sábado, 11 de junho de 2011
A Vida num Filme
A vida num filme
ou revendo La Femme d´à Côté
As luzes se apagam e ele está sozinho no cinema.
O que sofre um homem
Quando suas histórias de amor
Se confundem com as do filme?
As imagens da memória
Tantas já congeladas nos porões do inconsciente
Se vão milagrosamente recompondo
Indissociadas das imagens na tela projetadas.
Se nestas Eros e Tânatos se fundem no momento supremo
Naquelas repica o ranger dos freios desgovernados
A colisão dentro da manhã ensolarada
A vida refeita por um triz.
Antes da colisão contra o muro
A memória de um olhar pânico dentro do outro
O medo paralisante da morte provocada.
Depois a bruma dentro da ferragem retorcida
O sangue no pára-brisa estilhaçado
Foco metálico do sol fervendo na lataria.
A multidão dos banhistas gozando
A brutalidade do espetáculo imprevisto
Enquanto o corpo ensanguentado capotava sobre o asfalto.
Nem com você, pior com você.
Mas a vida, dissentindo do filme,
Se remenda e sobrevive em câmaras frias
E corredores indiferentes
Enquanto a amada homicida geme desvairada na antessala.
Antes de tudo, porém, como no filme
Veio o beijo indiferente ao imperativo da gravidade
O corpo afrouxando de desejo
E ruindo como um saco vazio amparado no meu corpo.
Entre a queda e a colisão
A viagem sem governo dentro da noite
Um poço sem fronteiras
Cavando as possibilidades mais exaltadas e destrutivas.
E caíamos e caíamos
E caíamos gozando o frenesi da queda
A viagem terminal dentro do amor.
E nos dizíamos e jurávamos:
Eu com você e só com você.
Até que a vida, como no filme,
Converte o júbilo em ruptura
A unidade momentânea
Em estranheza enfurecida.
O amor cai.
Antes de morrer o amor cai.
Cai por vezes no tumulto do orgasmo
Outras esbarrando na própria sombra sem comando.
Cai rolando nas escadas
No piso escuro onde suado o amor se mede e desregula.
Cai literalmente da janela
Traçando no vazio da tarde inglesa
Tão recatada e perplexa
A curva fatal do desespero.
A voz de um homem desamparado (“Meu amor, por quê?”)
Embalando-a agonizante nos seus braços
E a morte chegando no sopro congelado do campus.
Antes do fim o amor trai.
O amor mente, depois trai
Ou trai para no amor mentir.
Traição e mentira: uma e outra de tal modo entrelaçadas
Uma na outra mirando o seu avesso
Como se o amor traído não as visse e sofresse
Com a intuição penetrante que desnuda
A verdade soterrada na linguagem.
Ah, o meu amor despido
Nas próprias vestes da mentira invocada.
O que sofre um homem
Quando suas histórias de amor
Se confundem com as do filme?
As feridas do amor
São o lodo acumulado no piso da memória
Atualizada na sala indiferente
Onde áridos semelhantes mascam chiclete
Atados à âncora de celulares emudecidos.
As feridas do amor
Acumuladas no piso da memória
Poeira nas fotos picotadas
Dentro de uma névoa de lágrimas
Rangem sob as solas fatigadas
E o homem braceja agora
Dentro de um mar de luzes acesas e sem humanidade.
Retido no cerne da aridez circundante
Tânatos acena a possibilidade do tiro
Explodindo no fulgor cego do orgasmo.
Mas tudo humano e neutro se refaz
E o público vai lentamente repondo os pés
Na mecânica engrenagem da rotina.
O homem refaz o curso da solidão e da casa
Vergado ao peso da memória sem bobina.
O tempo da vida material é o presente
Mas a memória trabalha contra o tempo
E dispersa nas ruas, na aridez do asfalto
O filme do vivido irreversível
O amor que é porque acaba
Pois que ser é contingente.
Mas por que, eis se pergunta,
Por que há o amor de ser sempre a mesma história?
Por que há de sempre e contra si assim fazer-se
Negando no ofício da fatura
A imagem com que sempre a si se veste?
Por que em cada história que se tece
O amor desmente a força estranha que o move?
Por que não se realiza contra as forças que o destroem
Tecendo no corpo e leito um outro fecho de filme?
Fernando da Mota Lima.
Recife, 06 e 07 novembro de 1999.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Belíssimo poema.
ResponderExcluir