante tem de pior, seja no futebol, seja na política. Felizmente nossa arrogância, nosso orgulho nacional, tantas vezes acintoso, fica confinado à esfera do esporte. Mas só um fanático ou um inconsciente encara o futebol, e o esporte em geral, como mera expressão gratuita e louvável do prazer lúdico inscrito na natureza humana. Embora o futebol esteja longe de ser uma guerra, nem por isso deixa de ser uma guerra domesticada pela civilização.
Queria por fim ressaltar duas coisas: 1-Minha convicção, reiterada durante toda essa histeria das massas orquestrada por uma mídia privada de qualquer critério de ética informativa, de que o irracionalismo do rebanho está entranhado no psiquismo humano; 2-O caldeirão do inconformismo popular vai voltar a ferver, infelizmente de forma anárquica, no geral como expressão de revolta sem nenhuma organicidade política. A desintegração humilhante do sonho do título, num país cujas carências são cotidianas e extremas, vai concorrer para agravar a rebelião reativa. Prevejo tais desdobramentos baseado apenas na minha percepção da realidade. Gostaria sinceramente de estar errado, tanto que espero ser desmentido pelo que virá. Mas é isso sinceramente o que prevejo isento de qualquer presunção de adivinho ou derrotado ressentido. Aliás, como ser um derrotado ressentido, se sempre vi e vivi o futebol como ele é para mim: apenas futebol? Minha convicção foi sempre e é a busca das reformas democráticas, que nunca interessaram aos que governam um país cujo povo nunca foi qualificado para adotá-las e defendê-las.
Recife, 9 de julho de 2014

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Debatendo com o leitor



Nota introdutória:

Tomei a liberdade de reproduzir abaixo parte do debate desencadeado pela postagem do meu artigo MEC e Populismo Pedagógico no blog Amálgama, 15 de maio de 2011 (Ver o mesmo texto no meu blog: http://fmlima.blogspot.com/2011/05/mec-e-populismo-pedagogico.html). Considerada a repercussão do assunto na mídia, meu artigo provocou reações e críticas do leitor talvez sem precedente na história do meu modesto percurso como colaborador permanente do Amálgama. Se me decido a reproduzir parte da polêmica desencadeada pelo artigo, a que me parece mais aproveitável e ilustrativa do que aqui qualificarei de debate de ideias na Internet, faço-o baseado na suposição de que ela ambiguamente enriquece e desdobra a matéria considerada no artigo.

Um esclarecimento adicional ao leitor. Desde que passei a escrever para blogues, tive sempre o zelo de ler, ponderar e quase sempre discutir o que o leitor escrevia na seção de comentário. Essa atitude traduzia, antes de tudo, um ponto de vista ético que sempre pautou minha atividade como articulista. Ciente de que escrevo para o leitor, como de resto todos que o fazem, dei sempre importância aos termos da sua recepção, à forma como me lê e me traduz. Ademais, reconheço que em princípio a introdução da seção de comentário, via de relação direta entre o autor e o leitor, constitui um louvável espaço de democratização da cultura e do debate das ideias. O que todavia constato, passados tantos meses de discussão com o leitor, discussão que com frequência exige mais tempo e elaboração da escrita do que o próprio processo de fatura dos artigos e ensaios que posto nos blogues para os quais escrevo, o que ao cabo constato, reitero, é o pífio ou nulo proveito dessa forma de interação que, convenhamos, pouco serve ao legítimo debate das ideias.

Exponho sumariamente dois procedimentos recorrentes que me parecem invalidar ou corromper a intenção de quem intervém na seção de comentário inspirado pelo propósito de adequadamente praticar o exercício de democratização, de esclarecimento e introdução de um pouco de ordem no caos das interações entre o autor e o leitor correntemente saturadas de mal-entendidos, predisposições tendenciosas, quando não pura e simples má fé. O primeiro procedimento parece-me derivar da singular capacidade que tantos leitores revelam de ler no texto o que nele não se encontra. Observo a tempo que procurei selecionar o que há de mais aproveitável nos termos inconciliáveis da polêmica. A documentação que abaixo transcrevo ilustra um pouco esta questão. Embora ressalte no corpo do artigo, também em várias respostas que postei, o fato de que todo sistema linguístico é composto de muitos estratos e variáveis decorrentes de classe, região e grupo cultural, para não falar das infinitas variáveis individuais identificáveis como idioleto ou estilo, vários comentadores, talvez sintomaticamente os mais agressivos e petulantes, insistiram em criticar o que não escrevi. Cuidei também de frisar que a língua é mutável e portanto se transforma através do tempo. Não bastasse a evidência acima anotada, frisei constituírem verdades comezinhas dos estudos linguísticos e mesmo das gramáticas normativas, pois não conheço nenhuma, por mais que se extreme no zelo normativo, que se atreva a refutar verdade tão elementar e encontradiça. Acrescentei ainda que a norma, seja ela qual for, não procede de nenhuma instância transcendental nem é investida de qualquer essência metafísica. As normas, não só as linguísticas, são uma criação humana, portanto mutáveis e corrigíveis.

O segundo procedimento consiste na confusão, não sei até onde intencional ou inconsciente, do comentador que salta do plano do debate das ideias, objetivo primacial da seção de comentário tal como a entendo, para o da ofensa pessoal. Isso fica patente, por exemplo, nos comentários postados por um certo Flávio. Por razões óbvias, não os transcrevo neste post de documentação polêmica do meu artigo. O leitor acaso interessado em conferir a procedência do meu argumento poderá consultar o tom petulante e ofensivo do que escreve, assim como o comentário de uma certa Carol. A julgar pela petulância com que esta presume corrigir minha ignorância, julgo apropriado conferir-lhe um sobrenome digno da excelência do seu saber linguístico. Vou assim identificá-la como Carol Saussure. Afinal, somente a tocante humildade intelectual dessa leitora, digna discípula do arrogante tecnocrata dos estudos da linguagem que é Marcos Magno, supostamente o guru de todos esses tecnocratas que se sentem investidos da autoridade de legislar para os néscios não linguistas o que é e o que se deve ensinar como sendo a língua portuguesa, só isso explica o prenome que nada traduz do seu gênio. Desdobrando o mesmo princípio, por que não passar a chamar Marcos Bagno de Marcos Magno (primor psicanalítico de lapso linguístico de Deonísio Silva em debate recente no programa Observatório da Imprensa) e Flávio, meu opositor mais ofensivo e grosseiro, de Flávio Jakobson?

O que aprendi depois de tanto ruído e fúria que nada significam? Aprendi afinal a inutilidade de teimar em discutir com o leitor em nome da afirmação de um critério ético que bem poucos consideram: o critério da atenção e apreço que devo ao leitor, o outro polo da função comunicativa da linguagem que constitui uma dos sentidos do trabalho de quem escreve. Acredito ainda nele. Do contrário, por que estaria ainda escrevendo? Mas acredito que a função comunicativa que nos associa se traduz acima e à margem da seção de comentário. Portanto, não mais escreverei uma única palavra nesta, salvo nos casos de correção de algum mal-entendido ou revisão necessária. Concluindo, doravante nada farei além de postar o artigo. Que o leitor o leia de acordo com sua inteligência, senso de discernimento crítico, boa ou má vontade. O que sobrar, se algo sobrar, será de todos ou de ninguém.
Abaixo a documentação transcrita da Seção de Comentário do blog Amálgama anexa ao meu artigo MEC e Populismo Pedagógico. Além de ampliada em alguns parágrafos, vai acrescida de algumas correções de linguagem, revisão e mais preciso enquadramento do meu tom polêmico:

Comentário de Fernando da Mota Lima -19 de maio de 2011.
Caros comentadores: Não me dirijo a nenhum, em particular, por serem muitos os argumentos e ainda maiores os mal-entendidos que cercam esta polêmica e meu artigo em particular. Alguns leitores, no geral escudados no linguista Marcos Bagno, cuja petulância argumentativa torna-o digno de chamar-se Marcos Magno, o Alexandre Magno da linguística, tratam meu artigo como se eu acaso ignorasse a variedade efetiva do sistema linguístico. Se nada há de novo sob o sol, como reza o Eclesiastes, esta seria a última das novidades. É claro que toda língua é um complexo de códigos e modos de expressão. Deixei isso claro no artigo quando aludi às variações de classe, região e também individuais. É claro que na intimidade da minha casa, no convívio espontâneo com os amigos, não falo como na sala de aula. Existe o falar das classes pobres e o das pessoas cultas, o do nordestino e o do sulista, o de Tiririca e o de Fernando Gabeira. Vamos ficar discutindo essas obviedades até quando?

O cerne da minha crítica a esses que chamei e chamo de populistas consiste no fato de adotarem uma norma linguística e pedagógica baseada na falsa igualdade da norma culta com a norma do povo iletrado, do estudante carente que vai para a escola e escreve “os livro num presta”. Corrigir esse erro com base na norma culta não é preconceito linguístico. A função da escola é introduzir o aluno no universo da norma culta. É ela que deve prevalecer como norma regente do código das pessoas letradas. Afirmar isso não é incorrer em preconceito de classe ou cultura. Se Ricardo Lima tem razão ao afirmar que a norma culta não é mais certa nem mais errada do ponto de vista científico (leia-se do ponto de vista dos fatos da língua estudados pela linguística), está errado ao recusar a norma culta como critério de correção instituído socialmente. Se ele pensa o contrário, então faça um concurso, um vestibular, qualquer atividade social baseada na norma culta da língua e escreva como o povo iletrado escreve, ou como ele fala no botequim da esquina.

Outra coisa: norma culta não é apenas imposição dos grupos de elite ou dirigentes. É também isso, mas é também saber objetivamente aferível. É também saber transmitido e refinado através de gerações herdeiras e representantes da alta cultura, expressão que emprego isento de arrogância, mas consciente do sentido valorativo que a diferencia de extratos culturais mais restritos e, por que não?, inferiores. Quem pensa o contrário não vê diferença entre Machado de Assis e a subliteratura que infesta a cultura contemporânea. Tampouco diferencia Tom Jobim e Chico Buarque de Garota Safada (o nome dessa banda vulgar já diz tudo) e Chiclete com Banana.
É curioso: qualquer debate sobre questões culturais acaba sempre em desqualificação dessas verdades elementares em nome do antielitismo, do preconceito de classe e região etc. Acusam de elitismo quem afirma que a norma culta é mais rica, complexa e portanto superior às demais. As pessoas que combatem essa verdade elementar, no geral limitadas ou desprovidas de legítima cultura intelectual, aceitam com santa inconsciência o que correntemente se diz no futebol, religião universal do povo. No futebol existe rei, rainha, gênio, fenômeno, imperador, príncipe, clube de elite, e todas as grandezas e até megalomanias. No reino da cultura intelectual, no entanto, não se pode falar em superior ou elite que o mundo dos pseudoigualitários e populistas cai sobre nossas cabeças. Aliás, é na cultura dos extratos inferiores onde mais prolifera o gosto arrogante, não raro ridículo e absolutamente infundado, da megalomania, do desprezo por tudo que esteja abaixo ou supostamente abaixo. Bastaria lembrar a arrogância com que na mídia e na propaganda oficial de Recife vivem arrotando “o maior carnaval do mundo”, “Pernambuco falando para o mundo”, o melhor x do mundo, o melhor y do mundo. A explicação mais elementar dessa arrogância dispensa elucubrações mais sofisticadas: estamos diante da megalomania e da arrogância que não passam de sintoma de subdesenvolvimento ou bovarismo de periférico.
Mais não digo nem me perguntem, pois acho que esse populismo é incurável. Ele é parte do democratismo picareta que tomou conta do país em que vivemos. Isso é mais revoltante quando pensamos que o Brasil é um país picotado pela espoliação, a injustiça, privilégios e preconceitos de todo tipo. A educação é um dos meios mais poderosos para que a gente adquira consciência disso e a partir da aquisição da consciência crítica lute para tornar esse país efetivamente democrático e portanto melhor. Por isso me indigna a incompreensão dos que me julgam elitista simplesmente por defender o direito de as camadas mais pobres e carentes ascenderem a um melhor padrão de vida, que não se traduz apenas em melhores condições de vida material. Ele se traduz também na aquisição de uma cultura mais refinada e complexa, a que nos faculta o acesso a e o consenso pertinente a valores humanistas mais e mais desprezados pelo materialismo predatório que domina a cultura contemporânea. A educação não é tudo, claro, mas é um dos instrumentos fundamentais para essa mudança que não sei quando virá. Postular a suposta igualdade entre a alta cultura e a cultura de massa pode sugerir na aparência a igualdade e respeito pelo conjunto das expressões culturais de um povo como se ele acaso constituísse um todo isento de diferenciação valorativa.
Fernando.

Comentário de Ricardo Lima
19,05,2011 - 5:55 pm
O papel da escola é ensinar a variedade de prestígio, à qual se dá um valor social e que, como eu também já escrevi em outros lugares, é cobrada nos vestibulares, concursos, situações formais. Entretanto, é necessário desenvolver o pensamento crítico, para que essa variedade não seja ensinada somente de forma instrumental e sem questionamento, como se tivesse sido transmitida por Deus para que alguns poucos preservassem, enquanto que outros vilões a deturpassem. Todas as variedades mudam com o tempo, inclusive a variedade de prestígio. Coisas que no passado eram totalmente abomináveis passam a ser consideradas corretas depois que são assimiladas pelas pessoas que disfrutam de maior prestígio social. NINGUÉM no Brasil se utiliza da “norma culta” utilizada por Machado de Assis, mesmo que tenha a ilusão de usá-la, pois, se o fizesse, seria internado em um hospício. É mais positivo refletir sobre a língua e observar os belíssimos fenômenos envolvidos com a formação do Português Brasileiro do que ficar reproduzindo dogmas acientíficos, movidos por crenças irracionais. Todo brasileiro tem o direito de assimilar, manipular e usar a seu favor a variedade de prestígio, assim como tem que ter toda a liberdade – sem bullying nem patrulhamento – de usar a variedade com a qual expressa as suas emoções e os seus pensamentos. Isso pode ser inclusive inferido a partir da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. O que chamamos de “norma culta” é dinâmico, nunca para de mudar e, por isso, não pode ser idealizado como A forma correta, que melhor permite que alguém se expresse. Se, na minha comunidade, alguém diz: “Oh, Cráudia, sai cá fora e dê uma espiada nesses menino danado, qu’eles num pode ficá sozim”, nada vai expressar o pensamento e sentimento tão bem nessa situação. Na escola, isso deve ser respeitado como uma variedade, ainda que – na escola – se deva compreender que, em situações mais gerais e formais, o nome Cláudia é pronunciado com “L” e não passou pela mudança linguística pela qual passaram PRAÇA (plaza, place, Platz), ESCRAVO (Sklave, slave, esclavo) etc; que, nessas mesmas situações, quando há somente um, se usa “menino”, mas quando há mais de um, se usa “meninos” (diferente do francês, que pronuncia da mesma forma o singular e o plural; do alemão, que tem outras regras de plural, inclusive manter, em diversos casos, a palavra invariável – der Lehrer, o professor; die Lehrer, os professores); que, diferente do inglês, o adjetivo deve também concordar com o nome e o artigo (danados). Mencionam-se aqui outras línguas de propósito, para demonstrar que, linguisticamente, os fenômenos são plausíveis e as línguas mudam. No inglês de Shakespeare, havia mais flexões verbais que hoje. No português, as flexões estão diminuindo também: eu falo, você/ele/ela/a gente fala, eles/elas/vocês falam – e não é impossível que em, digamos, 200 anos, só exista a forma “fala” para todas as pessoas gramaticais. Se usarmos inteligência e observação, compreenderemos muito mais as mudanças linguísticas e as variedades existentes em todos os idiomas.

Comentário de Ricardo Lima
19,05,2011 - 6:28 pm
Insisto, para que os leigos não caiam nessa: Não há – DE FATO – nenhum tipo de superioridade essencial na variedade de prestígio. Ela precisa ser descrita (sem dogmas, mas sim de fato) e precisa ser estudada/aprendida, Isso é ponto pacífico. Por quê? Por ser a variedade que favorece maior mobilidade social; por facilitar a comunicação, pois é usada de forma mais comum e geral em comparação aos dialetos; por ser a referência em concursos e diversas situações formais, até porque é necessário que algum tipo de padrão comum seja estabelecido. É por isso! Não porque ela é superior, ou seja, não por uma razão transcendental. O simples fato de que essa variedade de prestígio muda é uma prova de que ela não é essencialmente superior. Ela é – ou deveria ser – um acordo comum para facilitar a vida na sociedade. De petista, eu não tenho nada, e discordo do pensamento pseudoesquerdista e populista, do democratismo cínico. Mas isso não me impede de ver a realidade dentro do campo científico, que trata da observação de fatos. Falaram tanto absurdo porque o livro – que nem conheço – observa que não fazer concordância é plausível e normal, que, se as pessoas que entendem do assunto simplesmente se abstêm, o pensamento mítico-dogmático sobre a língua toma conta. A escola tem que, não só, mas também, mostrar que cada comunidade fala como fala e se comunica muito bem dessa forma, para eliminar os estigmas. E, além disso, a escola deve ensinar a variedade de prestígio, pelas razões citadas. É isso.

Comentário de Fernando da Mota Lima
19,05,2011 - 9:47 pm
Caro Ricardo: Sei que meus argumentos serão inúteis, mas talvez esclareçam um outro leitor interessado nesse nosso debate que mais me parece conversa de surdo. Você agora invoca o relativismo de tempo (histórico) e espaço (geográfico) para validar as muitas variáveis linguísticas que segundo você, como todo bom relativista, devem ser igualmente reconhecidas. Não bastasse tanto, você deita falsa cultura de poliglota como se isso acaso conferisse força a seus argumentos. É chover no molhado lembrar que as línguas mudam no tempo e no espaço. A questão não é essa. Vejamos a coisa de outro modo. Toda sociedade, toda cultura humana é composta de um complexo de normas sem o qual ela não se sustentaria. É claro que esse sistema de normas não caiu do céu nem é obra divina, embora muitos crentes assim pensem.

Desde Saussure, um dos fundadores da linguística moderna, sabemos que o signo linguístico é arbitrário, isto é, não é nenhuma essência, nenhuma manifestação metafísica de uma verdade absoluta e universal. Noutros termos, não existe nenhuma relação essencial entre significante e significado. A língua é uma criação humana resultante do trabalho de uma infinidade de gerações. O relativismo dos seus argumentos em nada anula o fato de que ela é composta de estratos que não são fruto apenas de prestígio social ou variação de classe, tempo e espaço.
A besteira que você escreveu sobre Machado de Assis, fosse ela verdadeira, teria internado a mais alta inteligência humanística do Brasil na Casa Verde de Simão Bacamarte.

Leia o último parágrafo de Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo. Se você é uma pessoa de real cultura intelectual, note que estou qualificando a cultura antes que você venha alegar que todo mundo tem cultura, o que é aliás correto segundo o conceito socioantropológico do termo, você notará que somente uma inteligência extraordinária do ponto de visto linguístico e filosófico poderia traduzir em termos de niilismo radical a concepção da condição humana ali inscrita. Por mais que você force a nota do seu relativismo, não há como pôr no mesmo patamar aquele parágrafo, expressão da alta cultura letrada, com o falar vulgar, iletrado ou mesmo o falar da cultura média. É por isso que Machado exige um leitor altamente cultivado do ponto de vista intelectual. Afirmar essa verdade não é ser elitista. É simplesmente reconhecer que Machado é expressão de uma modalidade de cultura e norma linguística que requer anos e anos de estudo e cultivo literário. No entanto, gente como você aparenta acreditar que tudo é questão de relativismo ou imposição de valor social.

Vou retomar o exemplo do futebol que usei no meu comentário precedente. Como disse, no reino do futebol todo mundo fala de rei, rainha, imperador Adriano, gênio da bola etc. Nunca ouvi ninguém acusar isso de elitismo. Pelé é até hoje reconhecido, com justiça, como o rei do futebol. No entanto, na literatura, na cultura humanística em geral, não falta quem prontamente lance mão de supostos argumentos niveladores das múltiplas expressões da cultura para desqualificar o gênio literário de Machado de Assis, o modelo estilístico que é a sua obra etc. Tratam questões dessa natureza como se tudo se reduzisse a relativismo de gosto ou imposição de prestígio sociocultural.

A explicação me parece simples. O futebol é um esporte baseado num sistema de normas e valores simples que todo mundo entende. Noutras palavras, todo mundo no Brasil tem cultura futebolística, conhecimento básico e comum para reconhecer objetivamente certos valores. Por exemplo: nunca vi ninguém negar talento a nenhum jogador convocado para a seleção brasileira. Há desacordo, claro, acerca de quem é melhor, mas nunca se desqualifica um grande jogador de futebol. Na literatura, nos códigos de linguagem, no debate sobre as normas linguísticas, todo mundo tem opinião e muitos acham que estão certos simplesmente porque não existe verdade universal, porque tudo é relativo etc. Ora, qualquer pessoa pode com facilidade dominar o sistema de práticas e normas que regulam um esporte como o futebol. Ler Machado de Assis à altura das exigências e da profundidade da sua obra é uma conquista intelectual e estética que supõe muitos anos de aprendizagem e experiência. Qualquer pessoa pode num relance identificar o gênio futebolístico de Pelé. Quantas no entanto são capazes de ler Memórias Póstumas de Brás Cubas assimilando a grandeza singular dessa obra-prima da literatura universal?

Cansei. Já que você não cede, Ricardo, o que você faria se fosse um professor? Em que norma se basearia para avaliar uma dissertação sobre Machado de Assis, por exemplo? Quanto a seu relativismo histórico, no caso pedagógico, seria razoável eu, como seu professor, dar hoje em você uma surra de palmatória alegando que no tempo do seu avô era essa a norma corrente na escola? Ou ainda surrar, quando não impunemente matar, uma mulher adúltera simplesmente por ter sido esta uma prática cultural corrente durante séculos de machismo, notadamente no Nordeste de cabra macho onde vivo? Não é por mudar no tempo e no espaço que a norma deve ser ignorada, ou trocada por qualquer outra, ou nivelada a qualquer outra.

A Cultura muda, sim, repisemos essa platitude. Minha ambição, o sentido da ideologia que professo inspirado pelo humanismo racionalista, é vê-la mudar para melhor. É por isso que me oponho à concepção de cultura hoje corrente, pois, na medida em que valida toda e qualquer expressão de cultura, anula o a noção valorativa da cultura sem a qual não iremos a lugar nenhum. Se você se recusa a estabelecer distinções qualitativas no conceito de cultura, então você precisará logicamente justificar toda e qualquer expressão de cultura simplesmente baseado no critério de que tudo é cultura. Cansei. Como dizem os belos versos de Chico Buarque: “já conheço os passos dessa estrada / sei que não vai dar em nada / seus segredos sei de cor”. Paro antes que alguém diga que esses versos fundidos à música de Tom Jobim, a mais alta expressão musical que existe neste país, são iguais a qualquer das boçalidades que passam por música em megashows de musculação e histeria de massa.Ou mera expressão de classe social, status, distinção estética imposta por meros fatores de ordem social e ideológica.

Comentário de Ricardo Lima – 20 de maio de 2011
Engraçado, Fernando, como as pessoas se enganam quando tentam falar sobre quem – e sobre o que não conhecem. Eu sou uma das pessoas menos relativistas entre as que conheço, ao menos no sentido trazido por você. Além disso, jamais passou por minha cabeça deitar cultura de poliglota, apesar de não me sentir envergonhado de ser fluente em algumas línguas – desculpe se isso parece algum tipo de ataque, mas se trata simplesmente de uma verdade e, em relação à discussão, procuro simplesmente me basear em dados concretos. Acho que lhe faltaram argumentos mais racionais. Não acho que seja elitismo de sua parte considerar que a cultura está atrelada a um determinado padrão linguístico, mas acho que isso é uma ficção, pois tanto a cultura quando o padrão se transformam dentro do processo histórico, o qual envolve inclusive a dialética entre as diversas culturas e variedades existentes em um país. Ou seja, a variedade de prestígio existe, é uma realidade, deve ser aprendida/ensinada na escola, conforme eu também afirmei, mas a compreensão da relação que ela tem com as outras variedades, inclusive o continuum existente, os intercâmbios, fazem com que percebamos que não se trata de algo intocado, mas sim de algo que faz parte do patrimônio cultural – embora não seja a totalidade desse patrimônio, a não ser que queiramos apagar todos os discursos outros que, na realidade, existem. O que gerou essa falsa polêmica foi a ideia equivocada de que estavam querendo ensinar os alunos que é OK falar “errado” e que a variedade de prestígio não seria importante. No entanto, reconhecer que as diversas variedades são reais e não podem ser estigmatizadas é muito diferente disso. Primeiro, falar e escrever “errado” é falar e escrever em desacordo com o contexto, ou seja, de uma forma inadequada à situação de uso. Ou seja, dizer “telefonar-te-ei amanhã” numa roda de amigos é tão “errado” quanto usar “Pô, cara, não deu pra faser (sic) o progeto (sic)” em uma correspondência na empresa. Os alunos têm que ser informados disso. Por isso, têm que saber que, em alguma variedade, “os livro” é aceitável, mas na variedade de prestígio (erroneamente chamada de norma culta) não é. Segundo, ensinar a variedade de prestígio de forma instrumental, sem reflexão, pode ser negativo também. Os alunos têm que saber que não se trata de uma variedade perfeita, mas que está em constante mudança e, com o tempo, vai assimilando elementos antes considerados errados. E isso acontece à medida que aqueles que têm maior prestígio social começam a usar tais elementos. Isso é científico, não é adivinhação nem relativismo de minha parte. Os problemas do aprendizado não estão relacionados de forma simplista com essa discussão, tanto que as deficiências existem em todas as disciplinas. Espero que não lhe ofenda a citação de outras culturas, mas coloco só mais um adendo que mostra que o problema está no sistema educacional, não nessa discussão sobre variedades: nos países onde o sistema educacional funciona de forma mais eficaz – ex.: Alemanha, França, Inglaterra, Argentina etc – você acha que não existem as variedades? Na Alemanha, chega ao ponto, em alguns casos, de falantes de um dialeto não compreenderem os de outro. Os berlinenses não “respeitam” quase nenhuma regra de declinação do Hochdeutsch (alemão padrão) no seu falar cotidiano. No entanto, aprendem bem o Hochdeutsch. Na Argentina, o espanhol tem diversas peculiaridades de vocabulário e gramática, e não se deixa de usar “vos podés” no lugar de “tu puedes” nem por decreto. No entanto, aprendem o espanhol padrão. Ou seja, se a escola cita, em um livro, que existem diversas variedades, que todas devem ser respeitadas etc, isso não é obstáculo para que se assimile a variedade tomada como padrão. Por último, sobre Machado de Assis, creio que simplesmente não tenha compreendido. Só quis chamar atenção para a mudança linguística mesmo, observando que ninguém usa o português que era usado por ele.

Comentário de Fernando da Mota Lima
20,05,2011 - 9:40 pm
Caro Ricardo: você desarma meu ânimo polêmico com seu comentário acima. Não no que se refere à substância dos argumentos, que no essencial reiteram o que já nos dissemos. Você me desarma e tiro o chapéu para o seu tom de civilidade. Educação no sentido equivalente a civilidade é algo que me desarma e pouco encontro no convívio com brasileiros. Isso, friso, é o que mais importa no seu comentário. Vou ainda desdobrar a discussão pela última vez ainda com a intenção de introduzir alguma clareza no nosso debate. Estou me cansando de discutir com as pessoas que no geral comentam artigos meus simplesmente por constatar que a discussão no geral resulta inútil, já que não leva a lugar nenhum. Por isso declarei acima que isso era um diálogo de surdos. Se não damos sentido preciso aos termos fundamentais do debate, é inútil, reitero, continuar discutindo.

Por exemplo: refutei o caráter relativista dos seus argumentos e logo você me retruca afirmando o contrário. Se seus argumentos relativos a variações no tempo e no espaço não são prova de relativismo, então um de nós dois definitivamente não sabe o que é relativismo. Já estou cansado de reiterar as variáveis observáveis em qualquer sistema linguístico. São, noutras palavras, variáveis dependentes de classe social, região, indivíduo. Você simplesmente ampliou o escopo da variável espacial ou geográfica (região) ao mencionar exemplos de comparação linguística, isto é, variáveis de idioma. Além, acrescento a tempo, da variável temporal, que no jargão dos linguistas equivale à diacronia linguística quando consideramos uma língua exclusiva. Não discordamos quanto a isso. Também não discordamos quando você ressalta o prestígio social como um dos fundamentos sociológicos da norma culta.
Portanto, nossa divergência não reside no fato de constatarmos várias normas na língua nem as variáveis de contexto social e linguístico em que se manifestam as normas em questão. Meu argumento central é o seguinte: embora várias normas ou variáveis linguísticas convivam na escola, a norma regente deve ser a culta. Acrescentei no meu artigo que o domínio desta não traduz mera questão de arbítrio ou prestígio social. Traduz essas coisas, reitero minha concordância, mas a questão é mais embaixo e é aí que discordo de você, de Marcos Bagno e todos que polemicamente qualifiquei de populistas.

Uma pessoa intelectualmente culta (volto a frisar que o termo culta está modificado pelo advérbio de modo porque reconheço, seguindo o uso socioantropológico, que toda pessoa é dotada de cultura, mas nem todas são dotadas de cultura intelectual) se identifica pela aquisição e uso da norma culta. Isso supõe juízos objetivos de valor que vocês, apologistas da igualdade linguística, se recusam a reconhecer. O falante limitado ao código restrito, aquele que escreve “Os livro etc.”, não está intelectualmente habitado para perceber a realidade de forma crítica, para formular argumentos e propor alternativas à realidade. É isso o que afirmo no meu artigo.
É fato que não li o livro que gerou a polêmica que nos ocupa. Meu artigo seria obscurantista e ignorante, como disse abaixo o obscurantista e ignorante Flávio, se eu confinasse meus argumentos aos limites da reportagem divulgada pela mídia. Quem sabe ler, sabe que meu artigo visa alvos mais amplos e profundos.
Estudei durante mais de quatro anos numa universidade inglesa onde havia alunos e professores de mais de cem nacionalidades. Portanto, uma verdadeira babel de línguas e culturas. Convivendo com gente de culturas e línguas tão variáveis comunicando-se apenas por terem a língua inglesa como denominador comum, suponho haver aprendido algumas lições preciosas sobre relativismo cultural e linguístico. Mas fico por aqui, Recardo. Apesar das nossas divergências e mal-entendidos, valeu a pena discutir com você, sobretudo quando considero o tom civilizado do seu último comentário.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Nacionalismo, Futebol e Identidade Cultural


Como sabem os estudiosos da nossa história política e cultural recente, “Um dia na vida do Brasilino”, de Paulo Guilherme Martins, é uma fábula nacionalista publicada no outono de 1961. É assim que o próprio autor data muito anticonvencionalmente seu libreto. O texto está agora disponível na internet, como quase tudo. Passou a circular nela como edição comemorativa dos 41 anos do seu lançamento. Dado que retorna inalterado, é razoável supor que Martins se mantenha fiel à mesma ideologia, que a subscreva com a mesma convicção com que a escreveu no outono de 1961. O sentido ideológico da fábula é de uma transparência meridiana: o cotidiano do brasileiro, simbolizado na figura de Brasilino, é atravessado do primeiro ao último minuto pela dominação onipresente do imperialismo econômico e cultural. O processo de acelerada globalização disparado a partir de 1964, ano em que os militares impuseram às forças de esquerda uma derrota devastadora, tornou no presente o mote do nacionalismo e anti-imperialismo de esquerda inteiramente anacrônico. No entanto, a ideologia sobrevive aparentemente intocada.

Figura de mil faces, tal a variedade camaleônica com que se amolda a todos os grupos políticos, econômicos e culturais que a adotam, a ideologia nacionalista goza de excelente saúde repontando no discurso exaltado dos que defendem nossa particularidade lingüística, nossa integridade culinária, bastaria lembrar a hilariante apologia da broa de milho feita por um político de esquerda vindo do exílio, as políticas estatizantes como linha de resistência à dominação econômica imposta pelos Estados Unidos, nossa amada e ameaçada identidade cultural. Não se sabe bem o que seja, nossa identidade cultural, mas o fato é que todos os dias alguém aparece na mídia para defendê-la e não raro salvá-la. É tão viva e vigilante que ocupa lugar de destaque no seio da nossa política cultural dispondo de secretaria própria no Ministério da Cultura: a Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural. O título soa um tanto paradoxal. Se celebramos a diversidade cultural, se o argumento da miscigenação cultural e racial tornou-se hegemônico na consciência brasileira, graças antes de tudo à obra admirável de Gilberto Freyre, como explicar a resistência imposta ao livre contato entre culturas em plena era da globalização? Como explicar a instituição de uma secretaria destinada a velar pela nossa identidade, além de a estimular com ações políticas concretas? Como explicar que até entre nós, entre brasileiros de uma região comum, acendam-se os ânimos de pernambucanos contra a invasão do carnaval baiano, que nos levantemos contra os sulistas, os baianos também, e portanto invalidemos um suposto princípio de unidade dentro da identidade nacional?

É também significativo o imenso prestígio político e intelectual de um ideólogo como Ariano Suassuna, defensor de uma noção de cultura e identidade cultural tão extremada que, perto dele, muitos dos nossos nacionalistas mais exaltados parecem cosmopolitas ou ainda entreguistas, se queremos usar um termo ancrônico, todavia ainda vivo na fala intransigente de Suassuna. Como ele próprio afirma sem meias medidas:
“Um prêmio chamado Sharp, ou Shell, Deus me livre! Não quero. Acho esses nomes feios. Não recebo prêmio de empresas ligadas a grupos multinacionais. Não sou traidor do meu povo nem estou à venda. (...) A globalização é uma arma que os países ricos têm para perpetuar a dominação sobre os pobres. O patrocínio de multinacionais nos eventos de nosso país é uma tentativa de adormecer a resistência de nosso povo e aviltar a cultura brasileira pelo suborno dos intelectuais”.

Coerente com sua concepção extremada de nacionalismo cultural, antes de tudo regionalismo enraizado nas fontes da cultura rústica sertaneja, Suassuna abre fogo contra toda e qualquer expressão da cultura urbana de massas, assim como qualquer expressão da cultura erudita contaminada pelo livre circuito dos empréstimos culturais. Sendo assim, na entrevista citada dispara contra a bossa nova, o tropicalismo, o rock, Tom Jobim, Caetano Veloso etc. Para ele, globalização é apenas uma arma a serviço da dominação imposta pelos países do capitalismo central a países do tipo do Brasil. Para ele, os símbolos culturais americanos representam pura e simples dominação econômica e ideológica.

Ariano Suassuna fala todo o tempo pelo povo e em nome do povo. Infelizmente, o povo não parece nem um pouco interessado em seguir o enredo que escreve para a cultura e a identidade brasileira. Para desespero do nosso extremado ideólogo, os porteiros de condomínio querem mesmo dizer okei , não oxente. Nossos artistas primitivos, expressão da cultura rústica e pré-moderna celebrada por Suassuna, atendem alegremente ao convite que a cultura urbana de massas lhes acena. O povo brasileiro, não importando o sentido que desejemos atribuir a esse termo tão camaleônico como o nacionalismo cultural, persegue deslumbrado tudo o que o discurso salvacionista de Suassuna repele: o shopping Center, o consumismo desvairado, o lixo e o luxo da cultura americana, a língua inglesa disseminada em todos os poros da nossa sociedade, o batuque eletrônico da música sem fronteiras. Deixo Ariano Suassuna em paz com seu regionalismo intransigente e intolerante. Ele importa, para o meu argumento central, como evidência dos extremos a que pode chegar a ideologia que aqui me ocupa.

Se há um símbolo consensual na nossa indefinida e inapreensível identidade cultural, não duvido de que seja o futebol. Aqui vai uma ilustração que me parece mais persuasiva do que a mais refinada elaboração teórica que eu acaso pudesse acrescentar a este artigo. A seleção brasileira enfrentou a argentina na antevéspera do dia da Independência. Quatro horas antes do jogo ouvi vizinhos cantando festivamente o hino nacional. O fato me chamou a atenção o suficiente para que eu fosse até a varanda. De lá divisei grupos entusiasmados entoando o hino, alguns curiosamente perfilados em pose solene, como se tivessem a bandeira nacional tremulando à frente. Esta, aliás, não tremulava à frente desses grupos tomados de fervor nacionalista, mas tremulava em muitas das varandas e janelas que observei. Os jogadores brasileiros exibiram-se admiravelmente, venceram o jogo e a euforia atravessou sem exagero todas as nossas classes sociais de um extremo a outro do país.

Em contraste com esse espírito de autêntico orgulho nacional, de expressão de unidade cultural sobrepondo-se a divisões de classe e região, dois dias mais tarde vivemos o feriado que historicamente assinala nossa independência política. Preocupado em observar o fato cotejando-o com o precedente relativo à seleção brasileira, não deparei nenhuma expressão de autêntica e espontânea consciência nacional, nenhuma evidência coletiva de orgulho associado à nossa independência. A identidade cultural localizada por Mário de Andrade na inconsciência espontânea do povo parece emudecida durante o dia consagrado à independência política do Brasil. A julgar pela realidade visível, nosso sete de setembro é apenas um feriado qualquer que o brasileiro típico aproveita para desfrutar na praia ou dedicar ao lazer dissociado da memória histórica relativa à razão do feriado.

Mas o futebol compreendido como fator de unidade e identidade cultural justifica algumas ponderações que me parecem ainda mais relevantes do que tudo que acabo de anotar acima. Procedendo a um ligeiro exercício de imaginação sociológica, indago de mim para mim próprio qual seria a reação de um nacionalista empenhado na defesa de nossa identidade cultural se acaso vivesse na época em que o futebol começou a penetrar na nossa realidade cultural. Como sabemos, eis um fato importante para a maioria dos brasileiros, o futebol foi introduzido no Brasil por um inglês residente em São Paulo. Esporte de nacionalidade inglesa, o futebol chega à nossa terra no auge do colonialismo inglês, que de resto já dominava a economia brasileira há muito tempo. Ingressa no Brasil como esporte de elite, basta percorrer ligeiramente a iconografia relativa aos estádios de futebol nesse período inicial, e vai sendo gradualmente assimilado pelo povo. É um exemplo fascinante de assimilação cultural processado pela via do desnivelamento, como já nos ensinou Mário de Andrade. Se o jazz constituiu um exemplo de nivelamento, ascendendo de camadas negras socialmente marginalizadas para a elite, o futebol percorreu o percurso inverso.

Mas volto a nosso hipotético nacionalista paladino da identidade cultural. Seria razoável supor que no momento em que o futebol penetrava no Brasil ele reagisse indignado amparado no argumento da nossa autenticidade cultural, alegando provavelmente que o futebol não passava de um instrumento de dominação cultural imposto pelo colonialismo inglês. Falaria provavelmente em nome do povo, cuja integridade cultural precisaria ser por ele defendida, assim como no presente Ariano Suassuna e tantos nacionalistas e regionalistas generosos e abnegados o defendem. Infelizmente, o povo demonstra, mesmo quando tutelado politicamente, como é ainda fato no Brasil do século xxi, ser sujeito de determinados desejos e vontades. Assim, ignorando a alfândega cultural imposta por nosso intelectual nacionalista, foi se aproximando da bola de procedência inglesa, foi batendo bola aqui, mais adiante num terreno baldio, depois num campo de futebol e por fim chegou ao Maracanã, um dos palcos da universalidade futebolística. Como sempre ocorre em qualquer processo de empréstimo ou assimilação cultural, não adotou passiva ou mecanicamente o futebol. O que de fato fez foi adaptá-lo acrescentando-lhe sua ginga de corpo, seu modo próprio de assimilação. Sabem os entendidos, e neste assunto todo brasileiro é entendido, que nada afirmo aqui de original. Estou apenas repetindo com palavras próprias o que Gilberto Freyre e muitos outros intérpretes da cultura, nacionalistas ou não, já disseram bem antes de mim.

Mas o futebol representa no Brasil, além da unidade identitária acima argumentada, nossa maior fonte de orgulho nacional, até mesmo de arrogância nacional. Nem o avanço da globalização econômica e cultural, dissolvendo fronteiras e transportando jogadores através de nações, clubes e símbolos de paixão esportiva cada vez mais indeterminados, abala a estabilidade dessa potente raiz de orgulho e arrogância do brasileiro. O fato é que a globalização converteu a seleção brasileira numa autêntica legião estrangeira, como acertadamente observou Roberto Pompeu de Toledo. Os clubes competem agora em escala global e o jogador, apesar do costumeiro lero-lero nacionalista, quer antes de tudo fama e fortuna. Seu sonho é ir o mais cedo possível para a Europa, fazer vida e glória na Europa. Isso não anula o nacionalismo da torcida, que continua exaltando arrogante os triunfos da nossa legião estrangeira como se cada um daqueles heróis jogasse num clube nacional da nossa idolatria, mas confirma a prioridade objetiva da globalização do esporte.

Penso que as questões acima esboçadas merecem uma reflexão mais detida no momento em que o mundo inteiro acompanha a Copa do Mundo disputada na África do Sul. Ela constitui mais uma evidência da globalização que dissolveu as fronteiras do futebol. Quase todas as seleções competidoras têm de nacional apenas os símbolos estampados nas cores das camisas e no hino de cada seleção. Os jogadores e técnicos obedecem apenas ao critério do melhor contrato ou salário, acrescido da fama. Nossa legião estrangeira, que veste as cores do Brasil, é tão alheia ao cotidiano do nosso futebol que eu mesmo, apreciador deste esporte, desconheço vários dos atletas que nos representam. No entanto, a torcida brasileira, assim como a das demais nações, continua investindo paixão e sentimentos nacionais em símbolos globalizados pelo mercado. Esse fenômeno que no momento coloniza a imaginação das massas em escala global mais uma vez comprova o quanto a ideologia e a realidade objetiva se desencontram na história da cultura.