sábado, 14 de maio de 2011

Modernismo e Cultura


Modernismo: conceito e aspectos culturais.

Mais que um movimento literário ou mais amplamente artístico, como é no geral compreendido nas letras e nas disciplinas relativas ao estudo das artes no Brasil, o modernismo foi de fato um movimento muito mais abrangente. Por isso é justo propor neste artigo um conceito que melhor expresse o que representa para a história da arte e da cultura brasileiras no século XX. Como bem observa Antonio Candido, nosso crítico mais lúcido e qualificado, o modernismo traduz um amplo e complexo movimento de mudanças culturais na sociedade brasileira. Essa realidade pode ser melhor compreendida se consideramos a obra dos seus dois representantes maiores: Mário de Andrade e Oswald de Andrade.

Embora praticamente inseparáveis durante a fase inicial do modernismo, também conhecida como a fase heroica do movimento, Mário e Oswald eram personalidades muito diferentes, embora não faltasse quem os confundisse até como parentes. Ora, as diferenças entre ambos eram nítidas até do ponto de vista físico. Mais do que poetas e escritores literários, como são convencionalmente identificados, ambos tiveram participação decisiva na renovação das artes e da cultura. Questões como as dos estudos de interpretação da nossa formação históricocultural e da nossa identidade, de que mais adiante cuidarei, ocupam lugar de relevo na obra de ambos.

Importa deixar claro, visando melhor justificar o conceito de modernismo que aqui proponho, que a própria poesia que ambos realizaram traduz um esforço de compreensão da nossa formação como uma cultura singular, assim como uma tentativa de definir a nossa identidade de povo colonizado e dividido entre a Europa e nossa herança indígena e africana. Livros como Paulicéia Desvairada (1922), marco inaugural da poesia moderna brasileira, e Clã do Jabuti (1927), de Mário de Andrade, e Pau-Brasil (1925), de Oswald de Andrade, renovaram a poesia brasileira tanto do ponto de vista formal quanto temático. Atentando em particular para este, o ponto de vista temático das obras, notamos a transparente preocupação de refletir sobre as nossas características culturais a partir das origens da nossa formação. É assim que Oswald de Andrade retoma os historiadores e cronistas coloniais para compor seu livro acima indicado. Bastaria correr os olhos pela composição deste livro, Pau-Brasil, especialmente as seções intituladas História do Brasil e Poemas da colonização.

Dentro da perspectiva acima indicada, a obra de ambos alcança seu ponto culminante nos anos 1920 em Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e no “Manifesto Antropófago” (1928), de Oswald de Andrade, precedido pelo “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” (1924). Nestas obras ambos traduzem sua concepção nacionalista do modernismo, que na sua fase inicial caracterizou-se por seu empenho internacionalista sob a influência direta das vanguardas europeias.

O caráter nacionalista do modernismo se define nitidamente a partir de 1924. O marco dessa conversão do movimento ao nacionalismo foi a viagem que um grupo de modernistas de São Paulo fez às cidades históricas de Minas Gerais. Esses modernistas (Mário, Oswald, Tarsila do Amaral, entre outros) empreenderam a viagem para mostrar parte significativa do Brasil ao poeta suíço-francês Blaise Cendrars, um dos grandes símbolos da poesia de vanguarda na Europa, acolhido em São Paulo por Paulo Prado, membro da elite cafeeira de São Paulo e patrocinador do modernismo. Ao guiarem Cendrars pelas regiões e paisagens mais singulares e pitorescas do Brasil, os modernistas acabam ironicamente descobrindo seu próprio país que até então ignoravam. O fato de identificarem essa viagem como “viagem de descoberta do Brasil” é revelador da descoberta que fizeram do seu próprio país enquanto ciceroneavam o poeta europeu.

O episódio acima descrito ilustra uma característica estrutural da nossa formação cultural, assim como da nossa identidade. Como todo povo de largo passado colonial, dividido entre a Europa e o país novo, fruto do encontro e entrechoque entre a Europa e a América, entre a cultura europeia, a indígena e a africana, somos ao mesmo tempo europeus, indígenas, africanos e outras misturas. Somos acima de tudo isso: mestiços, povo formado a partir da mistura de múltiplos elementos que se compuseram numa identidade nova, brasileira, a partir de complexos processos de aproximação e conflito, dominação e mistura.

O problema é que nossas elites, alienadas da sua própria cultura e do seu próprio povo, eram incapazes de se espelharem na realidade concreta do seu próprio país, na realidade baseada nas características acima indicadas. Daí a situação irônica acima descrita: elas precisam apresentar o Brasil ao estrangeiro, a um membro da elite intelectual europeia, para afinal se darem conta do Brasil. Pois os aspectos do Brasil que fascinaram Blaise Cendrars eram exatamente aqueles que nos diferenciam da Europa, aqueles que temos de próprio e que nossas elites reprimiam na sua postiça identidade europeia. Noutras palavras, o que fascinava Blaise Cendrars, assim como acontece com os estrangeiros que no geral nos visitam, é o que temos de diferenciadamente brasileiro: as paisagens históricas, o carnaval, nossas expressões artísticas, os costumes típicos do nosso povo e das nossas regiões diferenciadas por circunstâncias de vida e formação econômica e social etc.

Nossos modernistas, sobretudo Mário e Oswald de Andrade, lideraram um grande movimento de renovação artística e cultural e produziram uma obra identificada com esse movimento tendo as questões acima indicadas como horizonte de sua atividade criativa. Por isso produziram uma obra que vai muito além dos marcos meramente literários, como antes assinalei. Nesse sentido, a obra de Mário de Andrade é ainda mais rica e representativa do que a de Oswald de Andrade. Grande estudioso dotado de extraordinária capacidade de trabalho e realização, Mário devotou-se à sua obra com autêntico espírito missionário, com o espírito do grande reformador cultural que efetivamente foi. Sua obra, de grande abrangência temática, testemunha a observação que acabo de fazer. Além da obra convencionalmente catalogada no âmbito da literatura (poesia, romance, conto, crônica e crítica literária), Mário aventurou-se pelos estudos do folclore, do qual foi um dos primeiros pesquisadores qualificados, da música, erudita e popular, das artes plásticas, do cinema, da fotografia, da antropologia, dos estudos etnográficos etc. Como educador e intelectual empenhado no exercício da política cultural, ele foi também um extraordinário renovador da nossa cultura.

O movimento antropófago, vertente radical e anarquista do modernismo, irrompeu em 1928 nas páginas da Revista de Antropofagia. Ele se afirma em tom barulhento e polêmico, refletindo assim características marcantes de Oswald de Andrade, seu idealizador e líder. A antropofagia, tal como concebida por Oswald, representa uma das mais extraordinárias e eficazes estratégias de luta contra a nossa dependência cultural. Artista de grande talento intuitivo, Oswald baseou-se nos rituais canibalistas dos indígenas brasileiros para enfrentar a questão da nossa dependência cultural da Europa. Assim, ele converte o ato de devoração canibal do inimigo colonizador numa metáfora de combate ideológico que nem se confunde com o nacionalismo que rejeita a cultura estrangeira fechando fronteiras contra o mundo, o que é de resto impossível, nem adere acriticamente a qualquer influência externa. Sua atitude antropofágica consiste, noutras palavras, em devorar tudo o que vem do estrangeiro com o espírito do canibal que comia o inimigo para se fortalecer. Esclarecendo melhor o sentido da metáfora, devemos devorar e digerir todas as influências estrangeiras que sirvam para fortalecer nossa cultura.

Essa estratégia de luta contra a dependência cultural foi retomada nos anos 1960 por movimentos de vanguarda como o concretismo, o tropicalismo e o Teatro Oficina. Caetano Veloso e Gilberto Gil, aliados aos concretistas, sobretudo a Augusto de Campos, retomaram as ideias de Oswald de Andrade para criar uma música brasileira contrária à ideologia nacionalista dominante na MPB (Música Popular Brasileira), corrente dominante na era dos festivais de música e dos movimentos de oposição à ditadura militar em meados dos anos 1960. Já nesse momento, quando a televisão começava a dominar o sistema de comunicação cultural brasileiro, eles adquiriram a consciência da impossibilidade de um nacionalismo fechado contra o fluxo da cultura de massa e das influências da cultura internacional, sobretudo a proveniente dos Estados Unidos. Por isso, seguindo o exemplo proposto por Oswald de Andrade, eles se entregam à devoração crítica do pop internacional mesclando sem preconceito o rock e o baião, o berimbau e a guitarra, o rural e o urbano, o luxo e lixo da cultura de massa brasileira. Gilberto Gil condensou numa frase precisa a estratégia antropofágica adotada por ele, Caetano Veloso e os seguidores do tropicalismo: “Existem muitos modos de fazer música; eu prefiro todos”.

Os desdobramentos do modernismo nos anos 1930, também de grande renovação sociocultural, confirmaram ainda mais o caráter de movimento de renovação cultural do modernismo. Como a essa altura ele tinha já se consolidado como movimento triunfante nas artes e na cultura geral do país, muitos dos seus representantes integraram-se a instituições governamentais para imprimirem forma efetiva a seus projetos. A grande expressão dessa mudança, que Antonio Candido acertadamente designou como o processo de rotinização do modernismo, foi a experiência vivida por Mário de Andrade como diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo entre 1935 e 1938. Apoiado pela colaboração decisiva de alguns dos seus companheiros de luta modernista, Sérgio Milliet e Rubens Borba de Morais, Mário contou ainda com os apoios também decisivos de Paulo Duarte, articulador político das ações culturais do Departamento, e Oneyda Alvarenga, discípula dileta de Mário e apaixonada estudiosa da música.

Ainda nesse decênio, o dos anos 1930, Mário de Andrade dá forma, atendendo a um pedido de Augusto Meyer, seu chefe no Instituto Nacional do Livro durante a gestão de Gustavo Capanema, ministro da Educação e da Saúde, ao anteprojeto da enciclopédia brasileira. Infelizmente o anteprojeto viveu e morreu como tal. Aliás, sobreviveu, já que foi afinal publicado em 1993. Esta obra irrealizada ilustra muito bem a amplitude dos interesses culturais de Mário de Andrade, que são no fundo os interesses e ambições do movimento cultural que ele, mais que qualquer modernista, melhor encarnou.

Outra evidência justificadora do conceito de modernismo que neste texto proponho é observável na trajetória de outros modernistas de grande importância infelizmente omitidos num mero resumo restrito à demonstração de um conceito. Tal qual Mário de Andrade, modernistas como Sérgio Buarque de Holanda e os já citados Sérgio Milliet, Paulo Prado e Rubens Borba de Morais partiram da literatura e da crítica literária para horizontes intelectuais mais amplos. Sérgio Buarque, ainda muito jovem, fundou e coeditou o periódico Estética, um dos grandes veículos de difusão e debate do ideário modernista. Lançado logo em seguida ao esgotamento de Klaxon, periódico inaugural e oficial do movimento, Estética torna-se um dos focos do debate cultural do momento, anos 1924 e 1925. Na década seguinte lança, em 1936, seu livro de maior repercussão até o presente, embora não fosse o seu preferido. Refiro-me a Raízes do Brasil, que será objeto de um artigo exclusivo dentro da série que estou escrevendo. Daí Sérgio Buarque deriva para as pesquisas e estudos históricos dos quais resultarão suas obras mais sólidas e permanentes na historiografia brasileira: Monções (1945), Caminhos e Fronteiras (1957) e Visão do Paraíso (1959).

Quanto a Sérgio Milliet, embora antes de tudo um crítico da literatura e das artes, distinguiu-se como estudioso da sociologia e da história, como o comprova seu livro Roteiro do Café (1938). Sua obra de crítico mais importante está reunida nos dez volumes do seu Diário Crítico. Paulo Prado, antes mencionado como patrono do modernismo, dedicou-se aos estudos de história regional e lançou em 1928 um ensaio de interpretação do Brasil que é ainda objeto de muita atenção crítica dos estudiosos: Retrato do Brasil. Por fim, algumas palavras relativas a Rubens Borba de Morais. Modernista da primeira hora, assim como todos aqui citados, escreveu um livro de crítica de ideias muito esclarecedor sobre as características iniciais do modernismo: Domingo dos Séculos. Nos anos 1930, além de colaborador decisivo de Mário de Andrade no Departamento de Cultura, distinguiu-se como especialista em biblioteconomia.

Referências bibliográficas:
Mário de Andrade. “O movimento modernista”, in Aspectos da Literatura Brasileira. 6ª. edição. São Paulo: Martins, 1978.
Antonio Candido. “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”, in Literatura e Sociedade. 8ª. edição. São Paulo: T. A. Queiroz; Publifolha, 2000.
Alfredo Bosi. História Concisa da Literatura Brasileira. 34ª. edição. São Paulo; Editora Cultrix, 1994.
Wilson Martins. A Ideia Modernista. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; Topbooks, 2002.
Ver também o artigo de síntese sobre modernismo e ciências sociais cujo link anoto abaixo:
http://fmlima.blogspot.com/2010/06/modernismo-e-ciencias-sociais.html

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