quarta-feira, 15 de junho de 2011
Casa-Grande & Senzala
A publicação de Casa-Grande & Senzala, em 1933, representou sem exagero uma revolução no desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Antonio Candido ressaltou num célebre prefácio escrito para Raízes do Brasil que o livro de Gilberto Freyre foi um dos três decisivos na formação da sua geração. Esse juízo tornou-se tão consensual que hoje muitos estudiosos aludem à apreciação de Antonio Candido para apontar as duas obras acima, acrescidas de Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., como as três grandes obras clássicas do pensamento social brasileiro. Darcy Ribeiro foi mais além. Escrevendo um outro prefácio, este para a edição venezuelana do próprio livro de Gilberto Freyre, afirmou com todas as letras que Casa-Grande & Senzala era a obra mais importante da cultura brasileira.
Inicio este artigo com o parágrafo acima para sugerir ao leitor a importância inegável que esta obra passou a exercer na nossa história cultural desde o momento em que foi publicada. Gilberto Freyre escreveu uma obra ainda hoje reconhecida como fundamental para se estudar e conhecer o Brasil, sua formação cultural e suas características mais fortes. Ela mudou a maneira de o brasileiro, sobretudo o brasileiro da elite, encarar a si próprio como brasileiro. Levando adiante e consolidando tendências culturais inauguradas por alguns estudiosos isolados do passado, e mais amplamente pelo modernismo, como observei ao estudar este movimento e a contribuição dos seus dois representantes mais significativos, Mário e Oswald de Andrade, em outro artigo postado neste blog, Freyre inverteu a imagem dominante no seu tempo, uma imagem ainda muito influenciada pela antropologia racista de procedência europeia. Baseada em teorias de cunho determinista, tanto do ponto de vista geográfico quanto racial, ela representava o Brasil como um país inviável ou incapaz de ingressar na corrente da civilização ocidental.
Ao publicar Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre expõe evidências e argumentos que invertem essa visão do Brasil. Antes de tudo, como ele próprio salienta no prefácio também célebre escrito para a primeira edição do livro, sua obra baseia-se numa distinção fundamental entre raça e cultura. Discípulo do grande antropólogo Franz Boas, de quem foi aluno nos EUA, Freyre reuniu farta documentação, também inovadora dos estudos sociais no Brasil, para refutar as teses racistas. Além disso, também dialoga com a tradição nacional tanto aproveitando lições de antecessores que convergem com suas teses, como é o caso da obra de Joaquim Nabuco, quanto refutando contemporâneos como Oliveira Vianna e Paulo Prado, tendentes seja a adotar teses racistas, seja a depreciar os valores culturais brasileiros.
Casa-Grande & Senzala constitui a primeira parte de uma obra mais ampla e ambiciosa designada por Gilberto Freyre como uma “Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil”. A segunda parte, lançada três anos mais tarde, intitula-se Sobrados & Mucambos. Enquanto a primeira obra concentra-se na formação da nossa sociedade patriarcal durante o período colonial, a segunda prende-se à decadência do patriarcalismo na contracorrente da nossa formação urbana. A terceira parte, publicada bem mais tarde, 1959, sob o título Ordem e Progresso, concentra-se no advento do Brasil republicano e na transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado.
O título da obra já indica sinteticamente muito do seu conteúdo e das teses sustentadas pelo seu autor ao longo de mais de cinco centenas de páginas. Mais do que meros designativos de duas formas de moradia ou habitação, a casa-grande e a senzala, na concepção de Freyre, condensam todo um sistema social. Em primeiro lugar, elas constituem antagonismos sociais, já que a casa-grande é a habitação do senhor de escravos, do patriarca e latifundiário todo-poderoso da nossa sociedade colonial, enquanto a senzala é a moradia do escravo negro importado da África. Mas esse antagonismo é abrandado – ou adoçado, como diz Freyre abusando da metáfora demasiado integradora – pela miscigenação que marcou toda a nossa formação social.
Importa salientar que a miscigenação, nas palavras do próprio autor, não constituiu um fenômeno apenas físico ou biológico. Ela foi também cultural. Suas causas ligam-se, em primeiro lugar, à experiência de miscigenação vivida pelo português antes mesmo de vir colonizar o Brasil. Sua condição bicontinental, espremida entre a Europa e a África, tornou-o adaptável à miscigenação com o árabe e o judeu. A isso somou-se o fato de que, provindo de um país pequeno de população também pequena para povoar a imensidão do nosso território, o português chega ao trópico antes de tudo como um aventureiro sedento de riqueza fácil e gozo sensual. Como havia durante grande parte da colonização escassez de mulher branca, ele facilmente se acasalou com a índia.
Essa foi a base da nossa miscigenação que se estendeu através dos tempos coloniais e hoje está completamente consolidada na nossa formação cultural. Como o indígena resistiu ao trabalho forçado, necessário para que o português realizasse seu projeto de enriquecimento no trópico através da monocultura exportadora, foi preciso importar o elemento africano, que chegou aqui já escravizado e passou a constituir a força de trabalho da colônia e mais tarde do país independente. A presença do negro na nossa cultura amplia o processo de miscigenação, além de enriquecer nossa cultura em muitos aspectos.
Completando a explicação referente ao título do livro, Gilberto Freyre concentra seu estudo nas relações entre o senhor da casa-grande e o escravo doméstico, diferenciado do escravo destinado ao trabalho mais duro e castigante do eito. Essa, aliás, é uma das críticas feitas a Freyre, que tenderia a generalizar relações entre senhor e escravo restritas ao ambiente da casa-grande. Mas seria injusto afirmar que Freyre omite de sua obra os horrores da escravidão. Mesmo no ambiente doméstico, onde descreve as relações entre o senhor branco e a negra escrava, o sinhozinho e o moleque, a sinhazinha e a mucama, ele ressalta a violência e o sadismo impostos pelo dominador ao dominado. Propondo uma explicação para a opressão imposta pela classe dominante ao povo brasileiro, Freyre afirma que o sadismo da primeira e o masoquismo do segundo decorrem “[d]o simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho”. Esta é outra tese bastante criticada, mesmo por estudiosos que enaltecem a obra de Freyre, como é o caso de Darcy Ribeiro e Elide Rugai Bastos.
Completando afinal a explicação de aspectos fundamentais da obra a partir do seu próprio título, importa observar a conjunção aditiva “e” que enlaça os dois substantivos à primeira vista antagônicos. Já antes acentuei as forças socioculturais que concorreram para aproximá-los. Adianto agora que essa concepção supõe uma interpretação integradora das três matrizes formadoras da cultura brasileira já estudadas na aula cujo título é A Cultura Brasileira e Suas Matrizes.
Embora reconheça os aspectos violentos e corruptores da escravidão, Gilberto Freyre adota uma concepção sem dúvida integradora da cultura brasileira. Ele é sem dúvida a grande fonte de uma representação hoje oficializada que representa nossa cultura como integradora de todos os seus componentes, uma cultura que confunde miscigenação com democratização social. Daí provém o mito de que somos uma democracia racial, o que não é verdadeiro. Embora nosso racismo seja mais brando do que o norte-americano, por exemplo, onde foram adotadas medidas de segregação racial nunca felizmente praticadas no Brasil, o fato é que não somos uma democracia racial. Basta observar a extrema desigualdade social que ainda vigora na nossa sociedade. Não é acidental um outro fato também facilmente observável: a predominância do elemento negro e mulato nas camadas mais pobres e sofridas da nossa sociedade.
A crítica acima não refuta o fato de que Gilberto Freyre contribuiu com sua obra mais do que qualquer outro dos nossos estudiosos para a valorização da cultura negra. Além de inverter o sentido antes conferido ao negro na constituição da nossa cultura, sentido que correspondia à condição inferior do negro, Freyre expõe na sua obra evidências e argumentos sólidos em defesa do negro, a quem aliás caracteriza como agente civilizador, apesar da sua condição de escravo. Sua suposta inferioridade, como Freyre bem o demonstra, não tem nenhuma comprovação de base científica ou racial. A inferioridade do negro, assim como do brasileiro pobre em geral, é fruto de condições culturais, frisa Gilberto Freyre, não raciais. E ele vai adiante e assinala alguns desses fatores responsáveis pelas condições de subdesenvolvimento do nosso povo: a monocultura, que impôs condições de subnutrição crônica à nossa população pobre ou simplesmente desamparada; a sífilis que se difundiu através de um estado de promiscuidade sexual que perversamente induzia o macho, como é típico de sociedades patriarcais, a exibir com orgulho as chagas da doença, prova de que ele era macho.
Pode-se afirmar que Freyre foi o introdutor no Brasil de técnicas e métodos sociológicos modernos aprendidos durante seus estudos de formação sociológica nos Estados Unidos. Outra inovação extraordinária, esta bem pouco seguida nos círculos acadêmicos onde se formam nossos cientistas sociais, consiste na qualidade da sua prosa, devedora de sua formação também amplamente literária. Sua obra destaca-se pelo estilo plástico e sedutor com que expõe seus argumentos e descreve relações e tipos sociais. Utilizando tanto a linguagem técnica quanto a coloquial, para a qual demonstra uma sensibilidade típica dos melhores prosadores e artistas da palavra, Freyre foi muito criticado pelos cientistas de formação estreitamente acadêmica que sempre o depreciaram alegando faltar rigor e precisão conceitual à sua obra. O irônico disso tudo é que muitos desses autores acadêmicos passam, alguns depois de gozarem de grande prestígio no meio universitário, enquanto a obra de Freyre fica e pode com justiça ser encarada como uma das obras definitivas da cultura brasileira.
Ler também:
Impacto e Permanência de CG&S
O transitório e o permanente
Brasileiros de São Paulo e de Pernambuco
Sob o signo da ambiguidade
Gilberto Freyre de A a Z
Um Vitoriano dos Trópicos
A Modernidade nos Trópicos
Modernismo e Regionalismo
Modernismo, Regionalismo e Identidade Cultural
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário