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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Sus! é o SUS


O político ou publicitário que rebatizou o sistema de saúde brasileiro é por certo um erudito. O que não sei é se tramou a sigla sombria movido pela ironia sádica ou a compaixão cristã, uma das virtudes brasileiras que Gilberto Freyre louvava num dos seus surtos líricos. Como não sou erudito (tendo bem mais para o erro dito), vou logo desmanchando o mistério diante do leitor intrigado ao ler o título desta crônica. Descobri há muitos anos, quando era leitor apaixonado da poesia de Manuel Bandeira, esta interjeição intrigante: sus! Ele a enfiou num dos seus poemas, cujo título já não lembro. Fui do poema ao dicionário e assim fiquei sabendo que sus quer dizer eia, ânimo, coragem!
Os azares da vida e da idade tangeram-me ontem e hoje para o posto médico do bairro. Parado diante da fachada aterrorizante - recoberta por sujeira, buracos e ferrugem – li num arrepio a sigla do Sistema Médico de Saúde: SUS. A interjeição há tanto esquecida, eco do poema de Manuel Bandeira, repicou na minha memória. Armando-me de coragem, sobretudo resignação, subi lentamente a escada que conduz ao primeiro andar. Sus!, segui subindo os degraus toscos enquanto suava escada acima. Do térreo vazavam, através de uma porta, o ruído e a poeira de uma reforma. Onde quer que eu ande constato esta verdade dolorosa: vivemos arruinando a civilização que fomos incapazes de construir. Chego afinal à sala de espera e deparo o quadro previsível: gente pobre e feia, gente resignada e sofrida, gente vergada ao peso da opressão social que a castiga do berço ao túmulo. Enquanto uns tagarelam na sala quente e desconfortável, outros quedam desanimados, como que imersos num pesado torpor. A única coisa que me surpreendeu foi o fato de não divisar um aparelho de TV pendurado na parede ou preso a um cabo suspenso do teto. Sus!
Minha reação habitual é murar-me no meu egoísmo humilhado. Mas logo me lembrei de que o remédio mais eficaz para nossa dor egoísta é a dor alheia. Assim, virei-me para as pacientes mais próximas e comecei a entabular conversa. Logo fiquei sabendo que a Dra. Vera falta com freqüência. Como é de praxe nos consultórios, públicos ou privados, ninguém dá satisfação ao paciente, que no Brasil justifica o substantivo. Paciente no Brasil, notadamente do SUS, existe para isso mesmo: para ser paciente, apanhar calado, esperar sentado ou de pé exposto à vontade e aos caprichos médicos com a resignação fatalista de boi de matadouro. A Dra. Vera falta há três semanas e há três semanas dona Maria vem, espera e depois faz o caminho de volta resignada a voltar na próxima semana amparada pela esperança de que na próxima vez a Dra. Vera virá aliviá-la das suas dores. Sus!
Se eu fosse psiquiatra do SUS, prescreveria para meus pacientes este remédio milagroso: se quer esquecer sua desgraça, abra os ouvidos para ouvir a desgraça alheia. Não digo que se compadeça dela, já que nosso egoísmo é cada vez mais espesso e rugoso; basta ouvi-la com atenção suficiente para esquecer a própria. É um santo remédio e não custa nada. De quebra, o paciente infeliz que verte sua dor no nosso ouvido atento fala de si comovido com a nossa atenção. Quem não quer e precisa ser ouvido, ainda mais na adversidade? Abra os ouvidos para a dor do paciente ao lado e logo você esquecerá a sua. Foi o que fiz e assim perdi noção do tempo escoado naquele ambiente desolador.
Quando dei por mim, sentindo dor na minha coluna egoísta, foi porque gritaram meu nome do corredor. A Dra. Virgínia atendeu-me muito atenciosamente. Nada fez por mim, nem o SUS permitiria que fizesse, mas me atendeu com atenção e respeito. Preencheu um formulário informando-me de que estava me encaminhando a um oftalmologista, pois nada poderia fazer para desembaraçar os trâmites do meu processo. É claro que antes do oftalmologista virá uma nova fila cedo da manhã para obter uma ficha, se evidentemente muitos outros pacientes não se anteciparem ao meu relógio. Depois disso, outras horas de espera, outros transtornos previstos e imprevistos. Encurtando a consulta, como felizmente tenho o privilégio de trocar a burocracia fria e sórdida do SUS pelo dinheiro que gastarei comprando tudo no mercado, despedi-me da Dra. Virgínia com um buraco no bolso, mas muitas horas de vida e indignação poupadas. Sus! é preciso ser muito pobre ou demasiado avarento para obter remédio caro no SUS, ou qualquer outro serviço. Sus!
Quem diz que o Brasil é uma democracia social, ou que Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Roussef (arengas ideológicas à parte) elevaram-no a esta invejável condição, é inconsciente, iludido ou beneficiário irresponsável do sistema de dominação há séculos instaurado neste cativeiro tropical. Quem louva nossa suposta democracia social é quem nunca precisa mourejar dependendo de transporte coletivo, depositar sua segurança nas nossas instituições públicas, educar-se nas nossas escolas públicas, adoecer assistido pelo SUS. Sus! pois a servidão social continua viva e poderosa neste país formado sob os tacões do Estado patrimonial, do colonialismo e da escravidão.
Recife, 2 de setembro de 2014

domingo, 1 de dezembro de 2013

A Rebeldia da Juventude


A doença infantil da juventude é a rebeldia. O jovem rebela-se, antes de tudo, por causa da sua insegurança e da necessidade de afirmar sua individualidade. Esta supõe a negação dos pais ou de quem simbólica ou literalmente representa os papéis que assim os definem. Chovendo no molhado, os pais são nossos modelos primários. Mais do que isso, portamos no nosso corpo e no nosso psiquismo, na nossa condição genética, as marcas indeléveis que nos transmitem. Por isso precisamos viver nessa fase da nossa vida essa relação negativa contra eles. Precisamos negá-los como meio necessário para afirmar nossa diferença, nossa singularidade diante deles e da vida. Além disso, o jovem também se rebela contra a vida, contra a realidade que o oprime. Quem já não ouviu ou disse este lugar comum: apagamos na maturidade os incêndios que ateamos na juventude? Sei que os termos do lugar comum não são estes, apenas limito-me a traduzi-los sem lhes comprometer o sentido substancial.
Na minha juventude, a fração mais consciente da minha geração rebelou-se contra a ditadura militar. Considerada a totalidade dos jovens da época, éramos uma minoria insignificante. Mais reduzida ainda era a fração dos radicais que optaram pela luta armada para enfrentar a ditadura. O exemplo genérico sugere a imprecisão do conceito de geração, tão correntemente usado nos estudos historiográficos. Como a oposição ativa e institucionalmente organizada foi suprimida (daí a ditadura), opositores do meu tipo negavam o poder político migrando para dentro de si próprios. Era uma forma de oposição de raiz subjetiva, à margem da esfera pública, que provavelmente punia apenas o opositor. Pelo menos na instância imediata ou empiricamente apreensível. Afinal, o opositor se tornava um desajustado vivendo na contracorrente dos valores dominantes.
Foi por me tornar um opositor da ditadura que passei a me identificar como um crítico e inimigo intransigente dos valores dominantes. Essa oposição se estendia à esfera da família (daí detestar na minha família o que identificava como valores típicos da pequena burguesia), da religião (que não passava de ópio do povo), do capitalismo compreendido como sistema regulador da nossa existência material. Para além da mera contestação política, os anos 1960 e 1970 acabaram ultrapassando em muito o marco da política para se transformarem numa era de autêntica revolução dos costumes. De fato, a contestação que então irrompeu transbordou dos marcos da política compreendida no seu sentido convencional espraiando-se para os costumes gerais da sociedade. A própria disseminação de regimes ditatoriais em praticamente toda a América do Sul acabou concorrendo para deslocar a rebeldia da juventude para o âmbito dos costumes. Isso grosseiramente explica a explosão das formas de comportamento e das modas que na prática representaram uma força de erosão da família tradicional, dos papéis pertinentes aos gêneros, à sexualidade, ao conjunto das normas de regulação ética da sociedade.
O fato é que, bem ou mal, minha geração, compreendida no sentido acima sugerido, orientava sua rebeldia contra alvos bem definidos. Provavelmente bem poucos sabiam o que precisamente queriam, mas quase todos sabiam o que não queriam. Tínhamos um objeto de ódio contra o qual podíamos em graus variáveis desfechar nossa energia agressiva, nossa rebeldia carente de válvulas de escape e vias de afirmação da nossa individualidade. Um dia, porém, dei-me conta chocado de que me imaginava mudando o mundo, um sistema de poder que me reduzia à insignificância de um grão de areia na imensidão da orla marítima, quando não tinha autonomia nem para viver por conta e risco próprio. Filho de um pai cuja privação de autoridade e comando tornava-o um autêntico pai permissivo avant la lettre, típico da cultura em que hoje vivemos, tinha medo do mundo e estava com certeza totalmente despreparado para enfrentá-lo. Foi aí que, com muito medo, decidi sair de casa para aprender a viver por conta própria. Apreciando retrospectivamente minha vida, não tenho dúvida de que esta foi a decisão mais importante que ousei tomar sem então ter noção clara do seu alcance. Se não a tomasse e seguisse, apesar do medo e de todas as tribulações que daí advieram, teria provavelmente fracassado de forma absoluta.
Para além das motivações negativas - negar a família de que era parte e na qual fui progressivamente deixando de me reconhecer; negar valores morais relativos à sexualidade, à religião, às ambições de futuro e de vida bem sucedida etc – sentia-me também impelido por motivações positivas. Por exemplo: conquistar a liberdade de dormir com minha namorada; viver uma vida regida por valores sexuais e afetivos mais livres; contribuir dentro dos meus limites individuais para a fundação de uma sociedade mais livre e portanto menos repressiva. Assim, saí pelo mundo decidido a não repetir a história do meu pai, fortalecido pela crença de que viveria uma vida muito melhor do que aquela possível nos marcos do mundo em que me formei - e sobretudo deformei, assim ponderava ao cotejar o real com o desejável, o mundo que herdei contra minha vontade com o que me acreditava capaz de conquistar. Não preciso dizer que apanhei muito da vida, que fiquei muito aquém do que ingenuamente me supunha capaz de alcançar. De qualquer forma, continuo acreditando que minha rebeldia, a coragem relutante com que larguei a família para fazer de mim um indivíduo no sentido moderno do termo, tudo isso valeu a pena e me franqueou uma forma de vida melhor do que antes vivi.
Anos mais tarde, já acomodado na fase em que deixamos de ser incendiários para apagar o fogo das paixões juvenis, muitas vezes repassei perplexo na memória coisas que fiz e simplesmente não me podia mais imaginar fazendo. Lembro-me com mais nitidez que essas rememorações perplexas se amiudaram nas minhas noites de solidão inglesa. Cheguei à Inglaterra no dia preciso em que completei 40 anos. Se há uma idade da razão, comigo muito duvido, diria que a minha inaugurou-se no mundo inglês. Se fosse o caso de indicar uma data precisa, escolheria a data da minha chegada, quando pus as pernas trêmulas (uma delas aliás literalmente enferma devido a uma cirurgia para curar uma ruptura de menisco interno) num solo e mundo absolutamente estrangeiros. Ali, naquele exato momento, iniciei um estágio completamente novo na minha vida. Algum tempo depois, curtindo uma solidão prolongada e indizível, no entanto também estranhamente sólida e serena, surpreendi-me no silêncio e no frio repassando na memória os incêndios ateados no Brasil durante minha juventude. Pensava então, completamente perplexo, por vezes entre risadas de espanto e incredulidade, como fui capaz de fazer aquelas coisas nas quais já não me reconhecia, coisas que com certeza não mais sequer cogitaria fazer novamente. Isso traduz, de forma um tanto simplista, minha passagem da juventude para a maturidade.
O que hoje move a rebeldia da juventude? Uma coisa me parece certa: ela não tem um alvo de negação definido. Nisso diria que é radicalmente diferente da minha geração. Na medida em que precariamente o percebo, o jovem de hoje, o típico jovem de família classe média brasileira, não tem contra o que se rebelar. A despolitização do espaço publico privou-o da capacidade de contestar, por exemplo, os valores do capitalismo globalizado. O que Marx designava como fetiche da mercadoria tornou-se uma força tão onipresente no mundo em que hoje vivemos que precisamos de algo que negue nossa humanidade mais elementar para nos compenetrarmos de nossa diferença do reino da mercadoria. Narro um exemplo preciso que acabo de ver no Jornal Nacional da rede Globo. Uma reportagem sobre o tratamento reificante (quem ainda usa este termo que tanto se entranhou na minha consciência antiburguesa?) imposto pelos planos de saúde aos usuários ou pacientes (estes termos de resto suprimem nossa humanidade individual) mostra o que acontece a muitos cujo tratamento urgente e inadiável é suspenso por irresponsabilidade criminosa da operadora do plano. Um pai, cuja filha foi vítima desse crime corrente e impune neste Brasil de códigos legais de ordinário reduzidos a letra morta, declarou ao repórter: “Minha filha não é um carro que levamos de uma oficina para outra”.
Com ou sem juventude, ninguém se rebela contra essas afrontas a nossos direitos humanos que são todos os dias espezinhados pelo tipo de capitalismo estabelecido no Brasil. Precisamos de exemplos da natureza do que acima descrevi para nos dar conta de que há um fator humano diferenciador da nossa condição. Noutras palavras, nossa humanidade falível não deve ser tratada como tratamos um carro avariado. Abstraída essa circunstância excepcional, no entanto, qual é nossa percepção ética e existencial do carro dentro da natureza técnica e instrumental que rege nossa chamada civilização? Vivemos em cidades desumanas cujo funcionamento está dirigido para a supremacia do automóvel. O ideal de todo indivíduo típico, dentro dessa civilização, é comprar um carro para em seguida mergulhar nos labirintos congelados do nosso trânsito que não mais transita. A máquina publicitária, expressão dos valores que movem a ação e a consciência alienada do presente, satura nossas fantasias de consumo com automóveis e uma rede de símbolos de aquisição que, no limite, reduzem nossa humanidade àquilo que os planos de saúde executam e ocasionalmente se revela numa reportagem de noticiário televisivo: somos apenas máquinas degradáveis e descartáveis. Por isso os planos de saúde tratam-nos como os carros avariados são tratados: atiram-nos em qualquer oficina, quando não nos reduzem pura e simplesmente a ferro velho.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Nomes próprios e impróprios


A questão da grafia e adoção dos nomes próprios estrangeiros é um capítulo curioso da nossa ideologia nacionalista. Já a questão da identidade cultural é por certo o capítulo crucial desta ideologia. Refleti um pouco sobre essas questões que sumariamente assinalo na abertura deste artigo porque me ocorreu lembrar os nomes extravagantes de muitos dos alunos que tive em anos mais recentes. É curioso observar como tendemos cada vez mais a adotar nomes estrangeiros. Mais que isso, mais estrangeiros que os modelos adotados, dobramos consoantes inexistentes nos nomes que nos servem de inspiração. Assim, há agora brasileiros batizados como Petter ou Rychaddson. Como professor, na hora da chamada por pouco não mordi a língua várias vezes para pronunciar ou tentar pronunciar corretamente os nomes extravagantes de alunos brasileiros que todavia têm nomes mais que estrangeiros, mais extravagantes que os estrangeiros.
O fenômeno parece acentuar-se (adianto que não procedi a nenhum levantamento empírico, como é de hábito no ofício dos sociólogos) nas classes mais pobres. Quero dizer, quanto mais descemos na composição econômico-social dos alunos, mais encontramos a adoção de nomes estrangeiros saturados de consoantes dobradas e outras extravagâncias gráficas inexistentes nos modelos estrangeiros adotados. Sendo mais preciso, é nos cursos de secretariado e serviço social, pedagogia e turismo que se observa a maior frequência do fenômeno que aqui considero. Neles passei a esbarrar em singularidades como Walleska, Weruska, Nattaly, Wylliam... Lamento agora não haver anotado todos para melhor aproveitá-los neste artigo.
Ora, pensei com minha rota gramática dos nomes próprios brasileiros, aí tem coisa, isto é, isso é sintoma de sentidos submersos no solo da grafia, ou na pele da escrita. Por que tanto agora nos entregamos a esses caprichos que certamente infernizam o trabalho dos funcionários de cartório e os professores, obrigados a morder a língua pronunciando essas consoantes esdrúxulas? O fenômeno, ou pelo menos sua exacerbação, é novo, talvez sintoma do processo de globalização que estreitou as fronteiras entre as nações e os nomes. É porém raro encontrar nomes brasileiros entre os americanos e ingleses, franceses e alemães, embora com certeza tenha aumentado assustadoramente a presença de imigrantes legais e ilegais nos EUA, Inglaterra, França e Alemanha. Esta relação desigual sugere a reiteração, neste registro, da nossa dependência cultural, fenômeno típico em países de forte tradição colonial. Noutras palavras, a inflação de nomes estrangeiros na nossa cultura seria apenas mais uma evidência da nossa macaqueação do estranja, como dizia Mário de Andrade com suas expressões peculiares.
Aliás, lembro Mário de Andrade bem a propósito, já que foi provavelmente o maior apóstolo da nacionalização da nossa cultura. Seu pragmatismo militante, tantas vezes confessado e justificado, levou-o a adotar processo inverso ao que acima anotei quando escreveu sua pioneira Pequena História da Música. Visando afirmar os valores nacionais postulados pelo modernismo, nesta obra ele decidiu grafar os nomes de grandes músicos europeus aportuguesando-os. Assim, escreve João Sebastião Bach, Cláudio Debussy, Ricardo Straus etc. Ninguém embarcou na sua canoa furada, que de resto vazou água na própria obra que cito, pois ele foi de uma inconsistência flagrante: ora aportuguesa os nomes, ora preserva a grafia original.
Há pouco escrevia para uma amiga lembrando mais uma vez uma frase primorosa de Tom Jobim que não me canso de citar: “O Brasil não é para principiantes”. Cito-a além da desmedida, reconheço, porque nossa realidade desconcertante está sempre me dando razões de a lembrar e novamente constatar sua precisão. Falamos por ombros e cotovelos o quanto nos orgulhamos da nossa identidade. Os brasileiros mais bairristas, é o caso dos pernambucanos, redobram a dose acrescentando ao nacionalismo provinciano, com perdão do truísmo, as glórias da nossa pernambucanidade, o orgulho de ser pernambucano e nordestino. Convém de resto lembrar que o “orgulho de ser nordestino” é produto publicitário pago e apropriado pela rede Bompreço, que por sua vez vendeu o mote publicitário sem tirar nem pôr ao capital globalizado. Portanto, para bom entendedor meia publicidade já denuncia o comércio inteiro.
Mas lembrava nosso orgulho confesso da nossa identidade cultural que espalhamos aos quatro ventos. Ora, antes de constituir uma evidência de efetiva identidade consolidada, o fato é antes sintoma da persistência de nossa mentalidade colonizada, do servilismo com que, a partir da própria adoção dos nomes próprios, macaqueamos as culturas que são objeto da nossa inveja e ressentimento. Povos ou países cuja identidade está de fato assimilada, integrada às camadas profundas das expressões inconscientes da nacionalidade e da cultura, prescindem desse tipo de comportamento que entre nós se manifesta em tudo através de mecanismos induzidos pelo Estado e toda a rede de instituições cuja função é produzir e sedimentar padrões de comportamento e valor cultural.
Também nossos modos de morar transpiram sintoma de colonialismo mental. Eu por exemplo, o recifense mais colonizado do Brasil, moro num condomínio cujo nome é Castelo de Luxemburgo. O Recife pulula de condomínios identificados não apenas como castelos, mas como castelos que traem nossas fantasias de nobreza de matriz francesa, inglesa, italiana, espanhola... Já pensei em sair pelas ruas do bairro onde moro anotando os nomes tão peculiares e sintomáticos dos condomínios habitados pela classe média. Os intelectuais que odeiam a classe media, também sintomaticamente pertencentes a ela, costumam denunciar do alto dos tribunais nacionalistas e bairristas a mentalidade colonizada da classe media, notadamente a classe média intelectualizada. O galo canta e logo confundem o poleiro. Não é só a classe média que é colonizada. Os porteiros e zeladores do condomínio onde moro falam okei e se chamam Jameson ou Wallace. Quanto a mim, colonizado incurável, já pensei em procurar o cartório do registro civil mais próximo para trocar de nome. Gostaria de me chamar Príncipe William Windsor.
Recife, 20 de novembro de 2013.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

... das pequenas coisas


Sempre quando se mudava. Absolutamente imprevisível nos seus modos de manifestação, a felicidade irrompia do cerne das pequenas coisas. O processo, de tão familiar, tornou-se previsível, imprevisível era a irradiação da felicidade. Já exausto e suado, depois de horas embalando livros, cds, dvds, tapes, minúsculos objetos paralisados no fundo de gavetas empoeiradas, súbito ela irrompia. Vinha de longe, submersa no mofo dos papéis guardados, no ranger secreto das pequenas coisas. Por exemplo assim: ele esvazia uma gaveta, já impaciente, quando o envelope cheio de fotografias escorrega de suas mãos. O choque da felicidade desata-se do íntimo de tais pequenas coisas: as imagens impressas sobre o papel, o sopro do passado vindo de longe, paralisando miraculosamente o fluxo do tempo durante alguns vagos minutos. Retendo as fotos entre os dedos, contempla maravilhado os movimentos da vida dissipada e perdida irradiando de mudas imagens: o carnaval de Olinda pulsando no fundo da cena em contraste com o sorriso sereno enquadrado no primeiro plano. Noutra foto, banhada pela primeira luz do dia, ela repousa quieta e reclusa sobre o chão da varanda. Pouco antes, fato ausente da foto, saíra da cama onde o suor, esperma, odores do amor consumado, respiravam ainda nas dobras dos lençóis revoltos.

A repetição desses milagres cotidianos, ou recriações epifânicas do tempo vivido e materialmente irreversível, se fez sempre inapartável dos processos de mudança. Por isso, na ânsia de reter e renovar tais milagres, tornou-se andarilho compulsivo. Odiava mudanças, sabia-se um sedentário insanável, mas rendeu-se dócil à tirania das peregrinações por bairros e condomínios da cidade. Era o único meio de repor no presente sombrio as iluminações definitivas enraizadas no amor ido e perdido. Os amigos, a tudo alheios, faziam piadas das quais ele próprio complacentemente ria. Diziam que era um judeu errante, que não pagava aluguel, que os vizinhos o desprezavam sempre tramando um jeito de o expelir do grupo ou comunidade.

Sua vida concentrou-se nesses dois modos exaustivos de ritual: fazer e desfazer malas, ordenar e desordenar ambientes domésticos. Num ou noutro, quando não em ambos, nos casos de mudança pontuados pela sorte, ela se desatava dos fundos de gaveta, das cartas atadas num longo cordão prateado, dos poemas que lhe escrevera, dos odores que a brisa noturna soprava pelos vãos da casa. Por exemplo assim: na madrugada, dentro do apartamento vazio, ele a fotografa no momento em que ela corria em sua direção. Noutro plano, este à luz do dia, posa de espadachim entre as filhas eufóricas. Eles entre festas, eles entre frestas, eles entre gente, mas sobretudo eles entre eles concentrados no exercício de um amor sempre renovado e intenso, cavando no fundo dos poços e recessos mais insondáveis as misteriosas emanações do amor constelado.

Aprendeu com as mudanças o contentamento da felicidade alojada nas pequenas coisas. Aprendeu que a felicidade não reside nos grandes e momentosos gestos, nos feitos extraordinários, nas vidas tecidas por acontecimentos inusitados. A felicidade, essa prenda rara avessa aos estados de permanência, infiel aos caprichos da duração incontentada, a felicidade é rebento sutil das pequenas coisas, das aventuras ordinárias da vida povoada por seres tão comuns quanto ele. Se é fruto da vida vivida, sobretudo do modo como a vivemos, nasce ela antes de tudo das tramas indecifráveis da memória. Pois é nesta que a felicidade se reconcilia com a duração, ideal inalcançável na ordem da felicidade vivida, ideal fadado à frustração nas insensatas fantasias dos amantes. A felicidade, sabe ele agora dobrado ao peso das malas que carrega no trânsito das mudanças, é a permanência dos bens idos e perdidos nos campos iluminados da memória. Mas isso, diz ele de si para si próprio, não é lição para sedentários. Há que fazer muitas mudanças de vida e endereço.

Dizem que ele segue por aí, judeu errante transportando nas malas suadas as pequenas coisas de sua secreta felicidade: livros, fotos, cds, dvds, objetos esquecidos nos fundos de gaveta aos quais ninguém dá importância. O problema da felicidade, ou das pessoas que mais a desejam, está na busca ilusória das ações grandiosas, na perseguição insensata dos fins inatingíveis. O problema da felicidade é um problema que se decifra no convívio das pequenas coisas. Mas chega, diz o motorista da transportadora estacionando o carro para recolher sua mais nova mudança.

domingo, 5 de maio de 2013

Como lemos, como nos lemos, como nos leem


Precisamos sempre explicar tudo. Sei que me repito citando Machado de Assis. O que me desculpa a repetição é o fato de sabê-la oportuna. Somente as pessoas muito primárias acreditam que as palavras e a totalidade dos signos que regem a comunicação humana são transparentes e unívocas, assim como somente os hermeneutas herméticos acreditam que a linguagem é um solo minado soterrando sentidos sempre indeterminados. Baixando a bola, o fato é que a linguagem e portanto a comunicação humana não são nunca transparentes. Isso evidentemente não impede o comum das pessoas de aspirarem a mitos como a alma gêmea, a comunhão e transparência propiciadas pelo amor, a comunidade ideológica ou religiosa etc.
O amor não é nunca transparente. O que nele os afortunados encontram, e talvez apenas nele, é um estado de comunhão sensível ou carnal, uma iluminação intelectualmente inexplicável. Daí dizê-lo, nesses estados ou momentos miraculosos, daí dizê-lo inefável. Ou ainda: estados de epifania, de iluminação espiritual irrompendo dentro da banalidade da vida. Mas lembremos o verso de Manuel Bandeira: “Os corpos se entendem, mas as almas não”. Uma evidência banal: sei de muita gente, inclusive eu, que viveu no amor o estado acima descrito, estado de êxtase e epifania, com parceiros em tudo diferentes e desiguais. Como conceber uma comunhão de almas, ou simples afinidade espiritual, entre amantes tão desavindos? Logo, é na carne que se entendem, é na misteriosa mina dos sentidos (carnais, friso) que lavram o gozo e o êxtase, não nas abstrações transcendentes da alma.
Se a comunhão e o entendimento transparentes são alcançáveis através do amor, então isso se dá talvez numa ordem distinta de amor: na ordem do amor amizade, do amor baseado na comunidade espiritual e mística. Seria talvez o caso de lembrarmos o amor de Abelardo e Heloísa, ou ainda a amizade de Montaigne e Étienne de La Boétie. Como Montaigne escreveu numa frase célebre, até transposta para uma canção de Chico Buarque: “porque era ele; porque era eu”. O rebaixamento da experiência amorosa a expressões boçais tão correntes no nosso tempo bem que pode dar margem a que se leia a amizade de Montaigne e La Boétie num registro vulgarmente homossexual. Bem posso imaginar alguém insinuando que ambos teriam inventado a parada gay na França do século xvi. Aliás, este modo de ler, o anacrônico, é outro modo de ler errado. Consiste em ler no passado sentidos que somente têm sentido no presente. Mas isso é outra história.
Não bastasse a inerente indeterminação de sentido das palavras, portanto também das nossas experiências fundamentais expressas na linguagem, agravamos nossos erros de leitura, nossas interpretações arbitrárias, projetando no texto e na vida uma angulação subjetiva que não raro distorce sentidos objetivamente expostos no texto e no âmbito da experiência. A leitura subjetiva, que facilmente se converte em subjetivismo, deforma o sentido objetivamente dado do escrito. Ela pode ser qualificada de muitos modos: subjetivismo de classe, de raça, de gênero, de religião, idade, nação etc. Mas o mais grave subjetivismo é o decorrente da ignorância.Em suma, o sentido lido pelo leitor tem a medida da sua ignorância.
Lembrando um exemplo pessoal, evoco uma personagem irrelevante que ficou um bom tempo na moda, o que prova a irrelevância cultural e ética dominantes na nossa cultura. Refiro-me a Geisy Arruda, que aliás foi até estrela do carnaval de Recife. Escrevi dois artigos sobre ela apenas com a intenção de pegar carona na sua celebridade supondo que ela poderia arrancar-me do meu infeliz anonimato. Tolo engano meu: Geisy entrou na moda enquanto eu afundei num anonimato ainda mais obscuro e amargo.
Mas o que ia observar a propósito de Geisy, já isento do tom de ironia talvez notado por meu improvável leitor ou leitora, é que fui grosseiramente incompreendido no que escrevi, assim como no que declarei num programa de televisão. Foram inúteis todos os meus esforços no sentido de me fazer claro, no sentido de fazer com que as pessoas me compreendessem. Por fim, já desanimado diante de tanta incompreensão, concluí que tudo que me restava era o refúgio do silêncio. A isso acrescentaria a memória remota de um seminário de literatura a que assisti quando era ainda estudante de letras. Discutia-se a interpretação do texto literário quando uma professora narrou uma anedota exemplar. Propôs a seus alunos a leitura de um belo e curto poema de Manuel Bandeira: Consoada. Nele o poeta usa uma metáfora para aludir à morte: a Indesejada das gentes. A professora perguntou a um aluno o que o poeta queria significar com esta metáfora. Resposta: a sogra do poeta. E pensar que Manuel Bandeira, como eu, nem sequer foi casado. Melhor cair no passo de olho no microvestido de Geisy Arruda.
Esta crônica ilustra, à revelia de minha intenção, o estado de decadência cultural em que mergulhamos. Comecei com Machado de Assis e Manuel Bandeira, passei por Montaigne e Étienne de La Boétie e acabei em Geisy Arruda. Difícil imaginar melhor exemplo de degradação do sentido e da cultura no presente.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

O Vizinho Aposentado


Má idade é o que cotidianamente observo na varanda frontal. A qualquer hora do dia meu olhar tropeça sempre, por vezes já inconscientemente, na figura do senhor grisalho. Está sempre sentado absorto na televisão. Poucas vezes o vi de frente, poucas vezes vem à borda da varanda e lança um olhar fugidio sobre a rua, a fachada do meu prédio, minha varanda. À diferença de Alberto Caeiro, um dos mais celebrados heterônimos de Fernando Pessoa, tudo que prende o meu olhar atua automaticamente sobre minha imaginação. Poeta radicalmente sensacionista, Caeiro reitera sempre a soberania dos sentidos. Mais precisamente, a soberania da visão. Caeiro comporta-se na poesia como se nada existisse além do seu olhar. Portanto, nada importa além dele, do olhar, porque nada além dele existe. Seu ponto de vista é poeticamente coerente e sabe ele coerentemente extrair poesia da mais alta qualidade a partir da angulação filosófica em que se situa.
Eu porém, eu que não sou Caeiro nem Fernando Pessoa, e procuro acomodar-me ao alcance pedestre de minha imaginação, não posso mirar meu vizinho, sua rotina passiva e sem variação, sem que minha imaginação se desate. Na verdade, o vizinho, enquanto mero objeto de percepção, não tem para mim a menor importância. Ele importa e passa a compor significativamente a paisagem do meu cotidiano na medida em que refaço sua neutralidade, a figuração opaca de sua existência na minha imaginação. Num certo sentido, torna-se ele criação do que imagino.
Mas o ser que invento, ou suponho existir nos modos em que o imagino, não é um puro produto de minha imaginação arbitrária. Quero dizer que o imagino a partir de certos sinais, diria até evidências. Assim, vejo-o repetir-se sem variação todos os dias, todas as horas do dia, e então o imagino um homem recém-aposentado. Agora mesmo, no momento em que digito esta anotação, volto-me para a sua varanda e através da janela vejo-o imóvel, passivamente fixado nas imagens da televisão. Tudo que figuro para além de minha percepção visual, bem entendido, existe apenas enquanto criação imaginária, não enquanto dado factual ou sensível. Voltando a Alberto Caeiro, estamos ainda aqui em perspectivas opostas, já que para ele tudo que existe é o que seus sentidos – a visão antes de tudo, reitero – apreendem. Fosse eu Alberto Caeiro, o que para mim existiria seria o quadro visual que descrevo: Um homem grisalho sentado o dia inteiro diante da televisão. Isso apenas e nada além disso.
Mas dizia imaginá-lo um recém-aposentado. Esse homem à minha frente decerto trabalhou boa parte de sua vida, ou pelo menos ocupou-se com algo que lhe rendeu meios de sobrevivência segura. Agora, já entre os 60 e 65 anos de idade, retirou-se do mundo do trabalho, ou algo equivalente, e se recolheu à rotina passiva da poltrona diante da televisão. Se a tão pouco confinou sua velhice, se passivamente deixou-se reduzir a essa sombra sentada, então o horizonte de toda a vida que antes viveu me parece haver sido bem pobre. Não acredito que um homem enriquecido pela imaginação literária, ampliado na sua percepção do mundo através de símbolos impressos, também audiovisuais, envelheça de forma tão passivamente triste. Um homem nutrido por fontes de vida moventes para além do trabalho que o confina, notadamente se não é um trabalho sem variação, apenas tolerado como fonte necessária de subsistência, jamais se esgota enquanto ser produtivo, como ser restrito ou condenado ao trabalho. É por isso que deploro essa massa sombria de seres produtivos gestada pelo trabalho alienante.
Antes, bem antes de ingressar no mercado de trabalho, meu vizinho foi mentalmente disciplinado pela ideologia burguesa para perder seus dias na poltrona onde melancolicamente compõe a paisagem de minha rua. Seu disciplinamento, sua rendição passiva às engrenagens dominantes neste mundo, articula-se lá longe, bem longe, ainda na primeira infância. É lá que lhe moldam a consciência para aprender que amar é dar e receber presente; que estudamos e lemos visando tão somente ideais de realização profissional e ascensão social; que a cultura intelectual importa apenas na medida em que serve a fins utilitários; que a arte, assim como o que entendemos como formação humanista, é puro passatempo, ou desperdício de desocupado. As forças onipresentes do mercado desde então atuam para reduzir seu valor a moeda e objeto de troca.
Admito estar traçando acima apenas uma imagem caricatural do capitalismo de consumo. Se esboço uma representação tão grosseira da nossa socialização pelas forças do mercado, faço-o tão-só para assinalar o roteiro insensível traçado entre a inserção da maioria no mundo e esse desfecho melancólico do aposentado atado à poltrona diante da televisão. Como as forças do mercado afortunadamente não funcionam regidas por nenhuma fatalidade determinista, há sempre uma minoria indisciplinável blefando contra as normas do jogo. Em algum ponto imprevisível do percurso essa minoria começa a emitir tons dissonantes, podendo até cantar fora do tom. Contra as pressões do interesse pragmático, traduzível em moeda corrente e ganância cumulativa, ela escolhe, por exemplo, seguir o rastro iluminado e iluminador da poesia. Às vezes um vago sopro na tarde, outras um tom azul entre as nuvens, a poesia assim se revela e nela, na sua obscura corrente, a minoria se salva. Então aprende que não precisa vender sua alma no mercado para sobreviver dentro da ordem imperativa da necessidade, muito menos vender-se para desfrutar dos privilégios assegurados pelos administradores do poder.
Portanto, são muitos os caminhos da dissonância, do canto fora do tom, do desvio que nos aparta do rebanho disciplinado. O caminho pode ser estético, religioso, político ou simplesmente humano, compreendido este termo no sentido da variedade infinita dos modos humanos de ser. O que sei é que os que o seguem não estão condenados a percorrer a estrada que vai dar no nada a que de minha varanda, a que de minha janela cotidianamente assisto. Ainda bem que nunca serei lido por Alberto Caeiro, pois bem posso imaginar o desprezo com que fecharia minha janela ou dinamitaria minha varanda farto diante de minhas suposições delirantes. Para Caeiro, reduzido ao horizonte da pura realidade sensível, tudo que há é o homem solitário na sua poltrona diante da televisão. Pobre de quem apreendesse no mundo tão somente o que é sensivelmente apreensível. Mas essa é uma ordem de pobreza apenas atribuível a Alberto Caeiro, variação heteronímica de Fernando Pessoa. Se não existisse a imaginação poética deste, sequer existiria um nome que atendesse por Alberto Caeiro.

10 de setembro de 2008.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Carnaval e Piano


Como tantas coisas boas da vida, O Piano foi fruto de uma sucessão de acasos encenados em sucessivos carnavais. O primeiro reuniu-me a Flávio Brayner e Sérgio Gusmão na esquina do Café Cordel. Já não lembro o ano exato. Foi aí por volta do ano 2000. Fiquemos com a data redonda, tão marcante como símbolo de século e milênio. Sérgio, que era já amigo de Brayner, chegou carregando uma porção de instrumentos de percussão atados à volta de sua figura corpulenta: pandeiros, zabumba, chocalho, tamborim... Feitas as apresentações, queixamo-nos do ar meio parado do carnaval naquele momento. Seriam seis ou sete da noite. De repente, começou a cair uma chuvinha fina, chuva inglesa, dessas que não chovem mas molham e persistem. Então, por mero acaso, comecei a cantar Chove Chuva, de Jorge Ben. Sérgio foi desafivelando os instrumentos, que começou a percutir, e pouco a pouco foi juntando gente. Foi nessa noite acidental que tudo começou.
Lá pelas tantas tínhamos já sustentado uma folia entusiasta e quente à frente do Café Cordel cheio de cadeiras espalhadas pela calçada. Fizemos ali um grande e espontâneo carnaval. Sérgio era o coração e a força agregadora daquela linda festa. Como há muito vive como profissional da música, conhece uma infinidade de gente que faz o carnaval, sobretudo tocando no carnaval. Essa gente passava pela rua e logo, atraída por Sérgio, entrava na folia e com seus instrumentos imprimia energia, beleza e variedade à festa. Num certo momento, como um sopro de transfiguração mágica do carnaval, formamos espontaneamente uma imensa roda de ciranda. Enquanto Sérgio e eu, no centro da roda, (ele na percussão e eu cantando Cirandeiro, de Edu Lobo e Capinam) puxávamos a ciranda, logo seguida de outros ritmos, uma multidão linda e festiva movia-se como uma onda azul espraiando-se na noite.
Nesse momento, Flávio Brayner ocupou papel secundário. Afinal, não havia piano, seu centro e força de irradiação festiva. A ideia da folia incluindo o piano, que por fim batizou o bloco, veio alguns anos mais tarde no carnaval de Casa Forte. Pouco sei dessa parte da história, pois dela não participei. Sei apenas que a ideia e o comando do processo veio de ambos, Brayner e Sérgio. Quando voltei a agregar-me ao grupo, já sob a batuta do piano, foi novamente no carnaval do Recife.
O Piano tem hino – ou bossa-frevo, se assim posso dizer – e um belo estandarte. Este é obra da pintora Teresa Costa Rego. O hino é de autoria de Flávio Brayner, Janete e Sérgio Gusmão. Também eu, logo ao fim do carnaval do ano passado, compus um frevo em louvor do Piano. Chama-se Frevo do Piano. Pensava ensaiá-lo neste ano com Flávio e Sérgio para em seguida incluí-lo no nosso repertório. A doença, no entanto, privou-me de mais um carnaval, talvez o último. Digo último por viver, talvez solitariamente, uma insatisfação crescente com o fato de concentrarmos nosso carnaval na Rua da Guia. Não bastasse tanto, nossa sede ou salão improvisado é o Restaurante Panquecas, em tudo inconveniente para uma festa como a nossa. É uma casa que se alonga do fundo à fachada como um corredor quente e sem janelas, além das instalações precárias. Não bastasse tanto, a Rua da Guia está no foco de um carnaval cada vez mais ruidoso, cada vez mais incompatível com o Piano que, perdoem a presunção, procura realizar um carnaval de inspiração democrática no sentido festivamente mais alto do termo. Em meio a tanto excesso e ruído, com lances de barbárie respingando os acordes refinados do nosso som, é cada vez mais difícil cantar Tom Jobim, Chico Buarque, Antonio Maria, os grandes frevos e marchas tradicionais em meio a tanta pancadaria.
Acho que o Piano pode sem presunção orgulhar-se de fazer um carnaval que mescla democraticamente o melhor da nossa rica diversidade musical. Outra expressão notável do seu espírito democrático consiste no fato de que nossos microfones estiveram sempre abertos à participação dos que livremente entram na nossa festa. Essa licença democrática é marca tão patente do Piano que já por várias vezes nosso maestro, Flávio Brayner, irritou-se, com razão, diante dos excessos de bêbados desafinados que acabam entrando na festa e no coro para bagunçar nosso carnaval.
Esta crônica, alinhavada na manhã da quarta-feira de cinzas, vale um pouco como compensação para minha grande frustração decorrente da impossibilidade de mais uma vez, mais um carnaval, cantar e suar e abraçar feliz os muitos amigos que anualmente encontro no Piano: Bella, Gio, Neide, Janete, Nara, Ana Dubeux e Cyril, Erlyck e Lucila, Geneide e Priscila, Karina, Eliane, Conceição, Dora, André e Deborah, Dirceu, Celso, Alexandrina e Jorge Jatobá, Eliene e Sílvia Gusmão, Sílvia e Yoni, Vera e Ana, Mané e Elbe, Maria, Luiza e Lais, Lucivânio, Pedro Gabriel, Clarissa, Márcio, Stella Abranches, Stella Maris, Fernanda, Teresa Costa Rego e Teresa... quantos mais, meu Deus? Desculpem a lista tão parcial e até o próximo carnaval, ou até o Juízo Final.
Quarta-feira de Cinzas do carnaval de 2010.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Amor e queijo suíço


Severo Machado

Os dois ou três leitores que acaso leram minhas crônicas talvez identifiquem contradições grosseiras nesta que aqui vai. Aliás, não sei se a designe como crônica ou conto. Faz anos que discuto com amigos chegados à literatura a distinção entre uma e outro sem que cheguemos a um acordo. Por isso, visando encurtar a intriga, passei a repisar este juízo de Mário de Andrade: conto é o que o autor diz que é conto. Sendo assim, democraticamente estendo o critério libertino ao próprio leitor: conto ou crônica é o que o leitor diz que é conto ou crônica. Sei que uma solução arbitrária como esta irrita os acadêmicos, que de resto ficam sem ter o que fazer. O que seria do ganha-pão deles sem essas bizantinices?

Prometo não ir longe na consideração das contradições grosseiras que o leitor pode identificar entre esta crônica e outras postadas no blog de Fernando da Mota Lima, que me tolera apenas por falta de melhor companhia. A recíproca é verdadeira e assim vou em frente. Fico na consideração de uma única contradição. O leitor notará que desta vez o tema da crônica não são minhas aventuras eróticas costumeiras. O blogueiro que me acolhe diz que sou cínico e cruel. Ora, precisamos afinal ser alguma coisa na vida, é o que respondo e ele engole rindo. Apesar das evidências em contrário, sou como todo mundo. Quero dizer, também visito amigos, até inimigos suportáveis, e muitos são casados, uns raros bem casados. Isso prova que, apesar dos meus inimigos, sobretudo dos amigos, nunca pratiquei o celibato militante e promíscuo. Pratico apenas o celibato promíscuo. E com tanta honestidade que repito Misael, o misógino, sem língua entre as pernas: troco de mulher como troco de roupa. Portanto, não tenho culpa se as enganadas lavam roupa suja na lavanderia errada.

Como bom brasileiro, passo ao assunto da crônica reiterando um dos bordões da nossa inconsciência nacional: não tenho preconceito. Sou mulherengo, cínico, misógino, racista, autoritário, faço o que não digo e desfaço o que não faço, mas juro de pés juntos: não tenho preconceito. Chega de autoelogio. Passemos à crônica.

Confesso que nunca entendi o amor tenaz e inabalável que Natália nutre por Leôncio e Marcela por Cristóvão. Mais que isso, que incapacidade de explicá-lo, tinha ressentimento desse amor. Como sou humano com um travo de mesquinharia na minha humanidade, ficava ressentido por não ser afortunado como eles. Eis que um dia, às vésperas do Natal, em pleno clima de festa e consumo natalino, estávamos reunidos num jantar animado na época em que Marcela e Cristóvão moravam numa casa da Rua Real da Torre cuja varanda ouviu muita gargalhada de amizade e prazer.

Alguém falou em queijo suíço, que em tempos de hiperinflação era um luxo, e então brinquei dizendo algo do tipo: sempre desconfiei de que havia um vínculo secreto entre Cristóvão e a Suíça. Foi aí que surpreendi um brilho estranho, diria sutilmente monetário, nos olhos sempre puros e delicados de Marcela. Perturbada por meu olhar, que por uns vagos segundos ficou cego diante daquele brilho intenso e fugaz, Marcela prontamente disse: “Você é um fantasioso. Imagine Cristóvão com conta secreta em banco suíço... Além disso, se um dia tiver a infelicidade de ficar viúva, serei viúva pobre, rica apenas de amor”.

De repente, tudo miraculosamente se esclareceu e assim sosseguei meu ressentimento diante desse amor que tanto invejava, ao ponto de me inspirar insone ressentimento. Só os infelizes no amor, aqueles que convertem essa infelicidade em solidão ressentida, somente eles podem avaliar a dor que nos causa a felicidade alheia, ainda que seja a dos amigos. Para mim, tudo ficou explicado e desde então dormi em paz diante desse amor tão belo e constante que tem atravessado nossa longa vida. A partir de então, suportava à vontade seus estados de felicidade espontânea em contraste com minha solidão contraída. Bastava-me dizer para meus botões, embora não costume usá-los: Isso não passa de felicidade conjugal com depósito bancário na Suíça.

Sucedeu que ontem almocei com Leôncio e Natália. Não foi tudo perfeito (nada afinal é perfeito, como dizemos invocando chuva no aguaceiro) porque Leôncio teve a infeliz ideia de convidar Lúcio Siqueira. Além de péssima companhia, Lúcio me obrigou a lhe dar carona, o que significa dizer que tive de suportá-lo sóbrio na ida e bêbado na volta. Como não dou uma pela outra – isto é, a sobriedade pela embriaguês, no caso dele – tive vontade de largá-lo no alto do viaduto Joana Bezerra.

Mas volto ao fio da meada. O almoço não foi perfeito porque havia Lúcio e porque faltava queijo suíço. Não sei por que, a meio daquela reunião divertida, avivada pelos vinhos e pratos deliciosos que Natália nos servia, tive de repente uma insofreável saudade de queijo suíço. Deixei então que me escapasse essa impropriedade: Só não está perfeito porque falta queijo suíço. E até emendei: estamos por acaso em tempos de hiperinflação?

Ao me voltar para Natália, por um instante paralisada, notei no seu olhar o mesmo brilho estranho, a mesma profundidade insondável que muitos anos antes lera no olhar de Marcela. Como que por um milagre somente concebível em divã de psicanalista (não de um qualquer, mas o de Freud), ouvi Natália repetir as mesmas palavras que anos antes ouvira dos lábios de Marcela: “Você é um fantasioso. Imagine Leôncio com conta secreta em banco suíço... Além disso, se um dia tiver a infelicidade de ficar viúva, serei viúva pobre, rica apenas de amor”.

Por pouco não saltei de desafogo e vingança. Foi como se me tirassem das costas e do coração travado um grande peso, um peso de ressentimento que não se pesa em balança de bodega. Então estava tudo explicado: esse amor que tanto invejo, que tanto me separou desses dois afortunados, Leôncio e Cristóvão, esse amor não passa de uma tenaz ilusão de viúva pobre. Elas pensam que ambos têm fortunas fechadas a sete chaves num inviolável banco suíço. Como se ambos, coitados, fossem irmãos eleitos de Maluf. Ainda bem que ambos são imortais, elas também, pois do contrário não herdariam nem queijo suíço. Razão tinha certo amigo meu que costumava dizer: amor é coisa de louco. Sendo de mulher, é loucura tresloucada.
Recife, 9 de dezembro de 2012.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Elogio da mediocridade


Sou um tipo de qualidades extraordinariamente medíocres. Nasci medianamente num meio-dia meio sol e meio chuva de um meio de ano perdido bem no meio do século. Filho mediano entre quatro irmãos, logo me fiz notar por traços mediocremente tímidos numa infância medianamente intimidada. Jogando futebol no meio do campo, não foi difícil tornar-me titular de um time mediocremente classificado, aquele tipo de time que, se nunca ganha um título, também com certeza jamais é rebaixado à humilhante posição de lanterninha.
Ocupando sempre um ponto médio entre a tela e o fundo do cinema, entreguei-me aos filmes e estrelas de Hollywood com uma paixão medianamente controlada. Minhas musas eram, claro, mulheres medianas na estatura e no talento, na beleza e no ardor com que beijavam em cena. Tanto é isso verdade que, sem subirem ou descerem na apreciação do gosto público, hoje estão completamente esquecidas. Em mim próprio, embora medicremente fiel, confesso que se tornaram imagens mais ou menos apagadas.
Mediocremente casto, perdi a virgindade muito cedo, mas em compensação curti na adolescência os rigores repressivos de uma época em que menina de família era forçada a casar virgem. Portanto, paquera e namoro, por mais longe que fossem, raramente iam à via dos fatos tão febrilmente desejados. Minha mediocridade lírica, teimosa de transfigurar até a humanidade das putas, salvou-me da corrupção que foi e é timbre do machismo que se espoja nos puteiros e antros similares. Mais tarde, é verdade, caí na esbórnia desatada pela revolução dos costumes. Sempre equidistante dos extremos, como bom medíocre, saltei a tempo da canoa furada quando tive a graça de encontrar um grande amor. Por que não dizer o grande amor?
Em tudo mais tenho sido de extraordinária constância no exercício de minha mediocridade. Leitor mediocremente aplicado, leio sempre à meia-noite nos dias em que me ocupo a meio do dia. Professor mediocremente considerado, dou de mim o melhor, minha medíocre pedagogia, visando desencorajar os alunos irrecuperáveis enquanto de outro lado procuro estimular os raros excepcionais.
Aludindo ainda à minha medíocre condição de leitor, encontrei uma solução inventiva para o exercício da leitura fiel a meu princípio vicioso da mediocridade. Já que a leitura integral de uma obra é incompatível com o meu princípio, aprendi a ler os livros pela metade: leio primeiramente as páginas ímpares, por fidelidade à minha formação de esquerda, em seguida as pares. Por fim, cuido de fundir umas nas outras e disso resulta uma obra absolutamente irreconhecível, além de mediocremente original.
Mulheres passionais queixam-se da minha brandura amorosa sempre a um calibrado meio termo entre a paixão e a amizade. Profissional discreto, mediocremente equilibrado entre o fracasso e a ambição do sucesso, chego à meia idade meio em desconforto entre a metade de mim já trabalhada e a outra moderadamente sonhando com uma aposentadoria por tempo integralmente dedicado a tarefas medíocres.
Num mundo hoje regido pela busca do sucesso a qualquer preço, da fama a qualquer custo, da celebridade a qualquer virtude ou vilania, o medíocre é o primeiro a se depreciar, já que se sofre como se fosse e não fosse, além de estar apenas um degrau acima do anonimato. Quem se contentaria em ser anônimo na sociedade do espetáculo? Quem se reconciliaria com a própria mediocridade num mundo feito de passarelas, palcos, vitrines e pódios onde todos aspiram a subir não importando como? Quem acaso louvaria a moderação num mundo de excessos?
Pois acreditem que não me descontenta a sombra obscura que me acolhe e protege do sol. Prezo a sombra da árvore mirrada que plantei entre os refletores e a escuridão aterrorizante do anonimato. Daqui, sem fazer maior esforço, contemplo o grande e vazio espetáculo do mundo embalado pelo balanço da rede que entedia os enérgicos e ambiciosos, castiga os astros desprovidos de luz própria ou alheia, deixa sonolentos os preguiçosos sem ideal e músculo.
Daqui aprecio, não raro aos risos, a corrida insensata que tantos correm sem saber por que ou para onde. Correm porque, se por um instante pararem, mergulharão no vazio e na depressão. Correm simplesmente porque têm pernas e nunca lhes ocorre perguntar para que servem. Embriagam-se com a ação pura, pois temem a atividade iluminadora do pensamento que corre prescindindo de pernas, atravessa mares e horizontes a galope da imaginação criativa. É por isso que tudo faço, mediocremente ou não, sem sair da rede. Por isso amo minha rede nordestina ou grega ou russa como Oblomov amava viciosamente seu sofá. E se todas as corridas de São Silvestre não valerem meu obscuro reino, suspenso entre duas paredes?
Se a virtude de fato consiste no meio termo, como postulava Aristóteles, será então justo concluir que sou um medíocre extraordinariamente virtuoso. Mas convenhamos que o grande feito seria tornar-me meio vivo e meio morto, isto é, nem ir nem ficar, nem entrar na cova, nosso irrecorrível endereço último, nem ficar para sempre penando neste mundo cujas soluções são sempre extremas.

Recife, agosto de 1993 (revisto e ampliado em janeiro 2013).

domingo, 21 de outubro de 2012

A Culpa é dos Iluministas



Acho que tudo começou com aquele idiota chamado Kant. Sérgio Paulo Rouanet e vários professores da pós-graduação encheram minha cabeça com as ideias sedutoras de Kant e dos iluministas. Sapere aude: ousar saber. Pra mim saber é saber antes de tudo o meu corpo, a voz do meu corpo, o insone murmúrio do meu desejo. Foi assim que traduzi na minha vida o discurso iluminista e pós-iluminista da autonomia: ser livre para gozar o desejo latejante no meu corpo.

Minha mãe sempre exercendo a tirania doméstica dentro da família. Prematuramente envelhecida, dependente econômica e emocional do meu pai, vivia remoendo ressentimento contra tudo que não pôde viver. Um nada e lá estava ela repisando mágoas, cobrando dos filhos todos os sacrifícios sofridos durante a vida para nos gestar e criar. Meu pai, alto e belo, imenso na sua beleza, era meu ideal. Meu pai amava a vida, dela usufruindo tudo que eu queria e invejava: a farra com os amigos, o amor à música, que cantava com voz linda e sedutora. Fervi de ódio e ressentimento quando descobri que tinha uma outra família, com filhos ilegítimos da minha idade. Mas cedo o perdoei e continuei amando-o com um amor confuso, pois que contaminado por ressentimento e insofreáveis desejos de agressão.

Ainda adolescente, peguei a onda da liberação e caí na farra. Apesar dos privilégios de que sempre desfrutei na família, a começar pelos econômicos, trabalhei como garçonete num bar onde a garotada desatava os nós de todas as repressões purgadas por nossas mães. Não dava à mínima para o que me pagavam sugando minha mão de obra. Trabalhava somente pelo gosto da aventura, pelo prazer de estar dentro do agito nos fins de semana; trabalhava pelo prazer de provocar os garotos lindos com meu corpo moreno e sensual. Gostava quando um daqueles safados mais atrevidos se esfregava em mim depois de beber além da conveniência. Adorava o jogo que jogava seduzindo, provocando, mas sem dar, sem ir além do desejo provocado sem satisfação. Quero dizer, dei muito, mas só aos garotos que passei a namorar. Foram tantos, confesso, que logo perdi a conta.

Perdi a conta do que amei e dei por aí, errando nas noites de agito e droga. Mas sempre, em algum obscuro lugar, sempre me roía algo que era culpa ou insatisfação insaciável. Os garotos com quem transava logo me cansavam. Eram todos fúteis, todos idiotas, todos medindo num espelho invisível o próprio corpo, o amor vazio orientado para si próprio. Também eu me perdia nesses labirintos do desejo que me atava a mim própria. Mas havia algo além disso. Havia uma carência inapreensível de um grande amor, de um príncipe vindo de esferas insondáveis. Havia ainda medo e a recusa de repetir minha mãe, de acabar como ela: o corpo disforme, a ferocidade doméstica investida contra meu pai e contra os filhos.

Depois da graduação em jornalismo me mandei para São Paulo. Queria fazer pós, mas queria antes de tudo viver mais livremente, viver toda a liberdade a que tenho direito. Era à noite, no anonimato da grande noite paulistana, que o mundo misteriosamente se abria como um mar de possibilidades estonteantes. Eu tudo queria e a quase tudo me entregava. Às vezes, nas manhãs de ressaca, boiando confusa na maré da ressaca, sentia a dor de um vazio tão doloroso, mas tão doloroso, que eu me fechava na solidão do quarto para nem sequer ver as duas meninas com quem dividia apartamento. A sombra opressiva de minha mãe, esbravejando ressentimento e culpa na minha memória insone, servia apenas para empurrar-me mais e mais para a vida de dissipação que verti nas noites de São Paulo.

A meio da pós-graduação casei com Renato. Fui tola ao ponto de pensar que encontrara enfim meu príncipe encantado, aquela figura embaçada e linda, envolvente e dominadora que flutuava nos campos azuis de minhas fantasias consoladoras. Vieram os filhos, um casal, e logo mais tarde a separação. Depois que concluí a pós precisei trabalhar e então dobrei a jornada de trabalho. A partir daí o tempo encurtou, a liberdade infrene também, e logo me vi estressada e retalhada entre os filhos, o desejo de um homem para repartir as tarefas e o peso da família dissolvida entre tantas demandas desencontradas. A renda era polpuda, mas nunca suficiente para nossa sede de consumo, meu e dos filhos já crescendo para cair na vida como antes caí.

Lá dentro, no mais fundo de mim, o que me atormentava e perseguia já não era a figura tirânica de minha mãe envelhecida e frustrada; também não era o amor confuso e conflituoso que devotava ainda a meu pai, presença cada vez mais remota na minha vida. O que no mais fundo de mim me tiranizava era o espelho. Via-o até quando dele me ausentava. Aliás, logo descobri que se enraizara em mim, que me espelhava e sufocava até no escuro do quarto, deserto de companhia e amor. Não bastasse tanto, minha luta contra a balança tornou-se cada vez mais feroz. Por mais que lutasse, era sempre eu quem perdia. Daí para a academia de musculação o salto foi apenas uma passada. Caí de chofre diante daquele labirinto de espelhos refletindo gente ansiosa e atormentada à procura da medida ideal, da beleza ideal, do Narciso ideal absorto no espelho ideal das águas desenhando na superfície imóvel a beleza irretocável. Mas o que a realidade impiedosa refletia em todos os espelhos era meu corpo se avolumando, as formas dissolvendo-se em gordura inspirando-me um ódio irrefreável contra mim própria. De repente, dei-me conta de que os homens já não me olhavam como antes. Aliás, muitos passaram a me ignorar. Falavam comigo e me olhavam como se olhassem uma parede desbotada, uma porta debruçada sobre o abismo da minha insignificância.

Agora, no meio da madrugada insone, pulo da cama assaltada pela voz difusa de Kant, a voz gaga e gagá dos iluministas que encheram minha cabeça e me consumiram muitas horas de leitura durante meus anos de graduação e pós. Sapere aude: ousar saber. Que merda! Acendo a luz e ando pela casa inquieta. Será que os meninos já voltaram da balada? Encontro apenas o apartamento vazio, as camas e quartos desertos. Meu Deus, e se acontecer alguma coisa: algum crime, algum assalto... se andarem metidos com a turma da droga pesada? Ah, o sonho da autonomia feminina! Que merda! A culpa é daqueles putos do Iluminismo. Quem tem razão é Sandrinha, que renunciou à sua autonomia depois de atravessar os desertos que me assolam e se refugiou na fantasia do patriarcalismo do século xix. Agora Sandrinha se olha no espelho e vê apenas uma respeitável matrona regendo escravos na casa-grande onde sua vontade é lei. Queria ser Robespierre para guilhotinar todos os iluministas...

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Memórias Musicais II


Apaixonado pela música, como anotei na primeira parte desta crônica, logo criei o hábito de copiar num caderno todas as letras cantadas por Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Anísio Silva, Ângela Maria, Orlando Dias, Caubi Peixoto e muitos outros. O desejo de cantar e aprender novas canções era tão grande que passei a esconder-me nos fundos da loja da minha tia, onde ficavam as instalações do serviço de alto-falante e a discoteca, e lá me perdia durante horas copiando as letras e cantando-as. As noites de lua cheia eram de uma beleza indescritível. Naquela vila remota, sitiada pelo canavial e privada de luzes artificiais, a lua derramava sua luz esplêndida sobre toda a paisagem apreensível pelo meu olhar maravilhado. Uma estranha comoção lírica me tomava quando erguia o olhar para a lua e em seguida girava-o sobre a paisagem recoberta por casas, canaviais, o rio, as pedras, o lajedo iluminado às margens do Pirangi. Então deitava-me sobre os lajedos, com os olhos extáticos presos à luz da lua e cantava as canções mais românticas e dolentes que sabia. Mais que isso, cantava imitando a voz do intérprete. Eram momentos de solidão epifânica vividos sem que eu soubesse o que era a epifania produzida pela arte.

Que me lembre, a solidão harmoniosa, elo inefável de comunhão entre mim e o ambiente deserto, esse acordo sutil entre mim e minha subjetividade, esteve na origem diretamente associado à música. Era a música cantada na solidão dos lajedos nas noites de lua cheia, assim como a Ave Maria ouvida com solenidade mística na hora do Angelus. Quando ouvia a Ave Maria de Bach e Gounod, introito místico de anunciação da noite, afundava num estado de melancolia serenamente recoberto pela beleza misteriosa da música. Esse momento se tornou tão precioso e comovente na minha infância que a ele me afeiçoei convertendo-o em hábito pontual. Mal escurecia, mal pressentia a hora do Angelus anunciada numa voz de soprano cantando a Ave Maria, e logo quietamente me recolhia aos degraus da calçada e ali me sentava contrito, rendido à beleza mística da música.

Nelson Gonçalves era o melhor cantor do mundo. Acreditava nisso como acredito na luz do sol e por isso aprendi todas as músicas que cantava imitando-o com a servilidade inconsciente de um papagaio. Na minha idolatria ingênua, chegava a me dizer que nunca existiria no mundo cantor igual. Enquanto menino e adolescente, essa atitude se renovou no culto de outros artistas da música, do cinema, também de jogadores de futebol. Chegou porém o dia, não me lembro precisamente quando, em que me libertei dessa idolatria cujas raízes são nitidamente eróticas, além de idealmente projetarem no objeto de culto tudo que não somos ou gostaríamos de ser. Chegou o dia em que, sem explicação precisa, libertei-me de todo esse culto que é parte de qualquer sociedade ou tribo, mas que a sociedade do espetáculo elevou a dimensões sem precedente. Hoje tenho a convicção de que a condição do homem subjetivamente livre é inconciliável com qualquer forma de culto subserviente orientada não importa para que objeto: um deus improvável, o artista mais sublime, o escritor mais extraordinário, o pensador mais profundo, o ídolo pop, o líder religioso ou político, o astro supremo da mídia... O homem livre jamais confunde a admiração, dedicada a quem dela é merecedora, com a idolatria.

Falando ainda dos ídolos musicais do mundo em que vivi, certamente chocaria o leitor saber que Luiz Gonzaga não fazia parte dos objetos de culto na minha infância e adolescência. O fato é ainda mais chocante se consideramos o lugar supremo que passou a ocupar em toda a cultura de massa nordestina e se a isso acrescentamos que sua música está enraizada nas tradições rurais brasileiras. O fato encerra significações sociológicas que merecem um breve registro. Antes de tudo, voltando às minhas memórias, Luiz Gonzaga era parte apenas do repertório obrigatório durante o ciclo das festas juninas. Aí ele imperava sem concorrente. Mas era só. Penso que um dos fatores de resistência à sua música derivava do preconceito de classe e região.

Talvez muita gente hoje esqueça que sua música passou a integrar o repertório e os padrões de gosto da classe média urbana graças ao movimento tropicalista. Foi o meu caso. Foi exatamente por força da influência do tropicalismo, que bravamente desafiou preconceitos e noções estabelecidas de qualidade estética, que comecei a ouvir a música de Luiz Gonzaga. Lembro precisamente que isso começou com as interpretações renovadoras de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa. É também verdade que a era dos festivais de música, dominados ideologicamente pelo nacionalismo musical que privilegiava fontes musicais rurais e notadamente nordestinas, valorizava indiretamente a música simbolizada na figura de Luiz Gonzaga. Digo indiretamente porque a música dos festivais, apesar das fontes e tradições que exprimia, era recriada por artistas de classe média urbana e universitária num momento em que a incipiente montagem do nosso sistema de cultura de massa era ainda dominada pelos valores da elite urbana.

Apreciando a questão da perspectiva do presente, é claro que a dominação dos valores da elite era superficial e apenas momentânea. Basta observar agora quais são os valores dominantes da cultura de massa, que forma de cultura de massa prevaleceu no Brasil. Apesar da extraordinária expansão do capitalismo, agora globalizado de forma irreversível, de décadas de urbanização, da universalização dos meios de comunição de massa, da educação de massa e da revolução tecnológica extensiva em graus variáveis a todas as esferas sociais, o baixo padrão dominante de cultura é patente. Diria mais. Diria, para quem não receia ser levianamente confundido com um elitista desprezível, que o padrão da nossa cultura de massa constitui uma ofensa ao receptor inteligente e cultivado. O que prevalece no sistema midiático, sobretudo na mídia aberta, na que expressa os valores da maioria e por isso dá as cartas dos níveis de audiência, é o que há de pior nos valores dos diferentes grupos e classes constituintes da sociedade global.

Retendo a argumentação no domínio desta crônica de memórias, nossa música de qualidade refugiou-se, dentro do processo de segmentação cultural imposto pelos interesses e a complexidade do sistema dominante, em nichos somente acessíveis a uma minoria bem formada e portanto autônoma o suficiente para mover-se por conta e escolha própria através dos labirintos da cultura midiática. A minoria de qualidade, com perdão do truísmo, já que maioria e qualidade são incompatíveis, sobrevive em nichos tão inacessíveis que é preciso um bom trabalho de garimpagem para chegar a essas pérolas. Como não sou navegador frequente da internet, sei de algumas e descobri outras graças a alguns amigos melhor informados, ou mais pacientes no exercício da garimpagem; de outras, através do acaso afortunado. Seria contudo insensato esperar que essas pérolas tivessem lugar na televisão e na rede de consumo de massa.

Reato o fio volúvel da minha memória, demasiado poroso às digressões e desvios tecidos por fios associativos insondáveis, apenas para arrematar a crônica. Contraí pneumonia num certo dia do segundo semestre de 1967. Prisioneiro do repouso forçado, vi-me de repente atado a uma cama na sala de visita da casa onde morava a minha família. Como esta era bem maior que a casa, nunca desfrutei do privilégio de ter meu próprio quarto, o quarto só meu pelo qual durante muitos anos ansiei. Portanto, não precisaria ser feminista para compreender muito bem o sentido da expressão “um quarto todo meu”, que com a devida variável subjetiva confere título a uma das obras mais celebradas de Virginia Woolf. Um acaso feliz prendeu-me à cama diante da televisão precisamente quando começou o terceiro festival da música popular brasileira produzido pela TV Record. Foi o mais importante da era dos festivais de música. Foi também o ponto de inflexão da minha conversão apaixonada à MPB.

Diante dos meus ouvidos e olhos deslumbrados, passei a conhecer verdadeiramente a música da melhor geração musical que já tivemos: Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Francis Hime, Dori Caymmi, Sidney Miller e outros um pouco mais velhos ou mais jovens. Devo todavia acrescentar que o fato verdadeiramente revolucionário na minha obscura trajetória de amante da música ocorreu um pouco mais tarde. Entusiasmado ao adentrar aquele mundo musical que me penetrava os ouvidos e a imaginação lírica, passei a conhecer tudo que podia dessa tradição que desembocou na geração acima, protagonista dos festivais de música. Foi assim que num certo dia ouvi “Chega de saudade” e senti o choque de saber que Tom Jobim e João Gilberto existiam. Depois disso, sem exagero, aposentei Nelson Gonçalves e quase toda a música que amava ouvir e cantar durante minha infância e adolescência.

E assim, repetindo Drummond, cansei-me de ser eterno e então me tornei moderno. Ninguém sabe bem o que é isso, muito menos eu, mas quem resiste à fluida sedução dessa palavra tão desejada e contestada que, a troco de tudo e de nada, foi reiteradamente invocada durante o século vinte? Tanto a invocaram e ainda o fazem que, na falta de alguma exatidão conceitual, passamos a recorrer aos prefixos pré e pós também a troco de tudo e de nada. E por aí vamos nos desentendendo. Não importa. Importa apenas afirmar que aprendi a ser musicalmente moderno com Tom Jobim e João Gilberto. Depois deles, atirei o repertório da Amplificadora Santo Antônio na lixeira da história, como prezavam desprezivelmente decretar certos marxistas detentores das leis implacáveis da deusa História.

O que a experiência me ensinou, se com ela aprendi alguma coisa, é que convém dar razão ao humor cético e corrosivo de Millôr Fernandes: a história é apenas uma istória. E a memória é uma recriação ficcional do memorialista, acrescento eu. Longe de mim sequer insinuar, ao compreender a memória nestes termos deliberadamente provocativos, que tudo que acabo de escrever é pura invenção da minha imaginação. A matéria bruta da crônica são fatos e experiências vividos e retidos na memória. O que intento traduzir, ao afirmar que a memória é uma recriação ficcional, é a natureza do processo de composição de qualquer texto biográfico, diria por extensão qualquer texto baseado na memória e nos múltiplos modos de documentação do passado. Esse processo é sempre uma recriação parcial. Além de ser uma faculdade de poderes falíveis, como tudo que é humano, a memória é refém de uma infinidade de armadilhas, muitas inconscientes, que sempre deformam o vivido. Fico todavia por aqui. Ir além disso seria vestir-me da presunção de ser um teórico da história ou da psicologia.

Recife, 16 de agosto de 2012.

sábado, 8 de setembro de 2012

Memórias Musicais I


Who hears music, feels his solitude
Peopled at once.
Browning.

A música é talvez o mais poderoso catalisador da memória. À parte sua beleza intrínseca, ela converte o momento em duração enraizada na memória. Dado o fato de que povoa, como foco ou fundo, grande parte do que vivemos, impregna não raro de forma inconsciente fração significativa da nossa vida. O avanço extraordinário da tecnologia que a registra, difunde e amplifica concorreu, em escala sem precedente, para fazer com que penetrasse de múltiplas formas o cotidiano que vivemos. Afinal, agora ela está em tudo, sobretudo numa cultura privada de regulação, como é o caso do Brasil e notadamente do Nordeste. Isso a torna hoje, para gente do meu tipo, antes de tudo indesejável e até irritante, pois o que passamos a ouvir, de ordinário contra nossa vontade, não passa de lixo ruidoso. A onipresença da música inclassificável, por ser boçal e ensurdecedora, suprimiu as condições ambientes indispensáveis à recepção e à interpretação da música que importa para a minha vida, pois esta é indissociável do silêncio e da solidão.

A música é a nota dominante da minha memória, pois o próprio amor, no que contém de mais belo e memorável, está com frequência associado à canção que ouvia enquanto dançava, ou na amada me perdia dentro da penumbra do quarto ou da sala, à explosão de gozo e momentâneo apagamento do ser, ou fusão mágica que se esgota na duração do instante. Está ainda associada ao trânsito lírico dentro da noite, quando Recife e outras cidades eram propícias à livre expansão do amor fora do círculo privado da casa e do motel. Aludo a um tempo, não muito distante, em que ainda não se cavara o fosso intransponível entre a rua e a casa, entre o território público e o privado. Está ainda associada às festas que variavam da euforia, da diluição ruidosa dentro do grupo, à meia-luz íntima dentro da qual os corpos se respiravam e se apertavam antecipando a penetração e o gozo indizíveis. A música, até quando harmônica e ritmicamente “fria”, é expressão suprema do princípio do prazer e das pulsões dionisíacas.

Agora, entretanto, recuo no tempo, pois escrevo apenas uma crônica de memórias centradas na música, no lugar que ela ocupou na minha vida desde a infância. Os anos mais significativos da minha infância vivi-os na vila de Igarapeba. Um dia escrevi uma crônica sobre uma dessas enchentes previsíveis que devastam cidades e vilas do Brasil. Como Igarapeba, apesar de sua obscuridade, é também vítima dessas catástrofes que não queremos prevenir, dela fiz o objeto da minha crônica, antes de tudo uma crítica de fundo sociológico às nossas misérias seculares. Mas incorri na ofensa de qualificá-la como Sibéria tropical e outras analogias metaforicamente justificáveis. Não obstante minha consciência do quanto somos governados por paixões etnocêntricas, cuja estupidez não resiste a um parágrafo de apreciação racional, perturbaram-me as pedras e o orgulho ferido dos igarapebenses caindo sobre meu telhado de vidro.
Encurtando o enredo (que está documentado na crônica e devidos comentários postados no meu próprio blog e sobretudo no blog Amálgama), eis um conselho que dou de graça ao leitor avesso a brigas inúteis e insolúveis: nunca se atreva a criticar sua terra de origem. O orgulho ferido dos conterrâneos, não importando o quanto haja de verdade na sua crítica, jamais o perdoará. Em suma, a razão e o etnocentrismo tacanho nunca se entendem.

Pessoas que vivem infelizes dentro da atmosfera poluída, violenta e ruidosa das grandes cidades tendem compreensivelmente a idealizar a vida dos vilarejos e cidades pequenas. É um fenômeno tão compreensível e universal que se espelha tanto nas memórias nostálgicas das pessoas comuns quanto na mais alta tradição teórica apreensível no estudo da sociologia, da antropologia e da psicologia social. O exemplo mais célebre consiste na tipologia de farta e longa recepção crítica proposta por Ferdinand Tönnies: gemeinschaft e gesellschaft, isto é, comunidade e sociedade. O primeiro tipo, a comunidade, caracteriza-se pelas relações homogêneas amplamente baseadas nos vínculos de parentesco e em formas orgânicas de convívio entretidas por uma população restrita. Essa população confunde-se praticamente com os elos da vizinhança dentro de um mundinho onde todos se conhecem. O segundo tipo, em oposição, é regido pela divisão do trabalho, o individualismo, a competitividade, as relações impessoais e abstratas, em suma, por processos sociais geradores de solidão e isolamento, perda de vínculo significativo com o semelhante e outras consequências indesejáveis.

Embora não negue o fundo de verdade inequívoco contido na tipologia acima sumariamente descrita, vivi nos dois mundos e não tenho dúvida de que, apesar de tudo, prefiro de longe o mundo da cidade, a sociedade com tudo que contém de bom e de ruim. O ideal, claro, seria fundir o melhor dos dois tipos num tipo único de sociedade. Aderir a essa fantasia é renunciar à compreensão realista da sociedade, ou wishful thinking, como dizem em inglês. Comigo não, violão. Confesso odiar a cidade em que vivo, entregue a uma classe dirigente estúpida e corrupta que a empurra a passos acelerados para um inferno urbano nitidamente visível. Daí à regressão para uma comunidade idílica e fantasiosa... bem, a passada é grande demais para as pernas curtas das minhas fugas insensatas.

Vivi numa vila o suficiente para saber o quanto doem e frustram as rotinas rangendo ao longo do dia previsível na sua miudeza, na pobreza e miséria irreparáveis, no tédio abafante do dia sob o sol e da noite imersa em trevas. Que há de tão desejável num mundo de horizontes literalmente apertados, de vidas sem perspectivas diluindo-se na fofoca, na polícia que cada vizinho exerce sobre o outro, numa prisão comunitária cuja eficiência e olho inescapável tornam a instituição policial prescindível? Que há de tão desejável num mundo onde a tradição e o costume anulam qualquer veleidade de liberdade individual? Isso é tão verdadeiro que todos que migram para a cidade grande nunca mais voltam, embora zelosamente desatem o fio fantasioso da nostalgia quando o presente se torna irrespirável ou mesmo banalmente infeliz. Comigo não, violão. Logo, o olho do leitor é torto se o leva a confundir esta crônica de memórias com nostalgia, história social em registro memorialístico com regressão lírica ao passado.

A música – ainda que barata, como a qualifica Drummond num poema – foi desde cedo uma clareira aberta dentro do mundo opressivo em que cresci. Quis um feliz acaso que minha tia Vitória, comerciante viúva estabelecida na rua principal da vila, fosse proprietária do serviço de alto-falante, único meio público de difusão musical que animava nossas pobres noites sem variação. Nesse tempo não havia ainda luz elétrica, somente instalada em meados dos anos 1960. Havia apenas um motor gerador de luz fornecida entre as 18 e as 21h. Como a geringonça com frequência quebrava, Lula Pesseta, o mágico da luz, acorria às carreiras para consertar a máquina e repor a luz na vila que ruidosamente acolhia a repetição do milagre.

Desde menino fui tocado pela magia da música. A memória mais remota que a ela me prende está associada à morte do meu tio Edmundo. Vivia ainda em São Benedito do Sul, onde nasci. Fui levado pela família para assistir às cerimônias do enterro. Teria uns 4 ou 5 anos quando isso aconteceu. Enquanto na sala minha tia chorava descontrolada, em franco estado de histeria, eu brincava no jardim indiferente à morte e à dor que ela desencadeava no mundo dos adultos. Brincava no jardim quase frontal à casa onde pouco mais tarde passaria a viver, quando meu pai trocou sua vida de comerciante na cidade pelo cultivo da cana de açúcar numa propriedade que se estendia até às bordas da vila. De repente ouvi, no outro lado do muro, o canto da empregada que varria a sala com a porta aberta: “Lá de trás da minha casa tem um pé de ... Você vai? Você quer?” Há uma palavra apagada pela memória, como o indica a reticência, mas lembro ainda a música. Logo que a ouvi, prontamente me intrometi na cantoria escondendo-me atrás do muro e respondendo ao refrão da música: “Você vai? Vou; você quer? Quero”. A cantora gostou da minha intromissão e assim fomos adiante brincando com a letra da música. Essa anedota diz muito não apenas do meu amor precoce pela música, mas também da inconsciência da criança em face da morte e da dor que ela provoca nos que perdem seus entes amados.

Como observei, as noites, entre as 18 e às 21h, eram povoadas pela música emitida pelo alto-falante instalado no teto da casa comercial da minha tia. O locutor era Anibal Pontual, um pobre alcoólatra que se distinguia pela beleza do seu timbre de voz. Era assim que saudava a vila todas as noites: “Boa noite. Você está ouvindo a Amplificadora Santo Antônio, na frequência de 35 watts para um setor”. Mais tarde meu primo Mário Celso passou a dividir o serviço de locução e programação musical com ele. Como era proprietário, filho primogênito da minha tia, minha memória desconfia de que se sobrepôs ao locutor oficial. Mas convém não confiar muito na minha memória.
Nota: Como minhas memórias musicais são longas, em contraposição à paciência e o tempo do leitor, que são curtos, pareceu-me melhor dividi-las em duas partes. A próxima daqui a três dias.
Recife, 16 de agosto de 2012.

sábado, 1 de setembro de 2012

Minha avó Hannah


A foto que ilustra esta crônica não é infelizmente a que a inspira. Procurei-a, a inspiradora, no Google e noutras fontes possíveis. Não a encontrei. Sendo assim, peço ao leitor benevolente um certo exercício de imaginação visual ao ler o que segue.
Um dia vi uma foto de Hannah Arendt. Lembro-me de que foi pouco depois de ler a tradução brasileira, Companhia das Letras, de Homens em tempos sombrios. Aliás, andei remexendo minhas prateleiras, agora bem encolhidas, pois me desfiz de muito que erradamente julguei não mais precisar, na esperança de encontrar nessa edição a foto que procuro, a inspiradora desta crônica. Não encontrei meu exemplar. Certamente dei-o a algum amigo. Resta-me o exemplar de uma edição em inglês, mas nesse não há sequer uma foto. Privado da foto que procuro, valho-me tão só da minha memória.

Recuando no tempo, foi ao ver a foto de Hannah Arendt que me comovi prontamente, pois ela me fez evocar a imagem de minha avó Joaquina, a quem sempre chamei de vovó Quininha. Achei extraordinária, à altura da vida de ambas, a semelhança – semelhança estritamente física, acentuo. Em tudo mais que poderia considerar, tendo em mente o pouco que sei da vida e da obra de Hannah Arendt, associo mulheres de mundos e experiências totalmente diferentes. Mas espanta-me ainda a semelhança física que me leva sempre a associar a imagem de minha avó à de Hannah.

Sugiro ao leitor cultivado na obra de Hannah Arendt que largue a crônica por aqui, se acaso espera ler em qualquer sentido uma apreciação crítica da sua obra. Não é meu propósito. Esta crônica, deixo claro, não passa de um exercício arbitrário de memória inspirado por uma foto dessa extraordinária pensadora, tão independente e corajosa na defesa de suas convicções que induziu meu amigo Luciano Oliveira, estudioso de sua obra, a chamá-la de “velhinha irritante”. Antes que o confundam no sentido que imprime ao aposto com seu toque tão pessoal de humor, o tom e a intenção de Luciano é de admiração e afeto.

A foto de Hannah tocou-me de modo singular. Não apenas levou-me prontamente a evocar a imagem de minha própria avó, como já afirmei, mas me mordeu a consciência com um travo de culpa sem reparação. A imagem de minha avó que me veio à memória foi a da última vez em que a vi. Eu estava dentro de um ônibus cheio de passageiros trafegando na Rua Imperial, que foi cenário tortuoso da minha infância e adolescência. Ia na direção de Afogados quando, por alguma razão que me escapa, fiquei retido em meio ao trânsito paralisado, fenômeno então incomum. Daí dizer que a razão desse fato me escapa.

Coincidência ainda mais singular foi o fato de o ônibus parar bem próximo à casa onde minha avó vivia com meu tio Nelson. Depois que deixei minha família e passei a mudar de endereço como um judeu errante, minha avó foi viver nessa casa apenas compartilhada com meu tio Nelson. Como este vivia pelo mundo, rodando pelas estradas no exercício itinerante de sua profissão de caminhoneiro, ela ficou reduzida a uma solidão quase absoluta. Em pé no ônibus cheio de passageiros, vi-a no centro da porta de entrada, os cotovelos apoiados na parte inferior da porta que se dividia em duas partes. A parte superior estava logicamente aberta.

Lembro-me de que era tardinha, aí pelas cinco da tarde. Minha avó fitava a rua sem prender os olhos em nenhum objeto preciso. Seu olhar era portanto o olhar vago de quem olha para fora como se olhasse para dentro, ou simplesmente neutralizasse a visão dispersando-a numa sucessão de sensações móveis. Dentro do ônibus imobilizado no rio congelado do trânsito, esqueci-me de mim e de tudo que me rodeava enquanto concentrava minha visão em minha avó. Separava-nos a distância de uns cinquenta metros. A imagem que dela irradiava era a da velhice abandonada e solitária. Vendo-a paralisada na tarde, o olhar perdido no movimento da rua, senti uma dor imensa, um dó imenso da minha avó. Não bastasse a imagem para sempre pregada na minha memória, leio ainda naquele ser miúdo e solitário todo um longo e doloroso percurso de privação fechando o círculo estreito e opressivo de sua vida.

E assim salto da imagem para a memória distendida no tempo carente de reter na crônica os vincos dominantes da passagem de minha avó por este mundo. Ela pouco falava de si própria, das dores que acumulou ao longo de uma longa vida. O que sei de mais pessoal e doloroso é de certo modo parte da memória comum da família. O marido era um bruto, por um tudo, sobretudo por um nada, tratando os filhos a pancada, não raro impondo aos mais rebeldes, como minha mãe e meu tio Aloísio, surras impiedosas. Quando morreu, deixou a família praticamente desamparada: minha avó e cinco filhos. Foram salvos por meu pai que, depois de casar com minha mãe, abrigou a família inteira na sua casa de comerciante solteirão e abastado.

Na verdade, meu pai não casou com minha mãe, mas com a família dela. Minha avó continuou prisioneira da casa e da cozinha, espaço natural da mulher dentro da ordem patriarcal. Depois vieram os filhos das suas filhas, netos quase sempre entregues aos cuidados de minha avó. Quanto aos filhos dela, foram cuidar de suas vidas e ela ficou entre as famílias constituídas por minha mãe e minha tia Vitória. Encurtando o enredo, esse foi seu destino: cuidar até à velhice dos filhos das filhas, além do filho Nelson, homem de nervos abalados, miseravelmente escravo de uma avareza intransigente.

Prisioneira de uma vida tão áspera, marcada pela privação e a rudeza do trato, além da violência sem reserva do marido, não é de estranhar fosse minha avó uma mulher também áspera e pragmática. Via a realidade através do filtro estreito do grupo familiar, a vida regida por interesses materiais. Cuidava dos filhos, mais tarde dos netos, com um senso de dever impecável, mas nada punha de amor, de expressão afetuosa manifesta nesse trato com os parentes. Pelo contrário, vivia quase sempre resmungando pelos cantos da casa, sempre cuidando das tarefas repetitivas e repreendendo com severidade, embora não me lembre de vê-la uma única vez castigando fisicamente nenhum filho ou neto.

Um dia me dei conta de que aquela aspereza de trato, a função provedora isenta de afeto, neutra de amor e carícia, era apenas uma couraça defensiva, o meio que desde cedo precisou aprender para lidar com a brutalidade do mundo. Descobri um dia, noutras palavras, que minha avó era apenas um ser carente de amor, privado portanto de tudo que era incapaz de nos dar de forma manifesta em ato e palavra. Minha avó não me dava amor. Resmungava comigo como se eu fosse apenas um objeto de dever maternal devido à razão muito simples de que não sabia o que era dar e receber amor.

Menino carente de amor, privado de amor de mãe e de necessária regência paterna, comecei timidamente, em tom meio de brincadeira, a alisar os cabelos de minha avó, acercar-me dela e de repente tocá-la com uma carícia corrida, curta o suficiente para prevenir qualquer rejeição. Ela reagia crispada, resmungava um “vai pra lá” sem convicção, e assim fui lentamente dissolvendo-lhe a couraça. De tanto cercá-la com gestos cada vez mais ousados e firmes de afeto, acabei conquistando seu amor. Não que tenha passado a me tratar com carícia e afago, mas passou a aceitar sem reservas meus gestos de afeto. Foi assim que me tornei seu neto favorito.

Preocupada com meu futuro, passou a seguir-me com advertências pragmáticas ao me surpreender com frequência absorto na leitura de algum livro. É que certo dia, por um desses acasos felizes e simplesmente inexplicáveis, pus-me a remexer o topo da estante do meu tio Edmundo, já falecido, que ocupava lugar central dentro da sala de estar. Essa estante era uma figura ambígua, símbolo do lugar que a cultura letrada ocupava num mundo povoado pelo analfabetismo e as tarefas imediatamente orientadas para o duro exercício da sobrevivência. Num mundo tão primitivo, de cultura letrada tão raquítica, o livro e a estante ocupavam lugares desprezíveis e enigmáticos, objeto tanto de desprezo quanto de admiração. Daí a ambiguidade acima assinalada.
Meu tio Edmundo, leitor de jornal e gramática, de romances e outras matérias intrigantes, foi até colaborador ocasional do Jornal do Commércio, um dos dois principais periódicos de Pernambuco. Morto ainda relativamente jovem, deixou no mundo minha tia Vitória e seus quatro filhos. De quebra, essa estante de livros intocáveis dominando com silêncio inquietante para minha curiosidade de adolescente a sala de estar quase sempre deserta, pois há muito a família morava em Recife. E eis que chegou esse dia em que, mordido pela curiosidade, desandei a catar a chave da estante. Encontrei-a afinal, já recoberta pela ferrugem do esquecimento. Abri-a sem ainda saber que estava descortinando um mundo, o mundo que se sobreporia à minha paixão febril pelo futebol, às vagabundagens pelo desgoverno de Igarapeba com seus canaviais, sua gente pobre e rude, seus horizontes que, na minha imaginação, aquelas milhares de páginas já desbotadas pelo tempo ampliariam até os confins da Sibéria, guiado por Dostoiévski, até as múltiplas e míticas paisagens europeias traçadas pela pena de Alexandre Dumas, o pai e o filho, Walter Scott, Charles Dickens, Thomas Hardy, Eça de Queiroz e folhetinistas como Lorenzo Gualtieri, autor de Maria, a fada do bosque.

A descoberta desse mundo fabuloso da imaginação, até então silenciado e protegido pelo vidro e a poeira da estante do meu tio, foi sem exagero uma mudança radical na minha vida. Para começar, como já sugeri, afastei-me das vagabundagens da vila e até o futebol ficou um pouco encolhido dentro da fatias de tempo que dividiam as rotinas do meu dia. Os amigos, dando pela minha falta, surpreendendo-me encolhido na solidão dos livros, retido no silêncio da sala deserta, não entendiam o que se passava comigo. A oposição mais firme, embora recoberta de cuidados antevistos no futuro sombrio que me aguardava, procedia de minha avó. Temendo ver-me reduzido à solidão inútil de um leitor de livros mofados, avessos à ordem prática do mundo, minha avó continuamente se acercava de mim e me advertia: “Vai cuidar da vida, menino. Livro não dá dinheiro a ninguém. Por que não segue o exemplo de Antônio Costa? É um ativo, um sacudido, sempre ganhando dinheiro...”

Era assim que minha avó procurava salvar-me da inutilidade, da catástrofe que seria tornar-me mais um letrado desocupado no mundo regido pelo trabalho árduo e a necessidade vigilante. Não sabia ela, coitada, nem teria como, que aqueles livros obscuros e desprezados, mas também portadores de segredos invejados pelos iletrados, salvaram-me das rotinas tediosas da vila, descortinaram na minha imaginação e na minha inteligência relutante, mas carregada de interrogações, um rastro de luz e entendimento que passei a seguir diligentemente através de minha vida. O que de melhor fiz de mim, não tenho dúvida, teve início na solidão e no silêncio daquela sala de estar no dia em que abri a porta da estante com a chave enferrujada e um sopro de vento correu as páginas dos livros mofados contaminando-me para sempre.

Quem diria que meu errático percurso de leitor me transportaria da estante do meu tio às páginas da “velhinha irritante”? Mais improvável ainda pareceria essa semelhança física que surpreendi espelhada entre a foto de uma e a memória da outra. Para além da minha culpa, ainda latejante, por não ter naquela tarde distante descido do ônibus para espantar a solidão desamparada da minha avó, enredo-me em vagos e improváveis símbolos que me prendem à lenda do judeu errante ou à semelhança física entre uma judia, a mais extraordinária judia da cultura do século vinte, e minha pobre e obscura avó. Como não me decidi a descer do ônibus para ir ao encontro de minha avó, aquela foi a última imagem que dela retive. Logo mais tarde segui errando pela vida, enquanto ela foi viver em Salvador acolhida pelo amor do meu tio Aloísio.

E segui errando, errando através de cidades, estradas, ruas e endereços como um judeu errante. Errando nos bares, no trânsito promíscuo de corpos sem aderência, meros móveis de carne e prazer momentâneo. Errando através de pousos, refúgios, pensões e camas sempre moventes. Errando também através de livros, dos labirintos traçados pelo pensamento e a imaginação de escritores e artistas incontáveis. Esse é meu melhor e mais fiel modo de erro. Não daria completa razão à minha avó, quando me advertia vaticinando um futuro de fracasso para seu neto querido, porque, vindo de um mundo tão obscuro, tão crivado de erros e fracassos, chegar aonde cheguei é inegavelmente um triunfo. Portanto, o fantasma de Judas, o obscuro, o trágico e pungente personagem de Thomas Hardy que tão poderosamente vincou minha imaginação com linhas sombrias, não se converteu na realidade que poderia ter sido a minha vida. Mas acreditem que cheguei bem perto dele, do seu fracasso irreparável.

Voltando a Hannah e minha avó, presto minha humilde memória a esta ao lhe emprestar o nome de uma das mulheres mais admiráveis do século. Houvesse eu descoberto a judia, “a velhinha irritante” durante o tempo em que convivia ainda com minha avó, teria com certeza falado de uma à outra, teria sobretudo ressaltado a semelhança física que entre elas identifico. Receio porém que minha avozinha, prisioneira irredimível do seu orgulho obscuro, atado à medida crua da razão utilitária, confinaria sua curiosidade a uma pergunta curta e direta: “Quanto ela ganha pra escrever esses trastes?”
Recife, 14 de agosto de 2012.