quinta-feira, 11 de julho de 2013

... das pequenas coisas


Sempre quando se mudava. Absolutamente imprevisível nos seus modos de manifestação, a felicidade irrompia do cerne das pequenas coisas. O processo, de tão familiar, tornou-se previsível, imprevisível era a irradiação da felicidade. Já exausto e suado, depois de horas embalando livros, cds, dvds, tapes, minúsculos objetos paralisados no fundo de gavetas empoeiradas, súbito ela irrompia. Vinha de longe, submersa no mofo dos papéis guardados, no ranger secreto das pequenas coisas. Por exemplo assim: ele esvazia uma gaveta, já impaciente, quando o envelope cheio de fotografias escorrega de suas mãos. O choque da felicidade desata-se do íntimo de tais pequenas coisas: as imagens impressas sobre o papel, o sopro do passado vindo de longe, paralisando miraculosamente o fluxo do tempo durante alguns vagos minutos. Retendo as fotos entre os dedos, contempla maravilhado os movimentos da vida dissipada e perdida irradiando de mudas imagens: o carnaval de Olinda pulsando no fundo da cena em contraste com o sorriso sereno enquadrado no primeiro plano. Noutra foto, banhada pela primeira luz do dia, ela repousa quieta e reclusa sobre o chão da varanda. Pouco antes, fato ausente da foto, saíra da cama onde o suor, esperma, odores do amor consumado, respiravam ainda nas dobras dos lençóis revoltos.

A repetição desses milagres cotidianos, ou recriações epifânicas do tempo vivido e materialmente irreversível, se fez sempre inapartável dos processos de mudança. Por isso, na ânsia de reter e renovar tais milagres, tornou-se andarilho compulsivo. Odiava mudanças, sabia-se um sedentário insanável, mas rendeu-se dócil à tirania das peregrinações por bairros e condomínios da cidade. Era o único meio de repor no presente sombrio as iluminações definitivas enraizadas no amor ido e perdido. Os amigos, a tudo alheios, faziam piadas das quais ele próprio complacentemente ria. Diziam que era um judeu errante, que não pagava aluguel, que os vizinhos o desprezavam sempre tramando um jeito de o expelir do grupo ou comunidade.

Sua vida concentrou-se nesses dois modos exaustivos de ritual: fazer e desfazer malas, ordenar e desordenar ambientes domésticos. Num ou noutro, quando não em ambos, nos casos de mudança pontuados pela sorte, ela se desatava dos fundos de gaveta, das cartas atadas num longo cordão prateado, dos poemas que lhe escrevera, dos odores que a brisa noturna soprava pelos vãos da casa. Por exemplo assim: na madrugada, dentro do apartamento vazio, ele a fotografa no momento em que ela corria em sua direção. Noutro plano, este à luz do dia, posa de espadachim entre as filhas eufóricas. Eles entre festas, eles entre frestas, eles entre gente, mas sobretudo eles entre eles concentrados no exercício de um amor sempre renovado e intenso, cavando no fundo dos poços e recessos mais insondáveis as misteriosas emanações do amor constelado.

Aprendeu com as mudanças o contentamento da felicidade alojada nas pequenas coisas. Aprendeu que a felicidade não reside nos grandes e momentosos gestos, nos feitos extraordinários, nas vidas tecidas por acontecimentos inusitados. A felicidade, essa prenda rara avessa aos estados de permanência, infiel aos caprichos da duração incontentada, a felicidade é rebento sutil das pequenas coisas, das aventuras ordinárias da vida povoada por seres tão comuns quanto ele. Se é fruto da vida vivida, sobretudo do modo como a vivemos, nasce ela antes de tudo das tramas indecifráveis da memória. Pois é nesta que a felicidade se reconcilia com a duração, ideal inalcançável na ordem da felicidade vivida, ideal fadado à frustração nas insensatas fantasias dos amantes. A felicidade, sabe ele agora dobrado ao peso das malas que carrega no trânsito das mudanças, é a permanência dos bens idos e perdidos nos campos iluminados da memória. Mas isso, diz ele de si para si próprio, não é lição para sedentários. Há que fazer muitas mudanças de vida e endereço.

Dizem que ele segue por aí, judeu errante transportando nas malas suadas as pequenas coisas de sua secreta felicidade: livros, fotos, cds, dvds, objetos esquecidos nos fundos de gaveta aos quais ninguém dá importância. O problema da felicidade, ou das pessoas que mais a desejam, está na busca ilusória das ações grandiosas, na perseguição insensata dos fins inatingíveis. O problema da felicidade é um problema que se decifra no convívio das pequenas coisas. Mas chega, diz o motorista da transportadora estacionando o carro para recolher sua mais nova mudança.

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