domingo, 5 de junho de 2011

A Modernidade em Olinda



A Modernidade Carnavaliza os Quatro Cantos

Ó abre alas – O indivíduo que busca pessoas e não encontra senão o outro pulverizado em massa – eis a dilacerante provação existencial da modernidade.
Vem Pitombeiras, vem Elefantes, blocos e troças e tudo numa boa se mistura: brancos, negros, cafuzos e mulatos. É o povo brasileiro carnavalizando os Quatro Cantos e toda Olinda, cara. Mas num supetão (você nem viu) tô eu ali tomado pela consciência de ser indivíduo dissolvido em massa. Quem que me ensinou isso, cara? Foi a teoria das três raças tristes, o Brasil caboclo, tropical e sambante? Foi isso não, cara, foi a modernidade.
E passam blocos, mulatos passam, passam figuras imperiais que logo na primeira esquina são atropeladas por um Chevette. É o Brasil arcaico simbolicamente confrontado com o Brasil moderno, cara; o Brasil do Banco Econômico, cuja faixa carnavalescamente compete com a do Pitombeiras, arrancando de um folião o comentário indignado: “O capitalismo infiltrou-se no carnaval de Olinda”.
E vem um homem e beija você, cara; vem uma mulher e beija você. E nada é proibido, cara, nada de nada recusas. Só por que é carnaval? Não só. Carnaval e modernidade. Quero dizer: a inversão da norma contaminada pelo sentido de ruptura dos padrões estéticos, bestéticos e morais. Modernidade é o lugar de instauração da anomia, cara.
A modernidade desfila nos Quatro Cantos e eles nem sabem, não obstante a encenem. Dissolvido na massa (a massa e a multidão, a multidão solitária, a indústria e a cidade são expressões da modernidade) num lance, ou relance, você se pega roendo as unhas. Roer as unhas, em semelhante contexto, não será uma forma de indiciar a distância (distanciamento, diria nossa modernidade brechtiana) entre a sua consciência, vincada de modernidade, e a explosão alegórica do Brasil primitivo? Entre você e a massa, entre a consciência e o passo (do frevo, bem entendido. Bem entendido noutro parêntese. Vê como as associações se atropelam? Não é que antes não se atropelassem. É que antes não sabiam, nem sabia você, da psicanálise) se interpõe a modernidade. E que diabo é a modernidade senão o fosso cavado entre a consciência e o objeto, o uso e a troca, a perversão e a inocência, o Brasil arcaico pulsante no primitivismo de suas expressões, e o Brasil moderno vincado pela força da máquina, racionalização, automação, minicomputador, antimísseis e explosões atômicas?
A modernidade frevou nos Quatro Cantos e você nem viu, embora professe sua psicanálise diluída, seu marxismo de manual e guie seu carro movido a álcool – único indício, aliás, do Brasil agrário engrenado no seu motor. A modernidade é toda essa complexa e promíscua e confusa realidade que o devora sem que dela você se dê conta. E no entanto, Machado de Assis, que viveu no século 19 (mas foi mulato de alma branca, dizemos nós ilusoriamente rebaixando-o na sua expressão de modernidade artística brasileira) disse a modernidade em pleno Brasil Pedro II com uma agudeza que todo nosso nacionalismo populista, e pululantes excrescências, não consegue dizer ainda à altura desse tumultuoso declive que de cabeça nos impele de encontro aos vulcões do século 21.
A modernidade pintou nos Quatro Cantos e você nem viu, cara, tão absorto estava nas arcaicas paisagens desse Nordeste miscigenal-tropical-canavial arquitetonicamente dançando sobre as ruínas das casas-grandes e senzalas. A modernidade cruzou certa janela dos Quatro Cantos de Olinda e só Carolina não viu.
Ó fecha alas – Universal é a estupidez, não a modernidade.
Olinda, setembro de 1984.
Nota – crônica publicada na revista Extensões, da Universidade Federal de Pernambuco, no. 1, agosto/outubro 1984.

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