segunda-feira, 30 de maio de 2011
Debatendo com o leitor
Nota introdutória:
Tomei a liberdade de reproduzir abaixo parte do debate desencadeado pela postagem do meu artigo MEC e Populismo Pedagógico no blog Amálgama, 15 de maio de 2011 (Ver o mesmo texto no meu blog: http://fmlima.blogspot.com/2011/05/mec-e-populismo-pedagogico.html). Considerada a repercussão do assunto na mídia, meu artigo provocou reações e críticas do leitor talvez sem precedente na história do meu modesto percurso como colaborador permanente do Amálgama. Se me decido a reproduzir parte da polêmica desencadeada pelo artigo, a que me parece mais aproveitável e ilustrativa do que aqui qualificarei de debate de ideias na Internet, faço-o baseado na suposição de que ela ambiguamente enriquece e desdobra a matéria considerada no artigo.
Um esclarecimento adicional ao leitor. Desde que passei a escrever para blogues, tive sempre o zelo de ler, ponderar e quase sempre discutir o que o leitor escrevia na seção de comentário. Essa atitude traduzia, antes de tudo, um ponto de vista ético que sempre pautou minha atividade como articulista. Ciente de que escrevo para o leitor, como de resto todos que o fazem, dei sempre importância aos termos da sua recepção, à forma como me lê e me traduz. Ademais, reconheço que em princípio a introdução da seção de comentário, via de relação direta entre o autor e o leitor, constitui um louvável espaço de democratização da cultura e do debate das ideias. O que todavia constato, passados tantos meses de discussão com o leitor, discussão que com frequência exige mais tempo e elaboração da escrita do que o próprio processo de fatura dos artigos e ensaios que posto nos blogues para os quais escrevo, o que ao cabo constato, reitero, é o pífio ou nulo proveito dessa forma de interação que, convenhamos, pouco serve ao legítimo debate das ideias.
Exponho sumariamente dois procedimentos recorrentes que me parecem invalidar ou corromper a intenção de quem intervém na seção de comentário inspirado pelo propósito de adequadamente praticar o exercício de democratização, de esclarecimento e introdução de um pouco de ordem no caos das interações entre o autor e o leitor correntemente saturadas de mal-entendidos, predisposições tendenciosas, quando não pura e simples má fé. O primeiro procedimento parece-me derivar da singular capacidade que tantos leitores revelam de ler no texto o que nele não se encontra. Observo a tempo que procurei selecionar o que há de mais aproveitável nos termos inconciliáveis da polêmica. A documentação que abaixo transcrevo ilustra um pouco esta questão. Embora ressalte no corpo do artigo, também em várias respostas que postei, o fato de que todo sistema linguístico é composto de muitos estratos e variáveis decorrentes de classe, região e grupo cultural, para não falar das infinitas variáveis individuais identificáveis como idioleto ou estilo, vários comentadores, talvez sintomaticamente os mais agressivos e petulantes, insistiram em criticar o que não escrevi. Cuidei também de frisar que a língua é mutável e portanto se transforma através do tempo. Não bastasse a evidência acima anotada, frisei constituírem verdades comezinhas dos estudos linguísticos e mesmo das gramáticas normativas, pois não conheço nenhuma, por mais que se extreme no zelo normativo, que se atreva a refutar verdade tão elementar e encontradiça. Acrescentei ainda que a norma, seja ela qual for, não procede de nenhuma instância transcendental nem é investida de qualquer essência metafísica. As normas, não só as linguísticas, são uma criação humana, portanto mutáveis e corrigíveis.
O segundo procedimento consiste na confusão, não sei até onde intencional ou inconsciente, do comentador que salta do plano do debate das ideias, objetivo primacial da seção de comentário tal como a entendo, para o da ofensa pessoal. Isso fica patente, por exemplo, nos comentários postados por um certo Flávio. Por razões óbvias, não os transcrevo neste post de documentação polêmica do meu artigo. O leitor acaso interessado em conferir a procedência do meu argumento poderá consultar o tom petulante e ofensivo do que escreve, assim como o comentário de uma certa Carol. A julgar pela petulância com que esta presume corrigir minha ignorância, julgo apropriado conferir-lhe um sobrenome digno da excelência do seu saber linguístico. Vou assim identificá-la como Carol Saussure. Afinal, somente a tocante humildade intelectual dessa leitora, digna discípula do arrogante tecnocrata dos estudos da linguagem que é Marcos Magno, supostamente o guru de todos esses tecnocratas que se sentem investidos da autoridade de legislar para os néscios não linguistas o que é e o que se deve ensinar como sendo a língua portuguesa, só isso explica o prenome que nada traduz do seu gênio. Desdobrando o mesmo princípio, por que não passar a chamar Marcos Bagno de Marcos Magno (primor psicanalítico de lapso linguístico de Deonísio Silva em debate recente no programa Observatório da Imprensa) e Flávio, meu opositor mais ofensivo e grosseiro, de Flávio Jakobson?
O que aprendi depois de tanto ruído e fúria que nada significam? Aprendi afinal a inutilidade de teimar em discutir com o leitor em nome da afirmação de um critério ético que bem poucos consideram: o critério da atenção e apreço que devo ao leitor, o outro polo da função comunicativa da linguagem que constitui uma dos sentidos do trabalho de quem escreve. Acredito ainda nele. Do contrário, por que estaria ainda escrevendo? Mas acredito que a função comunicativa que nos associa se traduz acima e à margem da seção de comentário. Portanto, não mais escreverei uma única palavra nesta, salvo nos casos de correção de algum mal-entendido ou revisão necessária. Concluindo, doravante nada farei além de postar o artigo. Que o leitor o leia de acordo com sua inteligência, senso de discernimento crítico, boa ou má vontade. O que sobrar, se algo sobrar, será de todos ou de ninguém.
Abaixo a documentação transcrita da Seção de Comentário do blog Amálgama anexa ao meu artigo MEC e Populismo Pedagógico. Além de ampliada em alguns parágrafos, vai acrescida de algumas correções de linguagem, revisão e mais preciso enquadramento do meu tom polêmico:
Comentário de Fernando da Mota Lima -19 de maio de 2011.
Caros comentadores: Não me dirijo a nenhum, em particular, por serem muitos os argumentos e ainda maiores os mal-entendidos que cercam esta polêmica e meu artigo em particular. Alguns leitores, no geral escudados no linguista Marcos Bagno, cuja petulância argumentativa torna-o digno de chamar-se Marcos Magno, o Alexandre Magno da linguística, tratam meu artigo como se eu acaso ignorasse a variedade efetiva do sistema linguístico. Se nada há de novo sob o sol, como reza o Eclesiastes, esta seria a última das novidades. É claro que toda língua é um complexo de códigos e modos de expressão. Deixei isso claro no artigo quando aludi às variações de classe, região e também individuais. É claro que na intimidade da minha casa, no convívio espontâneo com os amigos, não falo como na sala de aula. Existe o falar das classes pobres e o das pessoas cultas, o do nordestino e o do sulista, o de Tiririca e o de Fernando Gabeira. Vamos ficar discutindo essas obviedades até quando?
O cerne da minha crítica a esses que chamei e chamo de populistas consiste no fato de adotarem uma norma linguística e pedagógica baseada na falsa igualdade da norma culta com a norma do povo iletrado, do estudante carente que vai para a escola e escreve “os livro num presta”. Corrigir esse erro com base na norma culta não é preconceito linguístico. A função da escola é introduzir o aluno no universo da norma culta. É ela que deve prevalecer como norma regente do código das pessoas letradas. Afirmar isso não é incorrer em preconceito de classe ou cultura. Se Ricardo Lima tem razão ao afirmar que a norma culta não é mais certa nem mais errada do ponto de vista científico (leia-se do ponto de vista dos fatos da língua estudados pela linguística), está errado ao recusar a norma culta como critério de correção instituído socialmente. Se ele pensa o contrário, então faça um concurso, um vestibular, qualquer atividade social baseada na norma culta da língua e escreva como o povo iletrado escreve, ou como ele fala no botequim da esquina.
Outra coisa: norma culta não é apenas imposição dos grupos de elite ou dirigentes. É também isso, mas é também saber objetivamente aferível. É também saber transmitido e refinado através de gerações herdeiras e representantes da alta cultura, expressão que emprego isento de arrogância, mas consciente do sentido valorativo que a diferencia de extratos culturais mais restritos e, por que não?, inferiores. Quem pensa o contrário não vê diferença entre Machado de Assis e a subliteratura que infesta a cultura contemporânea. Tampouco diferencia Tom Jobim e Chico Buarque de Garota Safada (o nome dessa banda vulgar já diz tudo) e Chiclete com Banana.
É curioso: qualquer debate sobre questões culturais acaba sempre em desqualificação dessas verdades elementares em nome do antielitismo, do preconceito de classe e região etc. Acusam de elitismo quem afirma que a norma culta é mais rica, complexa e portanto superior às demais. As pessoas que combatem essa verdade elementar, no geral limitadas ou desprovidas de legítima cultura intelectual, aceitam com santa inconsciência o que correntemente se diz no futebol, religião universal do povo. No futebol existe rei, rainha, gênio, fenômeno, imperador, príncipe, clube de elite, e todas as grandezas e até megalomanias. No reino da cultura intelectual, no entanto, não se pode falar em superior ou elite que o mundo dos pseudoigualitários e populistas cai sobre nossas cabeças. Aliás, é na cultura dos extratos inferiores onde mais prolifera o gosto arrogante, não raro ridículo e absolutamente infundado, da megalomania, do desprezo por tudo que esteja abaixo ou supostamente abaixo. Bastaria lembrar a arrogância com que na mídia e na propaganda oficial de Recife vivem arrotando “o maior carnaval do mundo”, “Pernambuco falando para o mundo”, o melhor x do mundo, o melhor y do mundo. A explicação mais elementar dessa arrogância dispensa elucubrações mais sofisticadas: estamos diante da megalomania e da arrogância que não passam de sintoma de subdesenvolvimento ou bovarismo de periférico.
Mais não digo nem me perguntem, pois acho que esse populismo é incurável. Ele é parte do democratismo picareta que tomou conta do país em que vivemos. Isso é mais revoltante quando pensamos que o Brasil é um país picotado pela espoliação, a injustiça, privilégios e preconceitos de todo tipo. A educação é um dos meios mais poderosos para que a gente adquira consciência disso e a partir da aquisição da consciência crítica lute para tornar esse país efetivamente democrático e portanto melhor. Por isso me indigna a incompreensão dos que me julgam elitista simplesmente por defender o direito de as camadas mais pobres e carentes ascenderem a um melhor padrão de vida, que não se traduz apenas em melhores condições de vida material. Ele se traduz também na aquisição de uma cultura mais refinada e complexa, a que nos faculta o acesso a e o consenso pertinente a valores humanistas mais e mais desprezados pelo materialismo predatório que domina a cultura contemporânea. A educação não é tudo, claro, mas é um dos instrumentos fundamentais para essa mudança que não sei quando virá. Postular a suposta igualdade entre a alta cultura e a cultura de massa pode sugerir na aparência a igualdade e respeito pelo conjunto das expressões culturais de um povo como se ele acaso constituísse um todo isento de diferenciação valorativa.
Fernando.
Comentário de Ricardo Lima
19,05,2011 - 5:55 pm
O papel da escola é ensinar a variedade de prestígio, à qual se dá um valor social e que, como eu também já escrevi em outros lugares, é cobrada nos vestibulares, concursos, situações formais. Entretanto, é necessário desenvolver o pensamento crítico, para que essa variedade não seja ensinada somente de forma instrumental e sem questionamento, como se tivesse sido transmitida por Deus para que alguns poucos preservassem, enquanto que outros vilões a deturpassem. Todas as variedades mudam com o tempo, inclusive a variedade de prestígio. Coisas que no passado eram totalmente abomináveis passam a ser consideradas corretas depois que são assimiladas pelas pessoas que disfrutam de maior prestígio social. NINGUÉM no Brasil se utiliza da “norma culta” utilizada por Machado de Assis, mesmo que tenha a ilusão de usá-la, pois, se o fizesse, seria internado em um hospício. É mais positivo refletir sobre a língua e observar os belíssimos fenômenos envolvidos com a formação do Português Brasileiro do que ficar reproduzindo dogmas acientíficos, movidos por crenças irracionais. Todo brasileiro tem o direito de assimilar, manipular e usar a seu favor a variedade de prestígio, assim como tem que ter toda a liberdade – sem bullying nem patrulhamento – de usar a variedade com a qual expressa as suas emoções e os seus pensamentos. Isso pode ser inclusive inferido a partir da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. O que chamamos de “norma culta” é dinâmico, nunca para de mudar e, por isso, não pode ser idealizado como A forma correta, que melhor permite que alguém se expresse. Se, na minha comunidade, alguém diz: “Oh, Cráudia, sai cá fora e dê uma espiada nesses menino danado, qu’eles num pode ficá sozim”, nada vai expressar o pensamento e sentimento tão bem nessa situação. Na escola, isso deve ser respeitado como uma variedade, ainda que – na escola – se deva compreender que, em situações mais gerais e formais, o nome Cláudia é pronunciado com “L” e não passou pela mudança linguística pela qual passaram PRAÇA (plaza, place, Platz), ESCRAVO (Sklave, slave, esclavo) etc; que, nessas mesmas situações, quando há somente um, se usa “menino”, mas quando há mais de um, se usa “meninos” (diferente do francês, que pronuncia da mesma forma o singular e o plural; do alemão, que tem outras regras de plural, inclusive manter, em diversos casos, a palavra invariável – der Lehrer, o professor; die Lehrer, os professores); que, diferente do inglês, o adjetivo deve também concordar com o nome e o artigo (danados). Mencionam-se aqui outras línguas de propósito, para demonstrar que, linguisticamente, os fenômenos são plausíveis e as línguas mudam. No inglês de Shakespeare, havia mais flexões verbais que hoje. No português, as flexões estão diminuindo também: eu falo, você/ele/ela/a gente fala, eles/elas/vocês falam – e não é impossível que em, digamos, 200 anos, só exista a forma “fala” para todas as pessoas gramaticais. Se usarmos inteligência e observação, compreenderemos muito mais as mudanças linguísticas e as variedades existentes em todos os idiomas.
Comentário de Ricardo Lima
19,05,2011 - 6:28 pm
Insisto, para que os leigos não caiam nessa: Não há – DE FATO – nenhum tipo de superioridade essencial na variedade de prestígio. Ela precisa ser descrita (sem dogmas, mas sim de fato) e precisa ser estudada/aprendida, Isso é ponto pacífico. Por quê? Por ser a variedade que favorece maior mobilidade social; por facilitar a comunicação, pois é usada de forma mais comum e geral em comparação aos dialetos; por ser a referência em concursos e diversas situações formais, até porque é necessário que algum tipo de padrão comum seja estabelecido. É por isso! Não porque ela é superior, ou seja, não por uma razão transcendental. O simples fato de que essa variedade de prestígio muda é uma prova de que ela não é essencialmente superior. Ela é – ou deveria ser – um acordo comum para facilitar a vida na sociedade. De petista, eu não tenho nada, e discordo do pensamento pseudoesquerdista e populista, do democratismo cínico. Mas isso não me impede de ver a realidade dentro do campo científico, que trata da observação de fatos. Falaram tanto absurdo porque o livro – que nem conheço – observa que não fazer concordância é plausível e normal, que, se as pessoas que entendem do assunto simplesmente se abstêm, o pensamento mítico-dogmático sobre a língua toma conta. A escola tem que, não só, mas também, mostrar que cada comunidade fala como fala e se comunica muito bem dessa forma, para eliminar os estigmas. E, além disso, a escola deve ensinar a variedade de prestígio, pelas razões citadas. É isso.
Comentário de Fernando da Mota Lima
19,05,2011 - 9:47 pm
Caro Ricardo: Sei que meus argumentos serão inúteis, mas talvez esclareçam um outro leitor interessado nesse nosso debate que mais me parece conversa de surdo. Você agora invoca o relativismo de tempo (histórico) e espaço (geográfico) para validar as muitas variáveis linguísticas que segundo você, como todo bom relativista, devem ser igualmente reconhecidas. Não bastasse tanto, você deita falsa cultura de poliglota como se isso acaso conferisse força a seus argumentos. É chover no molhado lembrar que as línguas mudam no tempo e no espaço. A questão não é essa. Vejamos a coisa de outro modo. Toda sociedade, toda cultura humana é composta de um complexo de normas sem o qual ela não se sustentaria. É claro que esse sistema de normas não caiu do céu nem é obra divina, embora muitos crentes assim pensem.
Desde Saussure, um dos fundadores da linguística moderna, sabemos que o signo linguístico é arbitrário, isto é, não é nenhuma essência, nenhuma manifestação metafísica de uma verdade absoluta e universal. Noutros termos, não existe nenhuma relação essencial entre significante e significado. A língua é uma criação humana resultante do trabalho de uma infinidade de gerações. O relativismo dos seus argumentos em nada anula o fato de que ela é composta de estratos que não são fruto apenas de prestígio social ou variação de classe, tempo e espaço.
A besteira que você escreveu sobre Machado de Assis, fosse ela verdadeira, teria internado a mais alta inteligência humanística do Brasil na Casa Verde de Simão Bacamarte.
Leia o último parágrafo de Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo. Se você é uma pessoa de real cultura intelectual, note que estou qualificando a cultura antes que você venha alegar que todo mundo tem cultura, o que é aliás correto segundo o conceito socioantropológico do termo, você notará que somente uma inteligência extraordinária do ponto de visto linguístico e filosófico poderia traduzir em termos de niilismo radical a concepção da condição humana ali inscrita. Por mais que você force a nota do seu relativismo, não há como pôr no mesmo patamar aquele parágrafo, expressão da alta cultura letrada, com o falar vulgar, iletrado ou mesmo o falar da cultura média. É por isso que Machado exige um leitor altamente cultivado do ponto de vista intelectual. Afirmar essa verdade não é ser elitista. É simplesmente reconhecer que Machado é expressão de uma modalidade de cultura e norma linguística que requer anos e anos de estudo e cultivo literário. No entanto, gente como você aparenta acreditar que tudo é questão de relativismo ou imposição de valor social.
Vou retomar o exemplo do futebol que usei no meu comentário precedente. Como disse, no reino do futebol todo mundo fala de rei, rainha, imperador Adriano, gênio da bola etc. Nunca ouvi ninguém acusar isso de elitismo. Pelé é até hoje reconhecido, com justiça, como o rei do futebol. No entanto, na literatura, na cultura humanística em geral, não falta quem prontamente lance mão de supostos argumentos niveladores das múltiplas expressões da cultura para desqualificar o gênio literário de Machado de Assis, o modelo estilístico que é a sua obra etc. Tratam questões dessa natureza como se tudo se reduzisse a relativismo de gosto ou imposição de prestígio sociocultural.
A explicação me parece simples. O futebol é um esporte baseado num sistema de normas e valores simples que todo mundo entende. Noutras palavras, todo mundo no Brasil tem cultura futebolística, conhecimento básico e comum para reconhecer objetivamente certos valores. Por exemplo: nunca vi ninguém negar talento a nenhum jogador convocado para a seleção brasileira. Há desacordo, claro, acerca de quem é melhor, mas nunca se desqualifica um grande jogador de futebol. Na literatura, nos códigos de linguagem, no debate sobre as normas linguísticas, todo mundo tem opinião e muitos acham que estão certos simplesmente porque não existe verdade universal, porque tudo é relativo etc. Ora, qualquer pessoa pode com facilidade dominar o sistema de práticas e normas que regulam um esporte como o futebol. Ler Machado de Assis à altura das exigências e da profundidade da sua obra é uma conquista intelectual e estética que supõe muitos anos de aprendizagem e experiência. Qualquer pessoa pode num relance identificar o gênio futebolístico de Pelé. Quantas no entanto são capazes de ler Memórias Póstumas de Brás Cubas assimilando a grandeza singular dessa obra-prima da literatura universal?
Cansei. Já que você não cede, Ricardo, o que você faria se fosse um professor? Em que norma se basearia para avaliar uma dissertação sobre Machado de Assis, por exemplo? Quanto a seu relativismo histórico, no caso pedagógico, seria razoável eu, como seu professor, dar hoje em você uma surra de palmatória alegando que no tempo do seu avô era essa a norma corrente na escola? Ou ainda surrar, quando não impunemente matar, uma mulher adúltera simplesmente por ter sido esta uma prática cultural corrente durante séculos de machismo, notadamente no Nordeste de cabra macho onde vivo? Não é por mudar no tempo e no espaço que a norma deve ser ignorada, ou trocada por qualquer outra, ou nivelada a qualquer outra.
A Cultura muda, sim, repisemos essa platitude. Minha ambição, o sentido da ideologia que professo inspirado pelo humanismo racionalista, é vê-la mudar para melhor. É por isso que me oponho à concepção de cultura hoje corrente, pois, na medida em que valida toda e qualquer expressão de cultura, anula o a noção valorativa da cultura sem a qual não iremos a lugar nenhum. Se você se recusa a estabelecer distinções qualitativas no conceito de cultura, então você precisará logicamente justificar toda e qualquer expressão de cultura simplesmente baseado no critério de que tudo é cultura. Cansei. Como dizem os belos versos de Chico Buarque: “já conheço os passos dessa estrada / sei que não vai dar em nada / seus segredos sei de cor”. Paro antes que alguém diga que esses versos fundidos à música de Tom Jobim, a mais alta expressão musical que existe neste país, são iguais a qualquer das boçalidades que passam por música em megashows de musculação e histeria de massa.Ou mera expressão de classe social, status, distinção estética imposta por meros fatores de ordem social e ideológica.
Comentário de Ricardo Lima – 20 de maio de 2011
Engraçado, Fernando, como as pessoas se enganam quando tentam falar sobre quem – e sobre o que não conhecem. Eu sou uma das pessoas menos relativistas entre as que conheço, ao menos no sentido trazido por você. Além disso, jamais passou por minha cabeça deitar cultura de poliglota, apesar de não me sentir envergonhado de ser fluente em algumas línguas – desculpe se isso parece algum tipo de ataque, mas se trata simplesmente de uma verdade e, em relação à discussão, procuro simplesmente me basear em dados concretos. Acho que lhe faltaram argumentos mais racionais. Não acho que seja elitismo de sua parte considerar que a cultura está atrelada a um determinado padrão linguístico, mas acho que isso é uma ficção, pois tanto a cultura quando o padrão se transformam dentro do processo histórico, o qual envolve inclusive a dialética entre as diversas culturas e variedades existentes em um país. Ou seja, a variedade de prestígio existe, é uma realidade, deve ser aprendida/ensinada na escola, conforme eu também afirmei, mas a compreensão da relação que ela tem com as outras variedades, inclusive o continuum existente, os intercâmbios, fazem com que percebamos que não se trata de algo intocado, mas sim de algo que faz parte do patrimônio cultural – embora não seja a totalidade desse patrimônio, a não ser que queiramos apagar todos os discursos outros que, na realidade, existem. O que gerou essa falsa polêmica foi a ideia equivocada de que estavam querendo ensinar os alunos que é OK falar “errado” e que a variedade de prestígio não seria importante. No entanto, reconhecer que as diversas variedades são reais e não podem ser estigmatizadas é muito diferente disso. Primeiro, falar e escrever “errado” é falar e escrever em desacordo com o contexto, ou seja, de uma forma inadequada à situação de uso. Ou seja, dizer “telefonar-te-ei amanhã” numa roda de amigos é tão “errado” quanto usar “Pô, cara, não deu pra faser (sic) o progeto (sic)” em uma correspondência na empresa. Os alunos têm que ser informados disso. Por isso, têm que saber que, em alguma variedade, “os livro” é aceitável, mas na variedade de prestígio (erroneamente chamada de norma culta) não é. Segundo, ensinar a variedade de prestígio de forma instrumental, sem reflexão, pode ser negativo também. Os alunos têm que saber que não se trata de uma variedade perfeita, mas que está em constante mudança e, com o tempo, vai assimilando elementos antes considerados errados. E isso acontece à medida que aqueles que têm maior prestígio social começam a usar tais elementos. Isso é científico, não é adivinhação nem relativismo de minha parte. Os problemas do aprendizado não estão relacionados de forma simplista com essa discussão, tanto que as deficiências existem em todas as disciplinas. Espero que não lhe ofenda a citação de outras culturas, mas coloco só mais um adendo que mostra que o problema está no sistema educacional, não nessa discussão sobre variedades: nos países onde o sistema educacional funciona de forma mais eficaz – ex.: Alemanha, França, Inglaterra, Argentina etc – você acha que não existem as variedades? Na Alemanha, chega ao ponto, em alguns casos, de falantes de um dialeto não compreenderem os de outro. Os berlinenses não “respeitam” quase nenhuma regra de declinação do Hochdeutsch (alemão padrão) no seu falar cotidiano. No entanto, aprendem bem o Hochdeutsch. Na Argentina, o espanhol tem diversas peculiaridades de vocabulário e gramática, e não se deixa de usar “vos podés” no lugar de “tu puedes” nem por decreto. No entanto, aprendem o espanhol padrão. Ou seja, se a escola cita, em um livro, que existem diversas variedades, que todas devem ser respeitadas etc, isso não é obstáculo para que se assimile a variedade tomada como padrão. Por último, sobre Machado de Assis, creio que simplesmente não tenha compreendido. Só quis chamar atenção para a mudança linguística mesmo, observando que ninguém usa o português que era usado por ele.
Comentário de Fernando da Mota Lima
20,05,2011 - 9:40 pm
Caro Ricardo: você desarma meu ânimo polêmico com seu comentário acima. Não no que se refere à substância dos argumentos, que no essencial reiteram o que já nos dissemos. Você me desarma e tiro o chapéu para o seu tom de civilidade. Educação no sentido equivalente a civilidade é algo que me desarma e pouco encontro no convívio com brasileiros. Isso, friso, é o que mais importa no seu comentário. Vou ainda desdobrar a discussão pela última vez ainda com a intenção de introduzir alguma clareza no nosso debate. Estou me cansando de discutir com as pessoas que no geral comentam artigos meus simplesmente por constatar que a discussão no geral resulta inútil, já que não leva a lugar nenhum. Por isso declarei acima que isso era um diálogo de surdos. Se não damos sentido preciso aos termos fundamentais do debate, é inútil, reitero, continuar discutindo.
Por exemplo: refutei o caráter relativista dos seus argumentos e logo você me retruca afirmando o contrário. Se seus argumentos relativos a variações no tempo e no espaço não são prova de relativismo, então um de nós dois definitivamente não sabe o que é relativismo. Já estou cansado de reiterar as variáveis observáveis em qualquer sistema linguístico. São, noutras palavras, variáveis dependentes de classe social, região, indivíduo. Você simplesmente ampliou o escopo da variável espacial ou geográfica (região) ao mencionar exemplos de comparação linguística, isto é, variáveis de idioma. Além, acrescento a tempo, da variável temporal, que no jargão dos linguistas equivale à diacronia linguística quando consideramos uma língua exclusiva. Não discordamos quanto a isso. Também não discordamos quando você ressalta o prestígio social como um dos fundamentos sociológicos da norma culta.
Portanto, nossa divergência não reside no fato de constatarmos várias normas na língua nem as variáveis de contexto social e linguístico em que se manifestam as normas em questão. Meu argumento central é o seguinte: embora várias normas ou variáveis linguísticas convivam na escola, a norma regente deve ser a culta. Acrescentei no meu artigo que o domínio desta não traduz mera questão de arbítrio ou prestígio social. Traduz essas coisas, reitero minha concordância, mas a questão é mais embaixo e é aí que discordo de você, de Marcos Bagno e todos que polemicamente qualifiquei de populistas.
Uma pessoa intelectualmente culta (volto a frisar que o termo culta está modificado pelo advérbio de modo porque reconheço, seguindo o uso socioantropológico, que toda pessoa é dotada de cultura, mas nem todas são dotadas de cultura intelectual) se identifica pela aquisição e uso da norma culta. Isso supõe juízos objetivos de valor que vocês, apologistas da igualdade linguística, se recusam a reconhecer. O falante limitado ao código restrito, aquele que escreve “Os livro etc.”, não está intelectualmente habitado para perceber a realidade de forma crítica, para formular argumentos e propor alternativas à realidade. É isso o que afirmo no meu artigo.
É fato que não li o livro que gerou a polêmica que nos ocupa. Meu artigo seria obscurantista e ignorante, como disse abaixo o obscurantista e ignorante Flávio, se eu confinasse meus argumentos aos limites da reportagem divulgada pela mídia. Quem sabe ler, sabe que meu artigo visa alvos mais amplos e profundos.
Estudei durante mais de quatro anos numa universidade inglesa onde havia alunos e professores de mais de cem nacionalidades. Portanto, uma verdadeira babel de línguas e culturas. Convivendo com gente de culturas e línguas tão variáveis comunicando-se apenas por terem a língua inglesa como denominador comum, suponho haver aprendido algumas lições preciosas sobre relativismo cultural e linguístico. Mas fico por aqui, Recardo. Apesar das nossas divergências e mal-entendidos, valeu a pena discutir com você, sobretudo quando considero o tom civilizado do seu último comentário.
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Continue escrevendo,,,agradeço aos Céus por seu blog.
ResponderExcluirOlá, Rose: espero que desta vez a postagem da minha resposta chegue a você. Tentei comentar o que você escreveu ontem a propósito do meu artigo MEC e Populismo Pedagógico. Ando com problema na minha conexão com o blog e não sou infelizmente uma pessoa habilidosa para lidar com esses recursos. Por isso minha resposta de ontem se perdeu. Fico contente por saber que você concorda com o que tenho escrito acerca desse assunto que tanto mobilizou a mídia e as pessoas. Além do meu apreço por sua atenção, sei que você é professora de redação e literatura. Logo, estou em boa companhia. Um abraço,
ResponderExcluirFernando.
Fernando: só agora pude ler seus textos e a repercussão enorme por eles causadas. Fiquei longe da internet por uns dias depois até de ter escrito um texto rápido sobre nosso pequeno diálogo no Facebook lá no meu blog (não sei se chegou a ver). Eu sinto muito pela dificuldade encontrada na caixa de mensagens do Amalgma para estabelecer um debate minimamente digno e interessante sobre a questão. É uma pena porque de fato é um tema muito interessante e sua argumentação traz elementos importantes à reflexão, a meu entender, mesmo depois da nota da editora, esclarecedora sobretudo no que diz respeito ao tipo de público-alvo do livro.
ResponderExcluirEm meu texto, tentei sobretudo esclarecer a crítica que você me fez a respeito da ideia de violência simbólica. No meu breve comentário, não entro em detalhes sobre a polêmica em torno do livro, porque acho que tudo foi distorcido nela. Falo apenas do que chamei de violência simbólica no processo pedagógico, para esclarecer porque julgo interessante o tratamento reflexivo na forma de assimilação e ensino da norma culta como referente da língua padrão.
Forte abraço a você, Fernando. E deixo aqui minha admiração pela coragem, paciência e respeito demonstrados durante todo o debate lá no Amalgma. Qualidades que, para além do debate empobrecido pelas posturas de alguns, mantiveram o nível de civilidade que o caracterizam como educardor e intelectual. Parabéns.
Jampa.
"É preciso educar-se para o debate" é o título do artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo escrito por Sérgio Fausto, diretor do Instituto FHC, que diz:
ResponderExcluir"Escolhi comentar o caso não apenas porque se refere a um tema importante, mas também porque exemplifica um fenômeno frequente no debate público. Tão frequente quanto perigoso.
"O procedimento consiste na desqualificação de ideias sem o mínimo esforço prévio de compreendê-las. Funciona assim: diante de mero indício de convicções contrárias às minhas, detectados em leitura de viés ou simples ouvir dizer, passo ao ataque para desmoralizar o argumento em questão e os seus autores. É a técnica de atirar primeiro e perguntar depois. A vítima é a qualidade do debate público.
"Existem expressões, e mesmo palavras, que têm o condão de desencadear essa reação de ataque reflexo. Há setores da opinião pública para os quais a simples menção à privatização é motivo para levar a mão ao coldre.
"No caso em pauta, o gatilho da celeuma foi a expressão 'preconceito linguístico' para qualificar a atitude de quem estigmatiza o 'falar errado' da linguagem popular.
"Dei-me ao trabalho de ler o capítulo de onde foram extraídas as 'provas' do suposto crime contra a língua portuguesa. Chama-se 'Escrever é diferente de falar', título que já antecipa uma preocupação com o bom emprego da língua no registro formal, típico da escrita. São algumas páginas. Nada que um leitor treinado não possa enfrentar em cerca de 10 ou 15 minutos de leitura atenta. Se a fizer sem prevenção, constatará que o livro não aceita a sobreposição da linguagem oral sobre a linguagem escrita em qualquer circunstância, como chegou a ser escrito. Ao contrário, no capítulo em questão, a autora busca justamente marcar a diferença entre a norma culta, indispensável na escrita formal, e as variantes populares da língua, admissíveis na linguagem oral. Não se exime ela do ensino das regras. Mas, em vez de recitá-las, vale-se da técnica da reescrita.
"Noves fora um certo ranço ideológico, aqui e ali, o livro é de bom nível. Trabalho de gente séria, que merece crédito. E um pouco mais de respeito".
Fernando, creio que todos merecem respeito, inclusive a autora do livro que teve seu trabalho injustamente achincalhado. Ouçamos as ponderações de Sérgio Fausto e vamos todos tirar uma lição deste episódio. Abraços. Lucio Faria
Caro Lúcio Faria:
ResponderExcluirGrato pelo artigo esclarecedor de Sérgio Fausto. Concordo com o pressuposto por ele enunciado, que no meu entender deve pautar o debate de ideias. Deixei claro no meu artigo, mais ainda no debate, que meu artigo não é escrito apenas contra o livro. Também deixei claro que não o li. Nesse sentido, reconheço que posso estar errado. O que sei do livro diverge do que Sérgio Fausto afirma. Mas ele afirma que leu o livro, o que não é o meu caso. No debate viso principalmente o linguista Marcos Bagno e leitores que argumentaram contra mim em termos que insisto em afirmar que não passam de populismo pedagógico. Marcos Bagno afirma, por exemplo, que o aluno deve aprender a norma culta, mas usá-la apenas segundo sua necessidade e conveniência. É neste ponto que discordo dele e de todos que aparentam recusar-se a admitir que a norma culta é a norma regente na escola. Não sei de você leu a entrevista de Evanildo Bechara nas páginas amarelas da Veja desta semana. Foi um prazer constatar que os argumentos do meu artigo - que vão muito além do debate sobre o livro em questão, volto a frisar - concordam substancialmente o que ele diz na entrevista. Bechara é um dos mais qualificados gramáticos e linguistas do Brasil, enquanto eu não passo de um leigo atento ao estudo e debate dessas questões. Quanto a outros pontos do debate, já me cansei de repisá-los no que escrevi e pode ser conferido na página de comentários do blog Amálgama, assim como no artigo acima.
Fernando.
Caro Fernando, obrigado pela apreciação. Pude ler o livro e verificar que as observações de Sérgio Fausto são pertinentes. Estou disponibilizando abaixo um link para o capítulo do livro, peço que você verifique por favor e o contraponha às ponderações de Sérgio Fausto. O livro contém informações importantes para o debate uma vez que materializa diretrizes do MEC para o ensino de Língua Portuguesa. Grande abraço.
ResponderExcluirLucio Faria
Link para o capítulo do livro: http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/V6Cap1.pdf
Caro Lúcio Faria: Seguindo a linha do nosso debate, muito diferente da que me confrontou com vários dos leitores que leram meu artigo no Amálgama, postei acima seu comentário e o link que remete ao capítulo do livro em questão. Li o capítulo, Lúcio. De fato,reconheço agora que o livro propõe meios de ensino da língua bem distintos dos que foram asperamente criticados pela mídia. Não estou isentando meu artigo. O que friso é que ele se pauta por uma linha distinta de crítica. As ponderações relativas à distinção entre língua falada e língua escrita são consistentes. Note que nunca neguei isso. Digo o mesmo no meu artigo e me cansei de repisar esse argumento debatendo com os leitores mais exaltados. O livro, no entanto, caracteriza a norma culta apenas como expressão de poder e prestígio. Este é um dos pontos fortes da minha divergência, que sustento. Tentei explicar no meu artigo por que o domínio da língua culta é mais do que expressão de poder e prestígio. Um abraço para você, Lúcio, e muito grato pela linha de condução do debate que nos esclarece e, também espero, esclarece o eventual leitor desta página.
ResponderExcluirFernando.