sexta-feira, 24 de junho de 2011

Formação do Brasil Contemporâneo



Formação do Brasil contemporâneo, obra publicada em 1942, completa a trilogia clássica da tradição intelectual conhecida como o pensamento social brasileiro. As duas obras que a precedem são Casa-Grande & Senzala (1933) e Raízes do Brasil (1936). O consenso crítico em torno dessa trilogia deriva de um prefácio de referência escrito por Antonio Candido em 1967 para abrilhantar a edição comemorativa dos 30 anos de Raízes do Brasil. Para ser mais preciso, o crítico distingue essas três obras como decisivas para a formação da sua geração, que percorreu diferentes etapas de formação acadêmica entre as datas limite fixadas entre a publicação da primeira e da última obra. O consenso crítico apenas confirmou e ampliou essa verdade ao converter as obras decisivas para a formação de uma determinada geração em trilogia clássica de toda uma tradição inscrita no desenvolvimento das ciências sociais brasileiras.

O primeiro livro de Caio Prado Júnior, Evolução Política do Brasil, foi por acaso lançado no mesmo ano em que Casa-Grande & Senzala veio a público. A coincidência merece registro porque as duas obras balizam duas vertentes fundamentais da sociologia brasileira associadas aos estudos de interpretação do Brasil. A de Gilberto Freyre, como sabemos, distingue-se como a obra suprema de base cultural de interpretação do Brasil, enquanto a de Caio Prado inaugura a vertente de base materialista. A fonte fundamental desta tradição cujo marco é Formação do Brasil Contemporâneo é a obra de Karl Marx, teórico mais importante do comunismo moderno.

O fundamento da concepção materialista à qual Caio Prado se filia consiste no reconhecimento das bases materiais da sociedade e da história humana. Traduzindo isso em termos mais claros, Marx e seus seguidores partem do princípio de que as necessidades materiais estão nas raízes da nossa existência. Antes de fazer qualquer outra coisa (arte, religião, ideias, leis e o conjunto das expressões de vida espiritual que Marx designa como sendo a superestrutura da vida social), o ser humano precisa comer, precisa trabalhar para garantir sua sobrevivência biológica. Visando tornar ainda mais clara a concepção materialista proposta por Marx e aplicada por Caio Prado à história da formação da nossa sociedade, transcrevo abaixo palavras esclarecedoras de Engels, o outro grande nome do comunismo moderno e amigo inseparável de Marx até a morte deste:
“Marx descobriu o fato simples (até então oculto sob a exuberância ideológica) de que os seres humanos precisam de alimento, bebida, roupa e abrigo acima de tudo, antes que se possam interessar pela política, ciência, arte, religião e coisas semelhantes. Isso significa que a produção dos meios materiais de subsistência imediatamente necessários, e com isso a fase existente de desenvolvimento de uma nação ou de uma época, constitui a base sobre a qual são construídas as instituições estatais, as interpretações jurídicas, as ideias artísticas e até mesmo religiosas. Significa que estas devem ser explicadas pela primeira, ao passo que a primeira foi no geral explicada como consequência das outras”. (Apud W. H. C. Eddy, Para compreender o marxismo, pp. 32-3).
Em termos teóricos, portanto, é preciso eleger as condições de vida material, ou econômica, para explicar as características fundamentais da nossa sociedade e da nossa cultura, o processo histórico através do qual ela se formou. Enquanto Gilberto Freyre e outros estudiosos da formação da nossa história social privilegiam a cultura, que no caso também compreende as condições de existência econômica da sociedade, Caio Prado coloca a organização econômica da sociedade acima de qualquer outro fator de ordem explicativa ou teórica.

Coerente com o princípio teórico acima indicado, Caio Prado rompe com a explicação de base cultural, exemplificada na obra de Gilberto Freyre, concentrando sua obra no estudo e análise das características econômicas que orientaram o processo de colonização do Brasil pelos portugueses. Especifico o termo colonização porque ele infelizmente não completou seu projeto original, que seria estudar o conjunto da formação da sociedade brasileira desde suas origens até o presente. Na verdade, Formação do Brasil Contemporâneo vem acrescida de um subtítulo que determina claramente os limites da obra: “Colônia”. Portanto, a obra se detém historicamente dentro dos limites da formação colonial do Brasil.

Importa no entanto salientar que o autor reconhece e enfatiza a persistência dessa formação colonial nas questões sociais do presente. É nesse sentido que, embora incompleto o projeto original, Formação do Brasil Contemporâneo foi e continua atual como fonte para a explicação das características dominantes na nossa sociedade e na nossa cultura. Noutras palavras, precisamos compreender as causas determinantes da nossa formação colonial para compreendermos adequadamente questões fundamentais do presente como nossos extremos de desigualdade social e econômica, nossa dependência cultural, o atraso observável nos nossos padrões de educação, saúde, organização urbana, transporte, segurança social etc. Em suma, é preciso saber o que fomos, de onde viemos, para saber o que somos e para onde iremos. Esse objetivo, suponho, está na raiz de todas as obras de explicação do Brasil. O que varia e até se choca, fazendo com que uma obra negue ou contradiga outra, é a forma como cada um desses estudiosos estudou nossa formação para elaborar a explicação do país contida em cada uma das obras realizadas.

É também coerente com a teoria materialista que adota o fato de Caio Prado conceder papel prioritário às bases econômicas da colonização do Brasil, assim como à questão das classes sociais. Estas, como sabemos, derivam da natureza econômica da sociedade traduzida nas condições de distribuição de renda. É isso, noutras palavras, que está na raiz da distinção que estabelecemos entre o senhor e o escravo, o empregador e o empregado, o capitalista e o trabalhador assalariado. Enquanto Gilberto Freyre reconhece esses extremos sociais baseado na objetividade das relações econômicas, mas acentua os fatores culturais que os aproximam, como a miscigenação racial e cultural, Caio Prado se concentra nas relações de conflito decorrentes da exploração econômica imposta pelo dominador ao dominado. Nesse sentido, os fatores culturais são secundários. É por aí que se explica a ruptura de Caio Prado com a vertente culturalista de explicação do Brasil acima anotada.

Passando especificamente às linhas gerais que compõem a obra, Caio Prado identifica no início do século xix, como de resto enfatiza já nas linhas iniciais da Introdução, o momento decisivo na história da formação da sociedade brasileira contemporânea. Nesse momento se definem tanto o esgotamento de uma realidade, a do sistema colonial que governou toda a nossa história anterior, do início da colonização à transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, quanto o advento de uma nova fase na evolução do Brasil. Esta fase, que compreende momentos fundamentais, como o processo de independência política, o Império regido por D. Pedro II, a Abolição e a proclamação da República, desenha o longo e complexo processo através do qual se vai forjando o Brasil contemporâneo.

No capítulo intitulado “Sentido da colonização” Caio Prado sintetiza as bases profundas da nossa formação, que são, como já salientei, de natureza econômica. Descrevendo o processo geral de colonização do Novo Mundo, ressalta ele como os objetivos iniciais de todos os colonizadores europeus eram estritamente econômicos, voltados para a apropriação fácil e o comércio de riqueza. Essa característica marcou, de início, tanto a colonização portuguesa quanto as demais. Foi bem mais tarde que se diferenciaram as colônias de povoamento e as colônias de exploração. Também essa diferenciação resultou de determinações externas, isto é, de fatores ligados à história política e religiosa europeia. As colônias de povoamento foram típicas das regiões temperadas e as colônias de exploração típicas das regiões tropicais, estas baseadas na grande propriedade e no uso da mão de obra escrava organizadas como grandes empresas comerciais a serviço das demandas do mercado europeu. Em síntese, sociedades coloniais do tipo do Brasil formaram-se voltadas para fora, subordinadas aos interesses e às demandas econômicas do mercado externo. Como frisa o próprio autor,
“Se vamos à essência da nossa formação, veremos que nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. E com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras”. (Formação do Brasil Contemporâneo. S. Paulo: Publifolha, 2000, p. 20).
A citação acima se completa com uma outra observação feita por Caio Prado logo adiante: o sentido da formação do Brasil contemporâneo baseia-se nas linhas citadas.
No conjunto, a obra compreende, além da Introdução e do capítulo intitulado Sentido da colonização, três seções compostas por um número variável de capítulos referentes a cada uma delas: a primeira seção trata do processo de povoamento do Brasil, do litoral, onde de início se concentra, à ocupação progressiva do interior; a segunda, que ocupa a parte central da obra e é a determinante do conjunto estudado, prende-se à organização da vida material. Por fim, a vida social.

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