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terça-feira, 3 de novembro de 2015

Se nos oriente


Valéria, o que valeria
o metro desta poesia
que à luz da tarde improviso?
Como moldar, traduzir
esse desejo de ir
além do que já preciso?

Preciso dar luz e forma
à prosa que vai e torna
a enredar-te com Freyre.
Essa viagem tão linda
vai do Oriente a Olinda
do latifúndio ao alqueire.

É variante de ensaio
novena em noite de maio
essa confessa pulsão
que faz de Freyre e de ti
um sonho de ir e vir
doutro Brasil à paixão

que arde em teu coração
fundindo afeto e razão
o Outro e seu Ocidente.
Tudo mal feito e transcrito
o que aqui vai e dito
tão pouco é que desmente

o que intentei versejar
entre te ler, te amar
nas linhas da amizade
que há tanto nos concilia.
Mas onde a arte, a poesia
no sopro, na luz do dia
que nos irmana em saudade?

Recife, 2 de dezembro de 2011.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Memórias de um Leitor V


A áspera realidade da pobreza, não raro resvalando para a miséria, é prodigamente descrita na tradição literária nordestina, também no cinema, nas artes plásticas, na história social e saberes conexos. Vivendo nas ruas e bairros do Recife num tempo em que as fronteiras de classe eram bem menos nítidas, li com familiaridade inconsciente romances como O Moleque Ricardo, de José Lins do Rego e a tetralogia Um cavalheiro da segunda decadência, de Hermilo Borba Filho. Daí passei para a obra de Josué de Castro, notadamente Sete palmos de terra e um caixão. Também João Cabral de Melo Neto, com Morte e vida Severina, marcou de forma profunda minha consciência das condições iníquas que ainda hoje caracterizam nossa realidade social.
Corrigindo-me a tempo, ou sendo mais preciso, o que designo por “familiaridade inconsciente” é meramente a pobreza e a miséria enquanto fatos ou dados objetivos integrados desde a infância à minha experiência social. Reencontrar essa realidade transposta para o registro da invenção ficcional e da análise histórica e sociológica foi passar a encarar com estranhamento crítico algo decisivo para imprimir consciência política à minha percepção de leitor. Foi por essas vias e fontes que politizei minha relação com o mundo próximo e imediato do subdesenvolvimento nordestino, assim como também com o mundo social mais amplo. Noutras palavras, fui gradualmente captando em algumas das leituras que agora registro os determinantes externos do subdesenvolvimento do Nordeste e, por extensão, do Brasil. A isso acrescentei outra ordem de determinação: a das relações de poder interregional. Para integrar esses fatores complexos numa figura dotada de alguma coerência, inserindo o particular imediato, aderente à minha experiência social espontânea, no contexto político global, concorreram de forma decisiva minha leitura de Crimes de guerra no Vietnam, de Bertrand Russell, e a leitura de articulistas políticos como Otto Maria Carpeaux, Paulo Francis, Alceu Amoroso Lima, que na velhice rejuvenesceu politicamente passando a ser um dos críticos mais intransigentes e corajosos da ditadura militar, Antonio Callado, Carlos Heitor Cony e muitos outros que concorreram para politizar minha noção até então inocente da realidade do mundo. Como escreveu Graham Greene em The quiet American, “Innocence is a kind of insanity”. Muitas outras circunstâncias, algumas puramente acidentais, importaram para adensar minha consciência crítica conduzindo-me para a vertente das ideologias de esquerda. Não me detenho na reconstituição desse processo para não me desviar em demasia da rota retorcida dessas minhas memórias primariamente subordinadas à minha experiência de leitor.
Crimes de guerra no Vietnam, de Bertrand Russell, me caiu nas mãos por mero acaso. Alguém emprestou-o a minha irmã Zuleide, que vivia numa outra esfera de realidade e interesse, e assim ele acabou nas minhas mãos. A essa altura, entre 1969 e 1971, tendi progressivamente a envolver-me com a realidade política através da leitura de obras de ciências sociais, da própria literatura e do cinema. Outro fato que decisivamente me despertou para a política foi minha amizade com algumas pessoas de esquerda, no geral confessadamente comunistas. A primeira delas foi Urariano Mota. Conheci-o quando nos candidatamos a um emprego na empresa que editava o guia telefônico do Recife. Perdi um emprego, mas ganhei uma amizade. Nossa conversa revelou-nos de imediato afinidades literárias, políticas e musicais. Daí para a amizade estreita e constante a passada foi curta. Através dele, fiz também amizade com José Antônio Spinelli. Considerado o meio em que eu vivia, a aridez mental e a alienação política nele dominantes, Spinelli impressionou-me intelectualmente. Foi a primeira pessoa que me falou de Sartre, de vários intelectuais comunistas influentes e tudo isso aprofundou meu interesse pelas questões políticas da época. Meu ingresso na Faculdade de Direito, em 1971, consolidou e ampliou meus vínculos políticos com a realidade precisamente nas circunstâncias mais perigosas para quem ousasse envolver-se com essas coisas, já que foi precisamente durante esses anos que a ditadura se extremou na repressão implacável contra a minoria numericamente insignificante que se atreveu a desafiá-la, seja através da luta armada, seja através da oposição pública e ativa. Mas corto caminho para novamente não enveredar por digressões impertinentes.
Viver no Recife, então quanto agora, era esbarrar na pobreza e na miséria a cada esquina da cidade. A diferença que importa neste passo salientar é que então havia menos violência nas ruas, que ainda eram do povo, contanto que não se atrevesse a contestar a ditadura. O centro do Recife, também à diferença de hoje, era o centro da vida social da cidade. Havia os cinemas, as livrarias, os bares e sobretudo uma atmosfera de livre convívio nas ruas isenta das zonas de segregação hoje correntes. Além de freqüentar os cinemas do centro (o São Luiz, o Moderno, o Trianon e o Art Palácio), sem contar as salas de subúrbio já em vias de desaparecimento imposto pela crescente difusão da cultura televisiva, vivia nos bares do centro da cidade com os amigos, todos de esquerda.
Gilberto Freyre enfatiza em Sobrados e Mucambos os processos de mudança social descritos na dimensão da longue durée, como escrevem os historiadores franceses, que modificaram de forma profunda e irreversível os vínculos de confraternização atenuantes dos antagonismos implicados nos extremos senhor e escravo, casa-grande e senzala. O fenômeno da urbanização, desatado ao longo do século 19, alterou radicalmente as zonas de confraternização típicas da nossa sociedade colonial lastreada no patriarcalismo fixado no latifúndio monocultor e na escravidão. A transposição gradual dessa forma de organização social e cultural para a cidade rompeu os elos de confraternização tradicionais. Na interpretação otimista de Freyre, no entanto, eles se refazem no espaço da cidade através das procissões, das festas religiosas, do carnaval e de toda essa agregação festeira que pipoca a cada esquina ou espaço público ainda não privatizado pela sanha predatória das empreiteiras e seus prepostos, os políticos corruptos ou apenas inconscientes do caos urbano e das consequências desastrosas da política insana que praticam.
Se hoje as zonas de segregação tendem a acentuar-se, não obstante toda a ideologia “multiculturalista” e os mitos persistentes da nossa cultura integradora, naquele momento o centro da cidade, como já frisei, era ainda o espaço fundamental de vida associativa do Recife. Apesar da repressão política impiedosa, disseminada na universidade, notadamente na Faculdade de Direito, e nos pontos de maior agregação dos grupos politizados, vivíamos nos bares mais badalados, como o Mustang, na Avenida Conde da Boa Vista, nos cinemas, livrarias e sobretudo nas ruas. Lembro-me ainda dos papos sobre política e literatura, das nossas conspirações inviáveis e românticas às margens do Capibaribe e nas ruas onde circulávamos a qualquer hora do dia e da noite. O perigo que temíamos rondava na sombra e nada tinha a ver com a bandidagem marginal hoje corrente, bandidagem da qual nos protegemos fechados dentro da fortaleza do shopping, do condomínio policiado por câmeras, portões lacrados, alarmes eletrônicos e muros intransponíveis, não raro eletrificados. O Recife era outro. Não muito melhor, talvez pior, mas desse ponto de vista sem dúvida melhor. Em suma, havia ditadura, politização da juventude sem vias de acesso à militância institucionalizada, repressão política feroz. No mais, as ruas e o espaço público, embora sempre precário, eram ainda do povo.
Foi quando esse clima ideológico estava ainda se esboçando na minha vida pessoal que li Crimes de guerra no Vietnam. Diria simplesmente que representou um choque mental e ideológico na minha vida. Até então, minha consciência da cultura americana, assim como do que representava no mundo, era moldada sobretudo pelos filmes made in Hollywood. Noutras palavras, era um inocente do Leblon, lembrando o poema de Drummond. Cultuava os mitos do cinema americano, admirava a democracia americana, a música americana difundida pela cultura radiofônica e fonográfica da época e evidentemente vivia com minha imaginação erótica atormentada por Marilyn Monroe, Ava Gardner, Gina Lollobrigida, Elizabeth Taylor, Natalie Wood, Kim Novak, Doris Day e outras figuras mitológicas. Bertrand Russell revelou-me algo das entranhas da dominação imperialista imposta pelos Estados Unidos não apenas ao Vietnam, onde explodia a primeira guerra totalmente coberta pela mídia mundial, mas também ao Brasil e ao conjunto da América Latina. Foi um choque que suprimiu de vez minha inocência ideológica.
Outro sintoma das turbulências ideológicas da época associadas à minha experiência de leitor foi a emergência do boom da literatura hispano-americana. A difusão internacional desta literatura foi fruto antes de tudo de fatores políticos como o combate às ditaduras impostas praticamente a toda a América Latina, as lutas pela descolonização dentro do clima da guerra fria e o antiamericanismo reativo, fruto da política imperialista desencadeada pelos Estados Unidos em todo o mundo não-comunista. É claro que esse clima ideológico foi decisivo para que muitos jovens se bandeassem para o comunismo. Os de tendência mais moderada, abrangendo um leque que ia do catolicismo socialista ao liberalismo de esquerda, como era o meu caso, tornavam-se companheiros de viagem dos radicais. O clima de antagonismo ideológico, no entanto, reduzia todos esses matizes em termos práticos a dois pólos: direita versus esquerda, capitalismo versus comunismo. Na hora do pega pra capar, as forças repressivas nunca distinguiram quem do outro lado era comunista, simpatizante, companheiro de viagem, nem mesmo o inocente útil ou azarado, pego no “local do crime” na hora em que todos os gatos eram vermelhos.
Apesar da atmosfera ideológica acima grosseiramente pincelada, fui sempre um politizado malgré moi. Fosse outro o tempo, outras as circunstâncias, outra a geração dentro da qual me formei, jamais teria me metido com política, jamais teria feito o pouco que fiz dentro das possibilidades objetivas e subjetivas do tempo. O pouco que fiz foi feito contra o meu medo, minha aversão temperamental à política, minha consciência de que não podia ser indiferente, também um sentimento de solidariedade e compaixão inculcado por anos de leitura e convívio lastreados por valores humanistas cuja abrangência ia do catolicismo ao marxismo. Não preciso declarar que a política constitui um componente fundamental da consciência de todo intelectual digno deste termo, ainda quando se recuse à militância ou seja avesso à ação prática característica das formas e processos implicados no exercício do poder, nos modos de ordenação política da realidade. Sei de tudo isso, incorporo tudo isso à minha representação mental da realidade, mas confesso e reitero minha aversão à política compreendida no sentido prático e dominante do termo.
Voltei a derivar para as considerações político-ideológicas porque, no momento que considero dentro destas memórias de leitor que vou canhestramente compondo à deriva da memória, não há como dissociar minha experiência de leitor desse contexto que teima em enfiar-se nas linhas que vou cosendo tendo os livros como alvo prioritário. Isso explica o desvio que tomei em direção aos autores americanos de língua espanhola. Acho que o primeiro que li foi Gabriel García Márquez. Dele saltei para Juan Rulfo, Alejo Carpentier e Mario Vargas Llosa. Borges, hoje pairando por consenso crítico acima de todos, era então no mínimo silenciado. Li-o bem mais tarde. Um pouco antes conheci a obra de Ernesto Sabato e Manuel Puig. Minha leitura definitiva, direi mesmo suprema e insuperável dentro dessa linhagem procedente da língua espanhola, foi Dom Quixote, de Cervantes, que evidentemente nada tem a ver com os condicionantes ideológicos implicados nessa etapa da minha vida de leitor. Hoje os que mais leio e portanto elejo como preferidos são Borges, Octavio Paz, Mario Vargas Llosa e Ernesto Sabato.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Memórias de um leitor III


Graças à estante do meu tio, fundei no espaço da minha solidão uma ilha imaginária dentro do mundinho de Igarapeba regulado pelo tédio e a repetição. Foi a partir daí que me afastei gradualmente da vida de dissipação da vila, uma dissipação que por certo tornava a vida mais suportável: o salão de bilhar, onde a cachaça se misturava à fofoca, às bravatas sexuais tão caras ao nosso machismo, e o futebol acalorava as discussões fúteis e arengas sem propósito. Melhor ainda, claro, era praticá-lo no campo de futebol, também nas peladas improvisadas em plena Rua do Comércio. Os banhos de rio no geral associados ao voyeurismo e à masturbação à sombra das árvores ou entre as frestas de portas e janelas. A força do sexo, vibrando na carne trepidante de vida, é em última instância incivilizável. As normas da família o abafam, também as da religião, da escola, de toda uma complexa rede de controles e repressões, mas ele irrompe dos becos e frestas mais obscuras, vaza por vias até impressentidas. É uma batalha vencida a da civilização, compreendida no sentido preciso de repressão sumária da sexualidade à margem das práticas socialmente aprovadas e consentidas. Quem ceder à vontade delirante de suprimi-lo, não importa em nome de que ideal supremo, vai fatalmente adoecer, pois seus sintomas irreprimíveis encontram sempre um meio de viver no corpo, ainda que seja através da doença.

O tédio das primeiras horas da tarde, quando o sol retinia sobre as fachadas e telhados das casas semi-adormecidas, rendia os corpos áridos à lassidão que corroia o cotidiano da vila. Penso, no entanto, que me tornei o único habitante venturoso de Igarapeba quando descobri o mundo da imaginação humana comprimido na estante empoeirada do meu tio Edmundo. A chave da estante e a solidão fruída na cadeira de balanço da varanda à sombra do sol e da rotina sem alma fundaram o paraíso secreto que me converteu para sempre num explorador do mundo reinventado pela literatura. Nesse momento, a literatura era ainda provavelmente uma via de escape da realidade insípida, uma fuga do tédio indescritível nas fronteiras mesquinhas de uma vila. Mais tarde descobri que ela, no seu sentido mais pleno, é na verdade uma porta de retorno esclarecido à esfera irrecorrível e necessária da experiência. O leitor esclarecido não lê para fugir da realidade que lhe parece insuportável, mas para melhor compreendê-la e vivê-la com a lucidez de quem se sabe mortal e assim passa a exercitar-se na arte de habitar o presente. Hoje, quando sei que estou ficando velho, procuro ainda aprender que o presente é imenso e é o único tempo real. Por ser imenso, ele decanta e atualiza o que foi isento de nostalgia ou consolação regressiva. Por fim, sei do fim que me espera e procuro acolhê-lo como condição da necessidade que me define.

Evidentemente, as reflexões que intercalo na narrativa, como as do parágrafo precedente, não me ocorreram no tempo a que regridem minhas memórias de Igarapeba. Talvez convenha ainda esclarecer que a mudança de mentalidade decorrente da minha experiência de leitor é fruto de um processo que em muitos casos se estende através de anos. Considerando um exemplo específico acima narrado, o relativo à minha percepção ética da homossexualidade, com certeza não me bastou a leitura transformadora do De Profundis, de Oscar Wilde. Não me passa pela cabeça supor nem induzir o leitor a concluir que os processos de mudança de mentalidade que vivemos são automáticos, muito menos se consumam num simples ato. Ser de memória, deliberadamente imantado à linha de tensão entre presente e passado, pois tenho hoje consciência de que todo ser humano é portador de uma história, há muito aprendi que toda memória é sempre uma reconstituição do passado deformado pelas condições do presente. O passado não é nunca o passado refletido no presente; é sempre o passado que o presente reflete.

O lastro de valores e convicções que internalizamos através de um processo de socialização no geral inconsciente, determinado pelo meio social, demanda experiências e revisões muito complexas, não raro prolongadas e dolorosas, para que enfim uma mentalidade cultural renovada se cristalize. Reforço este argumento lembrando a lucidez habitual com que Montaigne nos seus Ensaios ressalta o quanto o ser humano é moldado pelos hábitos. Ensaiar um estudo de compreensão da mentalidade de um povo é antes de tudo ensaiar as formas e processos através do qual a realidade histórica se transforma retendo as linhas mais fortes e resistentes do passado, dos hábitos e tradições sedimentados no leito recoberto pelo fluxo perpétuo das águas. O fluxo das águas, metáfora da mudança permanente das sociedades no tempo, está sempre fluindo, mas sempre sobre o leito que imprime direção ao movimento. É por isso que esses processos se enquadram na categoria historiográfica da longue durée, como dizem os estudiosos dessas questões. Muita gente da minha geração subestimou a complexidade desses processos, além da força poderosa da tradição, porque na nossa juventude fomos embalados por uma concepção revolucionária da história que era na verdade uma projeção mítica do nosso desejo de mudança acionado por condições históricas hoje suprimidas do horizonte no qual se enquadra a experiência da juventude atual.

Prolongando ainda as considerações acima esboçadas, vivi por dentro, nas camas e fora delas, as mudanças radicais de comportamento que irromperam nos anos 1960. Foi sem dúvida uma década muito turbulenta, tão turbulenta que muitos a encararam como uma autêntica revolução. Sem dúvida, muito do que era autêntica e explosivamente novo naqueles anos revestia um caráter de mudança revolucionária consolidado pelo desdobramento do processo de mudança então detonado. Isso me parece verdadeiro sobretudo quando avaliamos a mudança radical da condição da mulher dentro de um intervalo de tempo relativamente muito curto. Em uma ou duas gerações a mulher conquistou direitos e ocupou espaços na sociedade absolutamente impensáveis quando recuamos um pouco no passado, notadamente num país de poderosas e seculares tradições patriarcais como o Brasil.

É também uma banalidade observar que todos esses processos de mudança cobram um preço bem alto àqueles que neles se empenham. Importa no entanto reiterar essa banalidade porque a mentalidade corrente, forjada pelo hedonismo consumista, alude a esses processos, diria que à realidade em geral, como se tudo dependesse do nosso desejo e vontade e toda fruição de prazer não implicasse algum tipo de preço ou consequência. Basta olhar à volta com um mínimo de atenção para perceber que tudo isso não passa de grosseira inconsciência ou mera ilusão vendida pelo mercado, única ideologia soberana no nosso tempo. As mudanças implicam custos, frequentemente altos e dolorosos. Qualquer mulher que ousou transpor a fronteira do passado patriarcal sabe o quanto precisou lutar e sofrer para conquistar direitos e privilégios hoje generalizados. Reiterando outro lugar comum, no capitalismo não existe almoço gratuito. Há quem atribua a frase a Margaret Thatcher. Como se tornou lugar comum, já não importa a fonte, mas a verdade do que diz. Acrescentaria apenas que o dito não se aplica tão somente ao capitalismo, mas a qualquer regime necessário de organização da vida coletiva. Em suma, tudo tem preço e alguém tem sempre que pagar a conta.

Muito do patriarcalismo que moldou nossa mentalidade está ainda infelizmente muito vivo. Parece-me ilusório acreditar que esse passado negativo pode ser superado dentro do horizonte previsível. O Brasil é um país de ritmos de mudança notavelmente lentos. Mesmo nos momentos de crise provocados por intensa pressão social, no geral predominam as forças conservadoras. Não é acidental o fato de o mais importante e influente intérprete do Brasil ser um intelectual de perfil nitidamente conservador. Refiro-me sabidamente a Gilberto Freyre. É inegável que foi antes de tudo um genial inventor do Brasil, uma personalidade extremamente complexa e contraditória, assim como a obra definitiva que legou à posteridade. Não tenho dúvida, entretanto, de que nele e na sua obra, pois que são em muitos sentidos inseparáveis, prevalecem os valores do Brasil patriarcal, que ele captou e interpretou de forma absolutamente única. Portanto, quem como eu aspira ao ideal de viver num país mais igualitário e civilizado, lutando ou não para mudá-lo, vai ter que esperar ainda muito tempo. Como a longo prazo todos estaremos mortos, lembrando uma frase antes muito citada, não estarei por aqui quando o Brasil, o eterno país do futuro, escrever nas suas fronteiras o romance que tanto sonhei ler, idealmente adicionando-lhe uma frase que gravasse minha passagem por esse mundo.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Entrevista sobre Gilberto Freyre


Fellipe Torres - Em Casa-grande & Senzala, Gilberto Freyre traça um paralelo entre a arquitetura da Casa-grande e o patriarcalismo. Seria possível atualizar a comparação ao observar a arquitetura moderna de arranha-céus, de apartamentos minúsculos onde impera o individualismo? O quanto do patriarcalismo enxergado por Freyre permanece em vigor na sociedade? Com que outros elementos ele coexiste?
Resposta - A pergunta é muito pertinente e infelizmente apoiada por muitas evidências. A força da tradição em Pernambuco, diria que no Brasil em geral, é extraordinária. Isso quer dizer que muitos traços nocivos do patriarcalismo e do escravismo dentro do qual fomos formados continuam bem vivos no presente. Gilberto Freyre (também Joaquim Nabuco, que antecipou muitas das intuições críticas de Freyre) teve olhar agudo para discernir esses traços. Basta conferir a obra de ambos. Essa herança me parece tão negativa que não posso opinar sobre o processo de acelerada expansão urbana do Recife sem qualificá-lo como simplesmente predatório. Incorporamos a modernidade e o capitalismo globalizado retendo algumas das piores forças do passado opressivo que herdamos. As evidências estão nas ruas e na nossa relação com os espaços público e privado; na arquitetura e na expansão comandada por políticos e empresários de mentalidade ainda senhorial. No fundo, são ainda coronéis dissimulados sob a aparência da nossa modernidade perversa. O exercício da democracia nestes trópicos autoritários e festeiros é ainda um grande mal-entendido, não obstante os avanços inegáveis.

F. T. - Em uma época em que a eugenia ganhava força com o nazismo, Freyre surgiu defendendo a miscigenação como uma forma de enriquecimento cultural e racial. Quais as mais relevantes heranças (dos índios, negros e portugueses) que vivenciamos até hoje como parte da cultura nacional?
R- Penso que a herança mais relevante consiste na revalorização da nossa condição de povo racial e culturalmente miscigenado. Ninguém concorreu mais para a reconciliação do brasileiro com sua real condição sócio-antropológica do que Gilberto Freyre. Mas importa reconhecer que a interpretação proposta por Freyre, e adotada até oficialmente, exerce funções ambíguas. Se de um lado ela realça uma integração social efetiva, de outro também mascara o vinco cortante de autoritarismo, racismo e profunda desigualdade social inerentes às nossas relações sociais.
Gilberto Freyre foi uma pessoa singularmente contraditória. Ele próprio tinha consciência disso. Aliás, ninguém explicou melhor Gilberto Freyre do que ele próprio nos muitos textos em que se debruçou sobre si próprio com uma obsessão narcisista sem precedente na nossa cultura. A deleitação narcisista com que falava de si próprio não anulava o olhar aguçado com que tantas vezes iluminou sua própria obra e personalidade. Na obra tardia, no entanto, o vinco do olhar autocomplacente prevalece e daí a tensão crítica e autocrítica baixa drasticamente. Mas o que queria acentuar ao derivar para essa linha de consideração era o fato de que ele foi um conservador otimista. Isso é raro e diria até contraditório. Sua interpretação otimista do Brasil tem sido infelizmente desmentida pelo próprio desdobramento de muitas das nossas características culturais tão louvadas na sua obra. Nossa expansão urbana, por exemplo, acima brevemente considerada, tende a criar zonas crescentes de segregação, fato que contraria sua visão integradora da nossa cultura. Basta observar a fronteira que isola o shopping Center da rua e das moradias tingidas de pobreza e miséria; o automóvel versus o transporte coletivo; os condomínios isolados da rua por altos muros, segurança privada e até cerca elétrica versus as favelas e mocambos onde os pobres se espremem entre o mangue e o esgoto a céu aberto. Enfim, depois de 125 anos de abolição formal da escravidão, uma paisagem urbana bem longe do otimismo pintado pela tradição mais otimista do nacionalismo cultural cujo representante mais ilustre é precisamente Gilberto Freyre.

F. T. - Gilberto Freyre exerceu forte influência na literatura, em autores como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Hermilo Borba Filho, Osman Lins... Na cultura contemporânea de modo geral (incluindo-se a literatura), ainda enxergamos traços de influência de Casa Grande & Senzala? Filmes como O som ao redor atualizam a temática?
R - Com certeza. A visão dominante de nacionalismo cultural, manifesta nas expressões artísticas e noutras formas de discurso sobre o Brasil, e aqui incluo ainda o discurso oficial e publicitário, é muito poderosa e portanto permeia o conjunto da nossa sociedade. Muitos dos nossos intelectuais e artistas contribuíram para a consolidação desse imaginário, desde modernistas como Mário de Andrade até o regionalista Ariano Suassuna. Mas não há dúvida de que o articulador supremo desse nacionalismo cultural foi Gilberto Freyre. Seu correspondente na literatura é Jorge Amado, cuja penetração no mercado literário internacional generalizou uma visão mítica e até folclórica do Brasil. Nesse sentido, Jorge Amado é mais uma criação de Gilberto Freyre do que o próprio José Lins do Rego. Quanto ao filme O som ao redor, confirma o que acabo de observar. Um dos grandes méritos do filme é precisamente atualizar na expressão fílmica a interpretação de Gilberto Freyre.

P - O universo acadêmico sempre foi bastante crítico em relação à produção freyriana, chegando a rejeitá-la em vários momentos. Como Casa Grande & Senzala é vista hoje pela academia? É uma obra estudada? Quais são as principais contribuições para a formação de novos profissionais e pesquisadores das ciências humanas?
R – A obra de Gilberto Freyre foi praticamente silenciada na academia durante a vigência da ditadura militar. Atenuado e diria hoje dissolvido o clima de antagonismo ideológico marcado pela intolerância mútua, a obra de Freyre passou por um processo de revalorização crescente. Hoje voltou a ser quase uma unanimidade. A obra dele está com certeza acima desses embates ideológicos e dos traços negativos da sua biografia, de resto bastante deploráveis e conhecidos. A crítica esclarecida e isenta sabe que é preciso distinguir obra e autor, obra e biografia. Duvido porém que ela esteja sendo estudada tanto quanto aparenta. Voltamos a falar muito elogiosamente da obra de Gilberto Freyre, mas muitos que se pronunciam sobre ela na academia baseiam-se nos comentadores e em apreciações muito parciais. O mais grave é observar que muitos dos que radicalmente o negavam sem o lerem passaram a louvá-lo com a mesma leviandade corrente nos círculos acadêmicos brasileiros.
Talvez a contribuição maior de Gilberto Freyre consista na forma como assimilou com muito discernimento crítico e criativo as teorias e métodos estrangeiros, a articulação complexa entre o nacional e o universal, a tradição e a modernidade. Foi explorando de forma genial essas vias complexas que Gilberto Freyre se tornou provavelmente o maior inventor do Brasil. O melhor livro já publicado sobre a formação intelectual de Freyre, refiro-me a Um Vitoriano dos Trópicos, de Maria Lúcia Pallhares-Burke, demonstra com rigor crítico e documental impecáveis isso que sumariamente assinalo.
Nota: Concedi a entrevista acima a Fellipe Torres, do Diário de Pernambuco. Tudo se processou através de e-mail. Fiz apenas uma exigência: que ele me enviasse o texto editado antes da publicação no jornal. Ele concordou. Para minha surpresa, descobri por acaso que publicou uma reportagem na edição de hoje, 2 de dezembro, sobre os 80 anos de publicação de Casa-Grande & Senzala e a realidade presente da expansão urbana do Recife. Cita algumas frases recortadas da entrevista que lhe concedi. Aparentemente, o jornal publicará no decorrer desta semana outras reportagens baseadas num paralelo entre a obra de Gilberto Freyre e outros aspectos da nossa realidade sócio-cultural. Em suma, Fellipe Torres não cumpriu os termos do nossos acordo informal. Mais uma razão, portanto, para que me sinta à vontade para postar a íntegra da entrevista no meu blog. Em tempo: tomei a liberdade de acrescentar um parágrafo ao texto antes enviado para ele.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Lendo Bandeira em Freyre



Nem o menino de oito anos se deixou, em Bandeira poeta, vencer, em tempo algum, por esse precoce velho de oitenta, nem o antecipado velho de oitenta, pelo renitente menino de oito. Sempre se completaram, sem muita desarmonia entre os dois. Como avô e neto dentro do mesmo indivíduo.
Gilberto Freyre.

Em vão te diz o espelho
no fato a crua verdade:
mira tua face de velho
a vida já te vai tarde.
II
Sim, velho, que hei de fazer
do que me vai e vai tarde
se um sopro de amanhecer
inda no peito me arde?

III
Na curva que me desenha
um vago perfil da idade
vislumbro um acordo na senha
que me perfaz a idade
IV
a idade mais eu e exata
além do ser convenção
fundindo no céu de prata
a idade do coração.
V
Não miro assim nem o velho
nem o menino em meu ser
mas ambos na flor do espelho
fundidos num só viver
de extremos entretecidos.
VI
Assim me vou in-ferido
Num mar além da aparência
rindo do golpe bandido
que não me tira a inocência.
VII
Lá se vão unos fundidos
em mim o velho e o menino
retendo os tempos vividos
no ser que é ser sendo sido.

Fernando da Mota Lima
Recife, 25 de setembro de 2001.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Formação do Brasil Contemporâneo



Formação do Brasil contemporâneo, obra publicada em 1942, completa a trilogia clássica da tradição intelectual conhecida como o pensamento social brasileiro. As duas obras que a precedem são Casa-Grande & Senzala (1933) e Raízes do Brasil (1936). O consenso crítico em torno dessa trilogia deriva de um prefácio de referência escrito por Antonio Candido em 1967 para abrilhantar a edição comemorativa dos 30 anos de Raízes do Brasil. Para ser mais preciso, o crítico distingue essas três obras como decisivas para a formação da sua geração, que percorreu diferentes etapas de formação acadêmica entre as datas limite fixadas entre a publicação da primeira e da última obra. O consenso crítico apenas confirmou e ampliou essa verdade ao converter as obras decisivas para a formação de uma determinada geração em trilogia clássica de toda uma tradição inscrita no desenvolvimento das ciências sociais brasileiras.

O primeiro livro de Caio Prado Júnior, Evolução Política do Brasil, foi por acaso lançado no mesmo ano em que Casa-Grande & Senzala veio a público. A coincidência merece registro porque as duas obras balizam duas vertentes fundamentais da sociologia brasileira associadas aos estudos de interpretação do Brasil. A de Gilberto Freyre, como sabemos, distingue-se como a obra suprema de base cultural de interpretação do Brasil, enquanto a de Caio Prado inaugura a vertente de base materialista. A fonte fundamental desta tradição cujo marco é Formação do Brasil Contemporâneo é a obra de Karl Marx, teórico mais importante do comunismo moderno.

O fundamento da concepção materialista à qual Caio Prado se filia consiste no reconhecimento das bases materiais da sociedade e da história humana. Traduzindo isso em termos mais claros, Marx e seus seguidores partem do princípio de que as necessidades materiais estão nas raízes da nossa existência. Antes de fazer qualquer outra coisa (arte, religião, ideias, leis e o conjunto das expressões de vida espiritual que Marx designa como sendo a superestrutura da vida social), o ser humano precisa comer, precisa trabalhar para garantir sua sobrevivência biológica. Visando tornar ainda mais clara a concepção materialista proposta por Marx e aplicada por Caio Prado à história da formação da nossa sociedade, transcrevo abaixo palavras esclarecedoras de Engels, o outro grande nome do comunismo moderno e amigo inseparável de Marx até a morte deste:
“Marx descobriu o fato simples (até então oculto sob a exuberância ideológica) de que os seres humanos precisam de alimento, bebida, roupa e abrigo acima de tudo, antes que se possam interessar pela política, ciência, arte, religião e coisas semelhantes. Isso significa que a produção dos meios materiais de subsistência imediatamente necessários, e com isso a fase existente de desenvolvimento de uma nação ou de uma época, constitui a base sobre a qual são construídas as instituições estatais, as interpretações jurídicas, as ideias artísticas e até mesmo religiosas. Significa que estas devem ser explicadas pela primeira, ao passo que a primeira foi no geral explicada como consequência das outras”. (Apud W. H. C. Eddy, Para compreender o marxismo, pp. 32-3).
Em termos teóricos, portanto, é preciso eleger as condições de vida material, ou econômica, para explicar as características fundamentais da nossa sociedade e da nossa cultura, o processo histórico através do qual ela se formou. Enquanto Gilberto Freyre e outros estudiosos da formação da nossa história social privilegiam a cultura, que no caso também compreende as condições de existência econômica da sociedade, Caio Prado coloca a organização econômica da sociedade acima de qualquer outro fator de ordem explicativa ou teórica.

Coerente com o princípio teórico acima indicado, Caio Prado rompe com a explicação de base cultural, exemplificada na obra de Gilberto Freyre, concentrando sua obra no estudo e análise das características econômicas que orientaram o processo de colonização do Brasil pelos portugueses. Especifico o termo colonização porque ele infelizmente não completou seu projeto original, que seria estudar o conjunto da formação da sociedade brasileira desde suas origens até o presente. Na verdade, Formação do Brasil Contemporâneo vem acrescida de um subtítulo que determina claramente os limites da obra: “Colônia”. Portanto, a obra se detém historicamente dentro dos limites da formação colonial do Brasil.

Importa no entanto salientar que o autor reconhece e enfatiza a persistência dessa formação colonial nas questões sociais do presente. É nesse sentido que, embora incompleto o projeto original, Formação do Brasil Contemporâneo foi e continua atual como fonte para a explicação das características dominantes na nossa sociedade e na nossa cultura. Noutras palavras, precisamos compreender as causas determinantes da nossa formação colonial para compreendermos adequadamente questões fundamentais do presente como nossos extremos de desigualdade social e econômica, nossa dependência cultural, o atraso observável nos nossos padrões de educação, saúde, organização urbana, transporte, segurança social etc. Em suma, é preciso saber o que fomos, de onde viemos, para saber o que somos e para onde iremos. Esse objetivo, suponho, está na raiz de todas as obras de explicação do Brasil. O que varia e até se choca, fazendo com que uma obra negue ou contradiga outra, é a forma como cada um desses estudiosos estudou nossa formação para elaborar a explicação do país contida em cada uma das obras realizadas.

É também coerente com a teoria materialista que adota o fato de Caio Prado conceder papel prioritário às bases econômicas da colonização do Brasil, assim como à questão das classes sociais. Estas, como sabemos, derivam da natureza econômica da sociedade traduzida nas condições de distribuição de renda. É isso, noutras palavras, que está na raiz da distinção que estabelecemos entre o senhor e o escravo, o empregador e o empregado, o capitalista e o trabalhador assalariado. Enquanto Gilberto Freyre reconhece esses extremos sociais baseado na objetividade das relações econômicas, mas acentua os fatores culturais que os aproximam, como a miscigenação racial e cultural, Caio Prado se concentra nas relações de conflito decorrentes da exploração econômica imposta pelo dominador ao dominado. Nesse sentido, os fatores culturais são secundários. É por aí que se explica a ruptura de Caio Prado com a vertente culturalista de explicação do Brasil acima anotada.

Passando especificamente às linhas gerais que compõem a obra, Caio Prado identifica no início do século xix, como de resto enfatiza já nas linhas iniciais da Introdução, o momento decisivo na história da formação da sociedade brasileira contemporânea. Nesse momento se definem tanto o esgotamento de uma realidade, a do sistema colonial que governou toda a nossa história anterior, do início da colonização à transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, quanto o advento de uma nova fase na evolução do Brasil. Esta fase, que compreende momentos fundamentais, como o processo de independência política, o Império regido por D. Pedro II, a Abolição e a proclamação da República, desenha o longo e complexo processo através do qual se vai forjando o Brasil contemporâneo.

No capítulo intitulado “Sentido da colonização” Caio Prado sintetiza as bases profundas da nossa formação, que são, como já salientei, de natureza econômica. Descrevendo o processo geral de colonização do Novo Mundo, ressalta ele como os objetivos iniciais de todos os colonizadores europeus eram estritamente econômicos, voltados para a apropriação fácil e o comércio de riqueza. Essa característica marcou, de início, tanto a colonização portuguesa quanto as demais. Foi bem mais tarde que se diferenciaram as colônias de povoamento e as colônias de exploração. Também essa diferenciação resultou de determinações externas, isto é, de fatores ligados à história política e religiosa europeia. As colônias de povoamento foram típicas das regiões temperadas e as colônias de exploração típicas das regiões tropicais, estas baseadas na grande propriedade e no uso da mão de obra escrava organizadas como grandes empresas comerciais a serviço das demandas do mercado europeu. Em síntese, sociedades coloniais do tipo do Brasil formaram-se voltadas para fora, subordinadas aos interesses e às demandas econômicas do mercado externo. Como frisa o próprio autor,
“Se vamos à essência da nossa formação, veremos que nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. E com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras”. (Formação do Brasil Contemporâneo. S. Paulo: Publifolha, 2000, p. 20).
A citação acima se completa com uma outra observação feita por Caio Prado logo adiante: o sentido da formação do Brasil contemporâneo baseia-se nas linhas citadas.
No conjunto, a obra compreende, além da Introdução e do capítulo intitulado Sentido da colonização, três seções compostas por um número variável de capítulos referentes a cada uma delas: a primeira seção trata do processo de povoamento do Brasil, do litoral, onde de início se concentra, à ocupação progressiva do interior; a segunda, que ocupa a parte central da obra e é a determinante do conjunto estudado, prende-se à organização da vida material. Por fim, a vida social.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Casa-Grande & Senzala


A publicação de Casa-Grande & Senzala, em 1933, representou sem exagero uma revolução no desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Antonio Candido ressaltou num célebre prefácio escrito para Raízes do Brasil que o livro de Gilberto Freyre foi um dos três decisivos na formação da sua geração. Esse juízo tornou-se tão consensual que hoje muitos estudiosos aludem à apreciação de Antonio Candido para apontar as duas obras acima, acrescidas de Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., como as três grandes obras clássicas do pensamento social brasileiro. Darcy Ribeiro foi mais além. Escrevendo um outro prefácio, este para a edição venezuelana do próprio livro de Gilberto Freyre, afirmou com todas as letras que Casa-Grande & Senzala era a obra mais importante da cultura brasileira.

Inicio este artigo com o parágrafo acima para sugerir ao leitor a importância inegável que esta obra passou a exercer na nossa história cultural desde o momento em que foi publicada. Gilberto Freyre escreveu uma obra ainda hoje reconhecida como fundamental para se estudar e conhecer o Brasil, sua formação cultural e suas características mais fortes. Ela mudou a maneira de o brasileiro, sobretudo o brasileiro da elite, encarar a si próprio como brasileiro. Levando adiante e consolidando tendências culturais inauguradas por alguns estudiosos isolados do passado, e mais amplamente pelo modernismo, como observei ao estudar este movimento e a contribuição dos seus dois representantes mais significativos, Mário e Oswald de Andrade, em outro artigo postado neste blog, Freyre inverteu a imagem dominante no seu tempo, uma imagem ainda muito influenciada pela antropologia racista de procedência europeia. Baseada em teorias de cunho determinista, tanto do ponto de vista geográfico quanto racial, ela representava o Brasil como um país inviável ou incapaz de ingressar na corrente da civilização ocidental.

Ao publicar Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre expõe evidências e argumentos que invertem essa visão do Brasil. Antes de tudo, como ele próprio salienta no prefácio também célebre escrito para a primeira edição do livro, sua obra baseia-se numa distinção fundamental entre raça e cultura. Discípulo do grande antropólogo Franz Boas, de quem foi aluno nos EUA, Freyre reuniu farta documentação, também inovadora dos estudos sociais no Brasil, para refutar as teses racistas. Além disso, também dialoga com a tradição nacional tanto aproveitando lições de antecessores que convergem com suas teses, como é o caso da obra de Joaquim Nabuco, quanto refutando contemporâneos como Oliveira Vianna e Paulo Prado, tendentes seja a adotar teses racistas, seja a depreciar os valores culturais brasileiros.
Casa-Grande & Senzala constitui a primeira parte de uma obra mais ampla e ambiciosa designada por Gilberto Freyre como uma “Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil”. A segunda parte, lançada três anos mais tarde, intitula-se Sobrados & Mucambos. Enquanto a primeira obra concentra-se na formação da nossa sociedade patriarcal durante o período colonial, a segunda prende-se à decadência do patriarcalismo na contracorrente da nossa formação urbana. A terceira parte, publicada bem mais tarde, 1959, sob o título Ordem e Progresso, concentra-se no advento do Brasil republicano e na transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado.

O título da obra já indica sinteticamente muito do seu conteúdo e das teses sustentadas pelo seu autor ao longo de mais de cinco centenas de páginas. Mais do que meros designativos de duas formas de moradia ou habitação, a casa-grande e a senzala, na concepção de Freyre, condensam todo um sistema social. Em primeiro lugar, elas constituem antagonismos sociais, já que a casa-grande é a habitação do senhor de escravos, do patriarca e latifundiário todo-poderoso da nossa sociedade colonial, enquanto a senzala é a moradia do escravo negro importado da África. Mas esse antagonismo é abrandado – ou adoçado, como diz Freyre abusando da metáfora demasiado integradora – pela miscigenação que marcou toda a nossa formação social.

Importa salientar que a miscigenação, nas palavras do próprio autor, não constituiu um fenômeno apenas físico ou biológico. Ela foi também cultural. Suas causas ligam-se, em primeiro lugar, à experiência de miscigenação vivida pelo português antes mesmo de vir colonizar o Brasil. Sua condição bicontinental, espremida entre a Europa e a África, tornou-o adaptável à miscigenação com o árabe e o judeu. A isso somou-se o fato de que, provindo de um país pequeno de população também pequena para povoar a imensidão do nosso território, o português chega ao trópico antes de tudo como um aventureiro sedento de riqueza fácil e gozo sensual. Como havia durante grande parte da colonização escassez de mulher branca, ele facilmente se acasalou com a índia.

Essa foi a base da nossa miscigenação que se estendeu através dos tempos coloniais e hoje está completamente consolidada na nossa formação cultural. Como o indígena resistiu ao trabalho forçado, necessário para que o português realizasse seu projeto de enriquecimento no trópico através da monocultura exportadora, foi preciso importar o elemento africano, que chegou aqui já escravizado e passou a constituir a força de trabalho da colônia e mais tarde do país independente. A presença do negro na nossa cultura amplia o processo de miscigenação, além de enriquecer nossa cultura em muitos aspectos.

Completando a explicação referente ao título do livro, Gilberto Freyre concentra seu estudo nas relações entre o senhor da casa-grande e o escravo doméstico, diferenciado do escravo destinado ao trabalho mais duro e castigante do eito. Essa, aliás, é uma das críticas feitas a Freyre, que tenderia a generalizar relações entre senhor e escravo restritas ao ambiente da casa-grande. Mas seria injusto afirmar que Freyre omite de sua obra os horrores da escravidão. Mesmo no ambiente doméstico, onde descreve as relações entre o senhor branco e a negra escrava, o sinhozinho e o moleque, a sinhazinha e a mucama, ele ressalta a violência e o sadismo impostos pelo dominador ao dominado. Propondo uma explicação para a opressão imposta pela classe dominante ao povo brasileiro, Freyre afirma que o sadismo da primeira e o masoquismo do segundo decorrem “[d]o simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho”. Esta é outra tese bastante criticada, mesmo por estudiosos que enaltecem a obra de Freyre, como é o caso de Darcy Ribeiro e Elide Rugai Bastos.

Completando afinal a explicação de aspectos fundamentais da obra a partir do seu próprio título, importa observar a conjunção aditiva “e” que enlaça os dois substantivos à primeira vista antagônicos. Já antes acentuei as forças socioculturais que concorreram para aproximá-los. Adianto agora que essa concepção supõe uma interpretação integradora das três matrizes formadoras da cultura brasileira já estudadas na aula cujo título é A Cultura Brasileira e Suas Matrizes.

Embora reconheça os aspectos violentos e corruptores da escravidão, Gilberto Freyre adota uma concepção sem dúvida integradora da cultura brasileira. Ele é sem dúvida a grande fonte de uma representação hoje oficializada que representa nossa cultura como integradora de todos os seus componentes, uma cultura que confunde miscigenação com democratização social. Daí provém o mito de que somos uma democracia racial, o que não é verdadeiro. Embora nosso racismo seja mais brando do que o norte-americano, por exemplo, onde foram adotadas medidas de segregação racial nunca felizmente praticadas no Brasil, o fato é que não somos uma democracia racial. Basta observar a extrema desigualdade social que ainda vigora na nossa sociedade. Não é acidental um outro fato também facilmente observável: a predominância do elemento negro e mulato nas camadas mais pobres e sofridas da nossa sociedade.

A crítica acima não refuta o fato de que Gilberto Freyre contribuiu com sua obra mais do que qualquer outro dos nossos estudiosos para a valorização da cultura negra. Além de inverter o sentido antes conferido ao negro na constituição da nossa cultura, sentido que correspondia à condição inferior do negro, Freyre expõe na sua obra evidências e argumentos sólidos em defesa do negro, a quem aliás caracteriza como agente civilizador, apesar da sua condição de escravo. Sua suposta inferioridade, como Freyre bem o demonstra, não tem nenhuma comprovação de base científica ou racial. A inferioridade do negro, assim como do brasileiro pobre em geral, é fruto de condições culturais, frisa Gilberto Freyre, não raciais. E ele vai adiante e assinala alguns desses fatores responsáveis pelas condições de subdesenvolvimento do nosso povo: a monocultura, que impôs condições de subnutrição crônica à nossa população pobre ou simplesmente desamparada; a sífilis que se difundiu através de um estado de promiscuidade sexual que perversamente induzia o macho, como é típico de sociedades patriarcais, a exibir com orgulho as chagas da doença, prova de que ele era macho.

Pode-se afirmar que Freyre foi o introdutor no Brasil de técnicas e métodos sociológicos modernos aprendidos durante seus estudos de formação sociológica nos Estados Unidos. Outra inovação extraordinária, esta bem pouco seguida nos círculos acadêmicos onde se formam nossos cientistas sociais, consiste na qualidade da sua prosa, devedora de sua formação também amplamente literária. Sua obra destaca-se pelo estilo plástico e sedutor com que expõe seus argumentos e descreve relações e tipos sociais. Utilizando tanto a linguagem técnica quanto a coloquial, para a qual demonstra uma sensibilidade típica dos melhores prosadores e artistas da palavra, Freyre foi muito criticado pelos cientistas de formação estreitamente acadêmica que sempre o depreciaram alegando faltar rigor e precisão conceitual à sua obra. O irônico disso tudo é que muitos desses autores acadêmicos passam, alguns depois de gozarem de grande prestígio no meio universitário, enquanto a obra de Freyre fica e pode com justiça ser encarada como uma das obras definitivas da cultura brasileira.

Ler também:
Impacto e Permanência de CG&S
O transitório e o permanente
Brasileiros de São Paulo e de Pernambuco
Sob o signo da ambiguidade
Gilberto Freyre de A a Z
Um Vitoriano dos Trópicos
A Modernidade nos Trópicos
Modernismo e Regionalismo
Modernismo, Regionalismo e Identidade Cultural

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Modernismo, Regionalismo e Identidade Cultural


Já observei de passagem, noutros textos aqui postados relativos ao modernismo e ao regionalismo, a importância que a questão da identidade cultural ocupa nas obras de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Gilberto Freyre, assim como na de praticamente todos filiados a esses dois movimentos. Apesar do tempo que nos separa da irrupção desses movimentos na cultura brasileira, a questão da identidade se mantém ainda muito viva entre nós. Um fato que bem ilustra a evidência desse fenômeno é a instituição de uma secretaria de governo exclusivamente dedicada à administração política da questão, a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. De imediato, isso parece contradizer a crença de que somos dotados de uma cultura forte e integrada. Afinal, se somos assim, por que precisaríamos de uma secretaria empenhada em defender e promover nossa identidade cultural?

Até onde sei, essa secretaria é uma instituição singularmente brasileira. Ela parece denotar que somos ainda um povo inseguro acerca da sua identidade cultural. Outra evidência dessa insegurança é demonstrável na frequência com que esse assunto vem a público, não raro em tom polêmico. Um dos que mais enfática e polemicamente se pronunciam sobre ele é o escritor Ariano Suassuna, que tem sempre se conduzido na esfera pública como um defensor intransigente da nossa identidade e do que no seu entender seria a autêntica cultura brasileira, baseada nas tradições enraizadas no catolicismo ibérico conservado pela história do sertanejo nordestino. Com seu dom de criar frases polêmicas, ele há pouco afirmou numa entrevista que não troca seu oxente pelo okei de ninguém.

Mas voltemos no tempo para melhor caracterizar o problema da identidade cultural brasileira. Desde o século XIX as ciências sociais aqui produzidas imprimiram relevo ao problema da identidade cultural. Também a literatura, conviria acrescentar. Basta que se pense na ênfase que nossos românticos conferiram à questão, em particular Gonçalves Dias e José de Alencar. Como antes observei (ver os textos Modernismo e Cultura, Modernismo e Regionalismo), os modernistas e regionalistas retomam a questão nas décadas de 1920 e 1930. Mas ela esteve sempre presente nos estudos e nas reflexões de nossos principais escritores. Menciono alguns com a intenção de sugerir a persistência do problema da identidade cultural no desenvolvimento da nossa cultura: Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Graça Aranha, Lima Barreto, Nina Rodrigues, Manuel Bonfim. É curioso observar que nosso escritor mais universal e importante, Machado de Assis, passou ao largo das obsessões e polêmicas e teorias relativas ao nacionalismo e à identidade cultural.
Completando neste parágrafo a síntese do percurso histórico acima esboçado, a questão da nossa identidade cultural prolonga-se muito além das décadas de 1920 e 1930, que assinalam o auge dos movimentos modernista e regionalista. Ela é retomada durante os anos 1950, marcados pela euforia do nacionalismo desenvolvimentista orquestrado pelo governo Juscelino Kubitschek e adentra pelos anos 1960. Mesmo depois do golpe militar de 1964 e da associação flagrante do regime militar com o capitalismo estrangeiro, que promoveu a modernização autoritária atrelada à globalização econômica e cultural acelerada a partir da década de 1970, a angústia da identidade esteve no centro da ideologia nacional popular característica dos movimentos políticos e culturais, perdeu força durante as décadas de 1970 e 1980 e hoje aparenta estar diluída no clima da globalização dominante no país.

A identidade cultural é no geral considerada como um equivalente da identidade nacional. Não é à toa, por exemplo, que os dois termos percorrem o conjunto da tradição acima indicada, em particular a história do modernismo e do regionalismo, que tão obsessivamente se prenderam a uma e à outra. Macunaíma, de Mário de Andrade, é uma tentativa de responder ao problema que tanto o angustiava acerca da identidade coletiva, que na sua imaginação se confundia com sua própria identidade. Um verso famoso contido num dos seus poemas de Paulicéia Desvairada, “Sou um tupi tangendo um alaúde”, traduz sua identidade dividida entre a herança indígena e a europeia.
Também Gilberto Freyre declarou que a motivação decisiva para que ele escrevesse Casa-Grande & Senzala foi a necessidade de descobrir quem ele era como indivíduo e como brasileiro, isto é, a identidade individual era indissociável da nacional. Noutras palavras, descobrir a cultura brasileira e sua identidade, ambição maior desta obra fundamental, era também descobrir a própria identidade do autor.

O modernismo e o regionalismo, através da obra dos seus representantes maiores, desempenharam papel decisivo no sentido de melhor situar o brasileiro dentro da sua própria cultura, no sentido de integrar sua identidade à cultura plural e real do país. Antes deles, nossas elites ilusoriamente se representavam como se fossem europeias, antes de tudo francesas. Era nesse sentido que Sérgio Buarque de Holanda afirmava que somos desterrados em nossa própria terra. O brasileiro da elite via a si próprio como herdeiro da cultura europeia e assim lutava para suprimir de sua identidade seus traços indeléveis de procedência indígena e africana.

As políticas de imigração adotadas por São Paulo a partir de fins do século XIX, a teoria do branqueamento da população brasileira e a política de reforma urbana do Rio de Janeiro, inspirada no modelo do barão de Haussemann para a reforma de Paris, são evidências desse desejo de ser europeu nos trópicos. O livro de Jeffrey Needell, Belle Époque Tropical, documenta e analisa muito bem essa pretensão da elite brasileira, sua fantasia de ser europeia. Como viver essa ilusão sem reprimir ou marginalizar os fortes elementos diferenciadores da nossa cultura, precisamente aqueles que nos distinguem da Europa e resultam do nosso processo de miscigenação racial e cultural envolvendo o indígena, o português e o africano? Como indiquei noutro texto já acima citado (Modernismo e Cultura), a passagem do poeta suíço-francês Blaise Cendrars pelos círculos modernistas brasileiros ilustra muito bem essa questão.

Foi nesse sentido que os modernistas e regionalistas concorreram de forma decisiva para alterar de forma efetiva a representação da nossa identidade cultural ou a representação da cultura brasileira. Assim como Mário de Andrade converte nas páginas de Macunaíma valores culturais depreciados pela nossa elite em valores positivos, antes de tudo nossa miscigenação racial e cultural, Gilberto Freyre procede de forma semelhante ao compor num grande e poderoso ensaio o processo da nossa formação cultural. Através da apreciação positiva da nossa cultura mestiça, que desde suas origens integrou valores conflituosos ou antagônicos provenientes das diversas matrizes culturais que forjaram a cultura brasileira, ele pintou um quadro da cultura brasileira e do nosso povo tão admirável e compreensivo que levou o brasileiro a reconhecer no quadro sua própria imagem. Assim fazendo, Gilberto Freyre contribuiu de forma decisiva para reconciliar o brasileiro com sua própria cultura, com sua própria identidade.

Notem que até aqui não me arrisquei a propor um conceito de identidade cultural. O motivo dessa omissão é claro: não acredito que exista uma identidade cultural objetivamente dada, uma identidade que possamos reconhecer no universo objetivo das relações culturais. Penso que a identidade é uma construção ideal, um recorte seletivo feito pelos teóricos da identidade a partir da representação ideológica que propõem sobre o que seja a identidade cultural de um povo. Mário de Andrade afirma em certos contextos de sua obra (ver o Ensaio sobre a música brasileira) que ela já existe como realidade inconsciente expressa na criação popular – na música popular, por exemplo. Nesse sentido, o papel que caberia a um intelectual como ele seria organizar essa identidade inconsciente, dar-lhe forma estética e ideológica através da criação intelectual cuja função maior seria integrar a cultura popular à cultura da elite. Noutros contextos, porém, ele se contradiz. Isso ocorreu quando se empenhou numa verdadeira cruzada proselitista destinada a promover a valorização e o reconhecimento da cultura e da identidade brasileira. Isso é evidente na passagem que abaixo transcrevo de uma carta que escreveu para Carlos Drummond de Andrade em novembro de 1924:
“Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. (...) Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime.” (A lição do amigo, p. 5).
A citação acima contradiz claramente o que Mário afirma no Ensaio sobre a música brasileira e noutros pontos da sua obra. Se o Brasil tem já uma identidade detectável na inconsciência cultural do povo, nas formas espontâneas e tradicionais da sua cultura, por que então ele afirma para Drummond que o Brasil não tem ainda uma alma e por isso precisamos lutar para dar uma alma ao Brasil e por fim integrá-lo no concerto das grandes nações do mundo, como ele também afirmou? Do mesmo modo, se temos hoje uma cultura e uma identidade consolidadas que nos inspiram confiança e orgulho, por que então precisamos instituir uma secretaria da identidade cultural, um órgão governamental para trabalhar pela afirmação da nossa identidade e da nossa cultura?

O fato acima parece antes de tudo traduzir a persistência da nossa angústia de identidade. O historiador Evaldo Cabral de Melo observou com razão que esse problema da identidade, da necessidade de afirmação de uma cultura nacional, é um problema típico de países de passado colonial, como é o caso do Brasil, incapazes de realizar integralmente seu ingresso na modernidade. Seria também o caso de países como a Rússia, que ficaram na periferia da modernidade. Como Gilberto Freyre ressaltou, são fortes as afinidades culturais entre a Rússia do século XIX e o Brasil da época em que ele escreveu seus livros fundamentais sobre a nossa história cultural.

A observação de Evaldo Cabral de Melo parece-me abrir uma trilha fecunda para melhor compreendermos a persistência da questão relativa à identidade cultural do Brasil. No meu entender, ela não foi nem poderia ser resolvida pelos nossos teóricos da identidade, não importando a grandeza da obra que produziram visando interpretar e resolver nossos impasses culturais. De Sílvio Romero a Darcy Ribeiro, passando pelos modernistas, regionalistas, desenvolvimentistas, nacional-populares e nacionalistas em geral, dispomos de uma grande e admirável tradição de estudos e interpretações correntemente alinhada sob o rótulo do pensamento social brasileiro. Muitos desses estudos importam, além dos seus valores teórico-interpretativos, como indicação de medidas de ação prática para a modificação da nossa realidade sociocultural. Mas o nó da questão, segundo entendo, radica na necessidade da transformação estrutural da nossa sociedade. Quero dizer, enquanto mantivermos grande parte dos brasileiros, como é fato, à margem das conquistas da modernidade, será ilusório acreditar numa identidade que não esteja sempre sonhando ser o outro, sobretudo o outro simbolizado na cultura norte-americana. Trocando em miúdos a questão do ingresso do conjunto da população brasileira no horizonte da modernidade, que no Brasil é ainda muito parcial ou restrita, somente ingressaremos de fato na modernidade no dia em que o brasileiro em geral tiver acesso efetivo à democracia social e cultural. Isso quer dizer acesso à habitação, educação, saúde, justiça, segurança social e transporte público. Em suma, qualidade de vida substantiva, que não é bem comprável nas vitrines de shopping center, como nos enganam os publicitários cuja função principal é vender ao preço de qualquer mentira.

Visando acrescentar alguns indicadores objetivos para uma melhor compreensão da identidade cultural, concluiria acrescentando que o núcleo duro da identidade cultural, valho-me de expressão escrita por Teixeira Coelho no seu Dicionário crítico de política cultural, é composto pelos traços culturais mais fortes e constantes na história do nosso povo. Eles se manifestam nas tradições orais presentes na língua, nas tradições religiosas, nos mitos e narrativas populares, nas tradições artísticas. As tradições religiosas compreendem as formas de crenças, mitos e ritos coletivos. Caberia ainda acrescentar a essas manifestações sagradas as formas da cultura profana: carnaval, tradições folclóricas, os esportes, sobretudo o futebol, as festas e as manifestações artísticas.

É preciso, no entanto, também considerar que a cultura geral do Brasil compreende uma grande diversidade de expressões ligadas às diferentes regiões, classes sociais e múltiplos grupos formadores do conjunto da nossa nacionalidade. A isso seria ainda preciso acrescentar, na realidade do mundo globalizado em que vivemos, valores e comportamentos culturais compartilhados por múltiplas nacionalidades culturais. Esse fato cada vez mais poderoso no mundo em que vivemos – o fato relativo à cultura globalizada – complica a existência da identidade cultural baseada na noção de núcleo duro. Enquanto o núcleo duro pode ser compreendido como o conjunto de valores e práticas culturais comum à maioria do povo brasileiro, a dimensão relativa à cultura globalizada, típica da sociedade contemporânea, segmenta ou fraciona as características culturais de acordo com a variação dos grupos baseados nas diferenças de região, classe e vinculação à cultura globalizada que concorre visivelmente para mudar os padrões de identidade nacional.

Referências bibliográficas:
Lourenço Dantas Mota (org.). Introdução ao Brasil – Um banquete no trópico. Volumes I e II. São Paulo: Editora Senac, 1999 e 2001.
Mariza Veloso e Angélica Madeira. Leituras Brasileiras. Prefácio de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Paz e Terra,1999.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Modernismo e Regionalismo




A história das relações entre o modernismo de São Paulo e o regionalismo de Recife parece o romance familiar de dois irmãos desunidos brigando por heranças e feitos que, quando avaliados de forma isenta, são bens comumente amealhados, refeitos e transmitidos a seus herdeiros, que somos todos nós. Para ser mais fiel à analogia, a briga, ou os rompantes de desunião, são antes de tudo do irmão pobre, isto é, do regionalismo nordestino. O fato é sociologicamente compreensível. Como São Paulo tornou-se, à altura em que o modernismo lá eclodiu, a força hegemônica do país, é compreensível que não conceda importância demasiada ao irmão pobre. Aliás, o fato mesmo de o modernismo eclodir em São Paulo com as características que marcaram seu ímpeto modernizador e internacionalista constitui por si só uma evidência da hegemonia mencionada.

O fato é que só recentemente se afirma uma corrente nos estudos de crítica literária e cultural tendente a reconhecer e sobretudo demonstrar as afinidades que atam esses irmãos desavindos. O crítico pioneiro dessa corrente foi provavelmente José Aderaldo Castelo, como se pode verificar lendo seu livro José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo (1961). Aliás, antes dele Sérgio Buarque de Holanda fez o que pôde, com exemplar isenção crítica, para conciliar os irmãos desunidos quando escreveu em 1951 uma série de três artigos sob o título “Fluxo e Refluxo”. Esquecidos durante muito tempo, podem agora ser consultados pelo leitor na obra O Espírito e a Letra, composta por dois volumes que reúnem seus estudos de crítica literária dispersos durante muito tempo em periódicos inacessíveis ao público.

Sérgio Buarque põe o dedo na ferida, ou no motivo da briga, quando ressalta que o modernismo, embora de início universalista e até cosmopolita, foi também nacionalista e regionalista. Ele faz essa observação, comprovada pela história do movimento, visando corrigir o ponto de vista de Gilberto Freyre, que em 1941 escreveu uma introdução polêmica para seu livro Região e Tradição opondo o regionalismo de Recife, por ele liderado, ao modernismo de São Paulo. O eixo do conflito, ou o ponto de separação entre os dois movimentos, residiria no caráter internacionalista e até europeizante do movimento paulista. No lado contrário, Gilberto Freyre argumenta que se colocaria o regionalismo de Recife cuja inspiração regionalista procurou revalorizar a cultura brasileira a partir de suas fontes regionais e tradicionais.

Também José Lins do Rego, o discípulo mais fiel e arrebatado de Gilberto Freyre, assinou o prefácio do já citado Região e Tradição em tom de exaltada devoção à liderança intelectual exercida por Gilberto Freyre. Indo além disso, engrossou a briga aberta contra os paulistas atacando o modernismo e reiterando em tom polêmico o pioneirismo do nacionalismo postulado por Freyre a partir da perspectiva regionalista que adota no livro e no conjunto da sua obra. A valorização das fontes regionais da cultura brasileira levou Gilberto Freyre e seus seguidores a reivindicarem para o Nordeste uma posição de originalidade e fonte de valores nacionais que volta e meia são repostos em termos polêmicos.

Sem a intenção de resolver essa briga regional, que com certeza vai além das disputas atiçadas por Gilberto Freyre e José Lins do Rego, assim como por outros intelectuais e artistas nordestinos, um dado fundamental para compreendermos de modo criticamente isento essas disputas sem fim deriva com certeza das relações de rivalidade e ressentimento nutridas pelo irmão pobre contra a dominação e os preconceitos provenientes do irmão rico. Como este tem mais poder, a historiografia oficial do modernismo, produzida sobretudo em São Paulo, tendeu a subordinar o regionalismo ao modernismo tratando muitas vezes Gilberto Freyre, José Lins do Rego e outros grandes nomes da cultura nordestina como capítulos da história geral do modernismo, quando não meros anexos. Nesse sentido, é compreensível o ressentimento de Gilberto Freyre e de muitos dos seus seguidores. Mais que compreensível, é necessário salientar que a obra de Freyre, assim como dos grandes representantes do regionalismo nordestino, se fez de forma independente do modernismo paulista.

Vejamos melhor a questão da independência ou autonomia tanto do regionalismo de Recife quanto da obra dos grandes representantes do regionalismo nordestino. Gilberto Freyre formou-se até academicamente nos Estados Unidos. Além disso, sua filiação à cultura inglesa está muito bem comprovada não só em muitos dos seus depoimentos, mas sobretudo na sua obra e na sua formação geral. Gilberto foi provavelmente o primeiro jovem brasileiro que fez estudos sistemáticos de sociologia e ciências humanas nos Estados Unidos. Quando voltou a Recife em 1923, portanto no ano posterior à eclosão do modernismo, cuja data de batismo é a Semana de Arte Moderna, era portador de ideias próprias e independentes com relação à arte moderna e à cultura brasileira. Quanto a José Lins do Rego, este formou-se sob o influxo direto de Gilberto, a quem sempre devotou a mais irrestrita admiração e amizade. O caso de Graciliano Ramos também reforça o argumento relativo à autonomia do regionalismo nordestino. O mesmo, em linhas gerais, se aplica a Jorge Amado. Portanto, é coerente a resistência que todos opõem ao modernismo, resistência que em alguns chegou ao extremo da recusa a qualquer filiação ou afinidade estética e ideológica.

Considerado o argumento exposto no parágrafo precedente, é compreensível que os nordestinos, antes de tudo Gilberto Freyre, se tenham empenhado em reivindicar a autonomia do regionalismo sediado no Recife. Se já nos anos de 1920 Gilberto se ressentia do modernismo, propondo a partir de Recife um movimento de renovação cultural independente, seu espírito de independência certamente acentuou-se depois da publicação de Casa-Grande & Senzala, que logo o consagrou como o mais importante intérprete da cultura brasileira. Em 1941, quando lança Região e Tradição, como acima observei, desfecha com a ajuda de José Lins do Rego uma polêmica contra o modernismo que durante muito tempo sobreviveu e alimentou muito mal-entendido. É a tal briga entre irmãos a que aludi na abertura deste texto.

Tentando pôr ordem na casa, se possível reconciliando de vez os irmãos brigados, conviria destacar que modernismo e regionalismo têm bem mais em comum do que tendiam a admitir nossos regionalistas ressentidos. Personalizando a questão, pois a briga foi com frequência encarnada nas figuras dominantes dos dois movimentos, Mário de Andrade e Gilberto Freyre, Mário e Gilberto seguiram linhas muito convergentes na obra que produziram e nos caminhos que trilharam visando interpretar e valorizar a cultura brasileira. Corrigindo a crítica enviesada de Gilberto Freyre, que negou caráter nacionalista e regionalista ao modernismo com o propósito de reivindicar exclusivamente para si próprio e para o regionalismo que liderou os méritos das realizações culturais do período, é preciso reconhecer que o modernismo concorreu de forma decisiva para a valorização da cultura nacional, para o estudo e a defesa da identidade cultural brasileira, para os estudos dedicados à exploração e esclarecimento de todas essas questões.

Ambos os movimentos, através de vias autônomas, convergiram na busca de uma melhor compreensão da origem e formação da cultura brasileira, assim como no reconhecimento da importância de valores culturais reprimidos ou depreciados pelas elites brasileiras. Livros como Macunaíma e Casa-Grande & Senzala traduzem esses valores e sentidos culturais no sentido mais alto das realizações intelectuais do Brasil. Quase tudo que o modernismo realizou depois de 1924 está associado à busca de uma cultura brasileira autêntica e renovada. O mesmo se pode afirmar com relação ao regionalismo recifense, em particular, e ao regionalismo nordestino em geral, que viveu nos anos de 1930 o ponto alto das obras de inspiração regionalista, ou pelo menos geograficamente situadas na região que, embora empobrecida em decorrência da longa e lenta decadência da oligarquia açucareira, mostrou-se dotada de grande vitalidade artística e cultural.

Em suma, talvez o melhor modo de conciliar os dois movimentos, ou indicar suas afinidades substanciais, consista em reuni-los à sombra do designativo neorromantismo, termo empregado por José Aderaldo Castelo no seu livro pioneiro acima citado para traduzir o fato de que ambos constituíram uma atualização do espírito do movimento romântico. Este, como sabemos, tem como características dominantes traços comuns ao modernismo e ao regionalismo: o espírito nacionalista, a valorização da cultura e da identidade nacionais, a acentuação dos valores particulares e subjetivos.

Referências bibliográficas:
Gilberto Freyre. Região e Tradição. Com Introdução do autor e prefácio de José Lins do Rego. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1941.
Idem. Manifesto Regionalista. 7ª. edição revista e aumentada. Prefácio de Antônio Dimas. Recife: Fundaj; Editora Massangana, 1996.
Valéria da Costa e Silva. A Modernidade nos Trópicos: Gilberto Freyre e os debates em torno do nacional. Recife: Carpe Diem, 2009.
Ver também os dois artigos contidos nos links abaixo:
http://fmlima.blogspot.com/2011/03/brasileiros-de-sao-paulo-e-de.html
http://fmlima.blogspot.com/2011/03/nacional-e-universal.html

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Valores Lusos na Cultura Brasileira


A Continuidade de Valores Portugueses na Cultura Literária Brasileira

O propósito deste texto é traçar as linhas gerais de uma série de exposições relativas à continuidade de valores culturais lusos, e amplamente ibéricos, na cultura literária brasileira. Embora o título acima proposto especifique a literatura como horizonte e limite dos argumentos a seguir esboçados, importaria desde já acentuar que a ela, a literatura, se incorpora a cultura compreendida na sua dimensão socioantropológica. Se tal propósito, aparentemente ambicioso, amplia acaso em demasia as proporções do que intento livremente expor, é no entanto indispensável para que se logre compreender satisfatoriamente os valores aqui discutidos e a real natureza dos dois movimentos culturais dominantes na primeira metade do século xx no Brasil: o Modernismo de extração paulista e o Regionalismo de Recife. Demarcados estes limites gerais, a eles acrescentarei, como apreciação conclusiva da nossa exploração panorâmica, uma atualização da matéria fundamental estendendo-a, noutras palavras, ao cenário sociocultural contemporâneo.

Começando pela relação observável entre o Modernismo e nossa herança portuguesa, talvez o estudioso apressado tendesse a anular de pronto qualquer associação relevante entre os dois termos propostos. Afinal, prevalece ainda hoje nos quadros da historiografia do Modernismo uma leitura orientada para a caracterização do movimento pautada pelo critério da renovação estética, pelo ânimo da mudança e atualização artística e cultural. Como bem sugere a síntese proposta por Oswald de Andrade, o fim visado pelos modernistas era acertar os ponteiros do relógio do Brasil com os da vanguarda européia. Dito de outro modo, a ambição dos modernistas era superar o peso da nossa herança portuguesa suprimindo o descompasso entre a modernidade européia e as condições de atraso sociocultural dominantes nos trópicos brasileiros.

Se pensamos no Modernismo da primeira hora, tocado pela euforia dos impulsos renovadores, tal caracterização é sem dúvida sustentável. As evidências disponíveis são fartas e solicitam um registro genérico passível de apoiar o argumento em questão. A consciência teórica do movimento, associada antes de tudo à obra e atuação intelectual de Mário de Andrade, enfatiza os fatores de renovação e ruptura. O periódico Klaxon, criado logo depois da Semana de Arte Moderna, ressoa de ponta a ponta a euforia vanguardista dos modernistas. Os temas que frequentam e pontuam nosso processo cultural – herança lusa, nacionalismo e identidade cultural, por exemplo – cedem o passo ao cinema como expressão da modernidade e da renovação expressiva das artes, à temática urbana marcada por traços típicos da vida moderna: o culto da civilização técnica, da velocidade, da indústria, da cultura do imigrante, da internacionalização das artes. É significativo que neste momento, assim como no decorrer da década de vinte, a questão da autonomia linguística seja a única matéria de debate e rejeição explícita da nossa herança literária portuguesa.


Supondo porém que o estudioso proceda a um exame mais detido do processo, modulando acentos e pontos de continuidade e mudança, logo fica claro que o desdobramento da dinâmica modernista é bem mais complexo. Se é verdade que seu momento inaugural obedece aos traços acima indicados, pouco mais tarde, em 1924, ocorre a inflexão nacionalista que desloca o movimento do cosmopolitismo inicial para a cena brasileira. Os sintomas dominantes de tal inflexão radicam na busca sistemática dos temas e particularidades da cultura brasileira, na teorização e pesquisa da identidade nacional, na retomada da tradição, do mundo provinciano e rural do Brasil. Retendo ainda o exemplo dos periódicos representativos, bastaria assinalar o sentido nacionalista da linha que vai de Klaxon a Terra Roxa e outras terras passando por Estética.
Mário de Andrade, a personalidade paradigmática de todo esse processo, empenha-se numa ação sistemática e continuada de pregação nacionalista da qual resultarão seus estudos sobre o barroco mineiro e a música brasileira, o folclore e a defesa de uma linguagem literária especificamente brasileira. Daí resultam obras de criação artística cuja expressão suprema é Macunaíma, publicado em 1928. Sob seu influxo, poetas como Drummond vão harmonizar renovação estilística com temas da província impregnados dos valores da tradição.

Saltando para a década seguinte, observamos que o conjunto da produção literária reitera e amadurece as tendências e expressões de nacionalismo cultural emergentes na década anterior. O nacionalismo, compreendido na moldura onde se desenham seus motivos correlatos: a reinvenção da tradição brasileira e a busca da identidade cultural, torna-se hegemônico em todos os sentidos e modos de expressão do país. João Luiz Lafetá sintetiza o conjunto desse processo muito bem quando afirma que na década de trinta o projeto ideológico do Modernismo se sobrepõe ao projeto estético prevalecente nos anos vinte.

É nesta década, sobretudo a partir de 1933, ano da publicação de Casa-Grande & Senzala, que o ideário e as realizações do Regionalismo de Recife alcançam amplitude nacional. Mais do que isso, definem a medida da hegemonia de um discurso literário nacional na medida em que escritores como José Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano Ramos estabilizam e difundem uma forma de narrativa que se impõe aos próprios modernistas empenhados em fundar um modo renovado de narrativa ficcional no Brasil. Ora, o que a narrativa nordestina realiza, noutros termos, é a retomada dos temas da região e da tradição, para usar os termos que dão título a um livro polêmico de Gilberto Freyre publicado bem no início dos anos quarenta. Ao reunir em volume os ensaios que compõem esta obra, seu objetivo, francamente polêmico, foi não apenas proceder à apologia do nacionalismo ancorado na especificidade regional brasileira, mas também reivindicar para o Regionalismo de Recife o papel pioneiro de agente formulador e estabilizador da moderna cultura nacional do país.

À diferença do Modernismo, cujo processo de desenvolvimento foi acima grosseiramente esboçado, o Regionalismo se distingue pela coerência e espírito de continuidade que o vinculam aos valores de extração portuguesa. Desde quando Gilberto Freyre retorna ao Recife em 1923, depois de cinco anos dedicados a estudos realizados nos Estados Unidos, as expressões de regionalismo que logo se empenha em produzir e orientar obedecem a uma confessa e entusiasmada filiação lusa e genericamente ibérica. Embora isso explique a oposição que o divide das linhas de atuação estabelecidas pelo Modernismo, sua ação e influência ficam restritas ao âmbito regional, sobretudo recifense. A partir do momento em que publica sua obra-prima, e consequentemente se projeta como intelectual renovador em escala nacional, Gilberto Freyre se torna, com inteira justiça, um intelectual cuja interpretação do nosso passado nos reconcilia com uma condição cultural – lusa, antes de tudo – que por muito tempo pesou na consciência das elites nacionais como fator de constrangimento, quando não de vergonha dissimulada por certa expressão de bovarismo cultural assinalada pela representação ilusória de uma identidade européia.

Talvez mais que qualquer outro intelectual individualmente considerado, Gilberto Freyre concorreu para que o brasileiro, constrangido pelas suas condições de atraso social e miscigenação invariavelmente castigada por diagnósticos e prognósticos racistas, se reacomodasse na carne do seu corpo mestiço e revisasse seu passado português não somente como uma expressão bem-sucedida de acomodação do europeu somado a outros grupos culturais, mas até com o orgulho de quem se identifica com um ethos contemporizador de conflitos. Usando uma expressão muito do gosto do próprio Gilberto Freyre, o colonizador português distingue-se por sua capacidade de equilibrar antagonismos.

Na medida em que projeta tal identidade intelectual, sendo encarado e antes de tudo encarando a si próprio como o grande explicador do Brasil, Gilberto Freyre não reluta em ler e revisar certos fatos da nossa história cultural movido antes pelo desejo de reivindicar méritos próprios e discutíveis pioneirismos do que pela fidelidade aos fatos objetivamente aferíveis. Dois exemplos, em particular, merecem registro nesta exposição, já que ainda muitos dos seus seguidores mais passionais ou desatentos ratificam sua versão indiferentes à história cultural documentada. O primeiro refere-se à acusação infundada com que sempre pretendeu desmentir o caráter pioneiramente nacionalista do Modernismo ao qualificá-lo como europeizante, votado ao desprezo da tradição e das nossas características mais definidamente brasileiras. Como antes procurei ressaltar, tal acusação é sustentável na medida em que se atém à fase inicial do Modernismo. O próprio Gilberto Freyre valida meu ponto de vista quando já no fim da vida incorre em flagrante contradição ao referir-se ao assunto numa passagem do prefácio assinado para a última edição de Order and Progress:
“The beginning of a systematic search for Brazilianness (Brasileiridade) is recent, dating from the modernist movement, which originated in São Paulo in 1922 and spread to Rio two years later, and from the regionalist and traditionalist (and, in its own way, modernist) movement in Recife (1924) which gave us the first modern teaching of sociology and social research (1927) and launched the First Congress of the Study of Afro-Brazilian subjects (1934).” (Order and Progress, p. xxv).

O segundo exemplo concerne à verdadeira data de publicação do Manifesto Regionalista. Segundo Gilberto Freyre, o manifesto de sua autoria, que ele logrou estabelecer como o documento fundante do Regionalismo de Recife e, por extensão, de todo o processo de renovação nacionalista da cultura brasileira, foi lançado em 1926, durante a realização do Congresso Regionalista de Recife por ele organizado e liderado. Joaquim Inojosa, à época seu principal adversário intelectual em Recife, há anos provou com documentação irrefutável que o texto do manifesto correntemente conhecido somente foi publicado em 1952, data da sua publicação efetiva em opúsculo prefaciado pelo próprio Gilberto Freyre.

Evidentemente, estas correções em nada afetam a magnitude da obra realizada por Gilberto Freyre. Precisam entretanto ser explicitadas, e até reiteradas, por servirem, entre outras coisas, como advertência para o estudioso que por vezes acata sem qualquer exame crítico inéditos do autor publicados por ele próprio muitos anos depois da suposta redação original. O caso de Mário de Andrade, por outro lado, é de natureza totalmente oposta, pois seus inéditos de publicação tardia, no geral póstumos, foram publicados por pesquisadores que os submeteram a critérios rigorosos de apreciação textual.

Procurei acima sugerir, ainda que de forma pouco ordenada, que o nacionalismo cultural, associado à tradição lusa, permeia o conjunto do processo histórico no qual se inscrevem os dois movimentos fundamentais da primeira metade do século vinte no Brasil. Sua presença é de fato mais abrangente. Como certa feita observou Antonio Candido em uma passagem muito citada de um ensaio de síntese sobre o desenvolvimento geral da vida espiritual brasileira, nossa história tem sido marcada pela dialética do cosmopolitismo vs. nacionalismo. A atmosfera de globalização cultural agora extraordinariamente acelerada repõe esta antinomia no cerne da nossa realidade sociocultural. Ao mesmo tempo em que o país mais e mais se vincula aos circuitos de produção globalizados, assiste-se à retomada de um discurso fundado nos valores da particularidade irredutível a qualquer horizonte de natureza universalista.

A dissolução dos antagonismos ideológicos provocada pelo desabamento do socialismo totalitário em 1989 teve reflexos inevitáveis na cena cultural brasileira. Este fato, associado à recente celebração do centenário do nascimento de Gilberto Freyre, concorreu significativamente para que sua obra fosse positivamente reavaliada. Dar a Freyre o que é de Freyre é questão de justiça histórica e intelectual que os leitores e admiradores da sua obra devem saudar com entusiasmo. Do mesmo modo, importa reter da tradição firmada pelo Modernismo paulista o seu legado positivo. Em ambos os casos, o legado é indissociável de valores nacionalistas que atuaram no sentido de renovar e enriquecer nossa história cultural concorrendo, de outro lado, para a modernização social do país.

Feitas porém estas ressalvas, as questões e dilemas fundamentais clamam ainda por mudança e resolução. Dados os limites visíveis desta exposição, que são noutras palavras os meus próprios, fica à margem da argumentação aqui esboçada qualquer análise de fundo especificamente político e econômico que de resto escapa à minha competência. O que intento ensaiar nas linhas finais desta exposição é a proposição de um debate passível de em modesta medida esclarecer algo das relações complexas entre o nacionalismo cultural, a teorização sociológica da cultura e os vínculos que ambos retêm com as condições de manutenção do atraso social brasileiro. Noutras palavras, de que modo a tradição cultural acima esboçada concorre para alterar ou manter as condições de dominação e desigualdade observáveis no conjunto da sociedade brasileira? Até que ponto o ideário nacionalista brasileiro, tão múltiplo e contraditório na recorrência de suas manifestações, constitui um obstáculo para a realização de um projeto substantivo de modernização social ou exerce uma função social e culturalmente positiva?

Tentando especificar um pouco estas questões formuladas de modo demasiado abstrato, proporia que se debatesse duas das alternativas culturais propostas como meios de resolução dos nossos impasses mais dramáticos. Refiro-me à polaridade iberismo vs. americanismo. Ela tem permeado com intensidade variável o conjunto dos estudos e interpretações da cultura brasileira desde o século xix. No primeiro pólo situam-se os que reivindicam a especificidade de valores e práticas culturais originários da colonização ibérica nos trópicos e inconciliáveis com valores e práticas entendidos como especificamente europeus, sobretudo quando derivados da tradição anglo-saxônica. No segundo, em contrapartida, alinham-se os adeptos de uma incontornável integração brasileira à corrente central do Ocidente, com ênfase sobre a América de formação inglesa.
Esta polaridade desenha-se, noutras palavras, em torno de conceitos genéricos e polêmicos tais como modernidade, modernismo, modernização e derivados correntes. Os que se identificam com a permanência de valores ibéricos, ou restritamente lusos, resistem em maior ou menor grau à adoção ou aprofundamento dos nossos vínculos com o Ocidente reclamando para o Brasil uma identidade oposta aos valores do individualismo liberal; contrapondo o ludismo, a magia, a expressão emotiva e vínculos de base comunitária ao utilitarismo, à ciência e à tecnologia, às relações abstratas da gesellschaft. Emprego este termo de longeva presença na história da teoria sociológica porque, contraposto a seu avesso gemeinschaft, cristaliza as oposições e antagonismos básicos compreendidos nos dois tipos de cultura aqui considerados. Difundidos pela obra homônima de Ferdinand Tönnies, publicada em 1887, expressam idealmente, no sentido derivado dos tipos ideais propostos por Max Weber, dois modos fundamentais de organização sociocultural.

Acentuando que o português realiza nos trópicos brasileiros uma experiência de colonização inspirada pelos valores da gemeinschaft, já que a cultura hegemônica que estabiliza é regida por valores comunitários enraizados na família patriarcal e na religião católica, livremente mescladas aos valores dos grupos dominados, sobretudo o escravo africano, os iberistas caracterizam sempre como postiços ou artificiais os contatos de assimilação de valores baseados no contrato social abstrato, na impessoalidade competitiva do mercado, em suma, na gesellschaft.

Há poucos anos Richard Morse, Simon Schwartzman e José Guilherme Merquior empenharam-se numa atualização inevitavelmente polêmica do confronto iberismo vs. americanismo.O debate foi provocado pela publicação de um livro de Morse, O Espelho de Próspero, no qual ele retoma a polaridade fazendo a apologia da tradição ibérica e repelindo com veemência as características fundamentais do americanismo, ou da tradição ocidental. Talvez sintomaticamente, o livro não encontrou editor no mercado americano, sendo então publicado no México e em seguida no Brasil. José Murilo de Carvalho, um crítico mais sereno, discute a obra de Morse acentuando os aspectos considerados por Schwartzman, Merquior e Lúcia Lippi Oliveira – esta, mais limitada, contenta-se em descrever as linhas gerais do debate isentando-se de avançar juízos mais pessoais ou categóricos. Como bem observa Murilo de Carvalho,

“O desapontamento com a sociedade individualista, racional e desencantada dos Estados Unidos talvez tenha sido a motivação principal da busca empreendida por Morse de uma alternativa que ele acredita ter encontrado ao sul do Rio Grande. Aí, na América ibérica, ele julga existir uma civilização distinta, portadora de valores, ou de um foco cultural, que por serem pré-modernos não seriam menos desejáveis. Pelo contrário, por ter esta civilização escapado da reforma protestante e da revolução científica, teria preservado elementos de comunitarismo, de organicidade, de encantamento, que podem constituir alternativas ao impasse do mundo anglo-saxônico.”

Murilo de Carvalho prossegue seu comentário destacando o fato de que os críticos de Morse atacam-no seja por compor uma imagem demasiado pessimista de Próspero, seja por propor uma descrição demasiado otimista da civilização ibérica. Seu crítico mais áspero, Simon Schwartzman, toma o conjunto da sua argumentação como grave equívoco de interpretação cultural, acrescentando ser obra de conseqüências politicamente danosas para a realidade latinoamericana. Citando ainda Murilo de Carvalho,
“A valorização do comunitário, do mitológico, do afetivo, do não redutível à racionalidade ocidental, seria para esse crítico uma receita para aventuras messiânicas, para populismos autoritários.”

José Guilherme Merquior, por outro lado, encara com sérias restrições a apologia ibérica de Richard Morse. Sendo um crítico de linhagem radicalmente racionalista, portanto vinculado à tradição crítica do Iluminismo, Merquior não concebe nenhuma solução para os impasses da América Latina à margem da modernidade ocidental. Corrigindo a versão canibalista com que Morse refuta o modelo civilizacional simbolizado na figura de Próspero, Merquior repõe a versão canibalista de inspiração oswaldiana, isto é, uma estratégia de interação com o colonizador assinalada pelo espírito de absorção crítica e adaptação dos valores ocidentais. Assim procedendo, o Brasil poderia realizar-se culturalmente como uma forma específica de modulação do Ocidente, não como sua negação irracionalista baseada numa compreensão equivocada de particularidade cultural irredutível.

Concluo este roteiro um tanto errático, em parte explicável pela complexidade e abrangência da matéria aqui tratada, citando mais uma vez Murilo de Carvalho:
“(...) O caráter mais humano que Morse atribui à cultura ibérica, o maior solidarismo, seriam compatíveis com o grau de miséria social que afeta as populações do continente? Inversamente, o unidimensionalismo do homem ocidental, para usar uma expressão da Escola de Frankfurt, cara a Morse, não teria também sido responsável pela geração da vasta riqueza que trouxe para os modernos países ocidentais níveis nunca vistos de progresso e bem-estar? Não correria Morse, ao enfatizar os traços não ocidentais, ou não modernos da cultura latino-americana, o risco de aproximar-se de Gilberto Freyre em detrimento de Sérgio Buarque de Holanda, contra suas próprias declarações de simpatia pelo último?” (Pontos e Bordados, pp.402-4).

Berkeley, 21 de outubro de 2002.