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domingo, 16 de julho de 2017

No Mural do Facebook XXXII


Esperança e apatia:

Esta é uma verdade óbvia: um país, sobretudo bem sucedido, é fruto da ação coletiva da maioria. No Brasil, entretanto, poucos se dão conta disso, poucos agem norteados por esta verdade. Aqui é o país da esperança. E a esperança, também é óbvio, é no geral passiva. Poucos dizem: tenho esperança num futuro melhor e por isso vou lutar para que se realize. A verdade é o oposto. Quando invocamos a esperança, é porque nos sentimos impotentes diante da realidade.
No Brasil, país da esperança, vivemos, desde Dom Sebastião, daí o famoso mito sebastianista, a espera da volta ou milagre do pai salvador, do herói redentor, do Estado provedor. Em face da natureza, dos desastres e do caos que produz, notadamente por força da nossa baderna social, invocamos a ação divina, ou a de algum santo. As chuvas juninas no Nordeste, sempre devastadoras, são obra e solução celestial.
Por isso não me canso de dizer: o Brasil é muito atrasado, um escravo da força da tradição. Quando a coisa sai dos eixos frouxos que sustentam nossa sociedade anômica (privada de ordem civilizacional efetiva), esticando a corda da insegurança e do desespero, então apelamos até para o ditador que, na nossa mentalidade de servos, é o restaurador da ordem e do progresso, um insulto que pregaram na bandeira nacional. Como alguém já disse aqui no Facebook, é deprimente ler o que escrevo. Concluindo, o problema é o meu psiquismo depressor ou deprimido, não o país incapaz de realizar um projeto de real modernidade.
(Publicado no Facebook, 1 de julho de 2017).

O mal é estrutural:
Quase sempre deixo claro que não critico os impasses políticos e econômicos brasileiros restrito à sua esfera. Nossos problemas fundamentais, que remontam à nossa origem e nunca foram efetivamente enfrentados, são de ordem estrutural. A injustiça e a violência, a desigualdade iníqua e nosso atraso crônico, são apenas sintomas de nossas irresoluções estruturais. Sem reformas profundas nas esferas essenciais da sociedade, nunca seremos uma nação verdadeira, nunca uma democracia moderna. Os males estão em tudo, inclusive na esfera das relações íntimas, a começar pela família.
Já me cansei de afirmar que, bem longe desses mitos consoladores que envaidecem nossa mentalidade nacionalista e provinciana, somos uma sociedade anômica, isto é, privada de normas que imprimam sentido à nossa existência social e individual. Com ou sem a podridão que vaza de todos os esgotos do poder político, quase nada no Brasil funciona, ou funciona segundo princípios básicos de respeito aos direitos humanos, à efetiva noção de cidadania, à interação de cidadãos de fato, não de letra vazia gravada na Constituição e nos códigos que são modelos de modernidade. Mas isso existe e sempre existiu no papel. E papel, dizia Graciliano Ramos, que sofreu a brutalidade real avessa à letra da lei, papel aceita tudo. O que não nos falta é lei para tudo, tudo bonitinho no papel. No mundo real, somos ainda um fazendão de bacharéis e doutores, de mandantes e subordinados.
É óbvio que a realidade é muito mais complexa. O fazendão tem tecnologia de ponta, medicina idem e muito do que de mais avançado proveio e prevalece nas nações modernas. Mas o que de fato importa é que essa modernidade periférica se realiza sem superar as forças retrógradas e contrárias a tudo que em princípio é símbolo dos avanços e aperfeiçoamentos da ordem social contemporânea. Aqui a arquitetura de ponta se eleva espremida entre mocambos e favelas; o carrão top, provido da tecnologia mais avançada, esbarra no carroção do catador de lixo, o luxo e o lixo são indissociáveis, atrelados numa imagem de horror surreal que dissolve todas as teorias explicativas. Nem somos atrasados nem modernos. Por isso Kafka e sua imaginação ambígua e profética estão praticamente ausentes de nossa literatura. Quem precisa de literatura kafkiana quando ela é nossa própria realidade?
(Publicado no Facebook, 6 de julho de 2017)

A sensação de morrer:
Já ouvi vários relatos relativos à visão ou sensação de morrer. Há quem tenha visto uma figuração do céu ou além; há quem tenha ressuscitado convertido a alguma fé e experiências ou visões semelhantes. A minha, de alcance bem menos místico ou extremo, foi de uma serenidade indescritível. Depois de escapar por milagre de uma violenta colisão, provocada por uma amada seduzida pelo extremo da vida e da droga, voltei a mim numa sala de hospital entre máquinas congeladas (era a minha sensação).
De repente, tive uma estranha sensação de morte. Achei que estava morrendo. Só que essa sensação não me causou nenhum medo ou pânico. Pelo contrário, foi a maior experiência de serenidade e paz que senti na minha vida. Daí, salvo do desastre e da morte, mais tarde deduzi que a morte em si nada tem de aterrorizante nem anunciador de qualquer transcendência religiosa. Isso não quer dizer que me libertei do medo da morte. Reflito sobre ela com frequência e isento de medo. A ela devo alguns dos melhores poemas e meditações que escrevi. Nada mais além disso. Epicuro dizia não haver motivo para temê-la, pois quando somos ela ainda não é e quando ela é, já não somos. A formulação metafísica é bela, mas duvido que nos reconcilie com o medo da morte. São raros os que morrem com a serena coragem de Sócrates, Montaigne, Epícuro e os grande estoicos.
(Publicado no Facebook, 15 de julho de 2017).

Um mundo enfermo:
Detesto medicalizar a sociedade, até por por reconhecer a distinção elementar entre indivíduo e sociedade. Mas não há dúvida de que estamos vivendo numa sociedade doente. Grande parte da nossa doença individual, dos sintomas patológicos que sofremos, deriva de um estado de anomia e aridez espiritual que tem raízes socioculturais. Poderia expor uma infinidade de evidências para que isso não pareça mero subjetivismo.
Antes de tudo, a história humana foi sempre mutável. Algumas das suas crises mais profundas foram fundamentais para a renovação da sociedade. Esta que vivemos, no entanto, é de uma aceleração e de uma profundidade sem precedente. No curto intervalo de uma geração ocorreram mudanças para as quais somos incapazes de nos adequar positivamente. Estamos doentes porque a sociedade está doente.
E o mais grave é constatar que não sabemos o que fazer da nossa desorientação, do nosso desgoverno, do nosso mergulho sem âncoras em direção a um país cujo abismo não tem fundo. Sei que tudo isso que escrevo é deprimente, mas é real. Estou vivendo isso todos os dias, dentro e fora de mim. Quem quiser ou precisar, que se engane. Desafio qualquer gênio ou deus a assinalar uma saída para o caos em que vivemos.
O povão, regido pela alienação do rebanho, não está nem aí. Quanto mais o abismo se abre, mais fazem festa, se drogam, desprezam a realidade. Quanto à " elite", que Evaldo Cabral de Mello, justamente chama de clientela, escava ainda mais o abismo. O mais grave é a indiferença humana que se agravou, fruto da tecnologia digital. As pessoas estão cada vez mais solitárias e desamparadas. Por isso amam gatos e cachorros. Privados biologicamente de liberdade, estes são mais dóceis e servis ao nosso egoísmo. É isso aí. Deprimente ou não, é assim que grosseiramente percebo o mundo em que vivemos.
(publicado no Facebook, 16 de julho de 2017)

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Amor Narciso


O amor correu para a fonte
E se inclinou sobre as águas
Pra derramar na corrente
Sua torrente de mágoas.

Mas ao mirar sua imagem
Na água e luz refletida
Perdeu-se em sua miragem
Por si morreu de amores
Sem nunca amar na vida.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Deus me livre de ser mulher II


Contei meio conto, agora a outra metade. Emendando associação de ideias, que é quase sempre meu modo de compor um texto, pois me falta disciplina e método para esboçar sequer um roteiro de composição, o andamento pré-traçado de um argumento, uma tese, uma demonstração organicamente estruturada, começo atando a segunda metade do meu conto à fantasia feminina da outra metade amorosa. Quantas vezes não ouvi, quantas vezes não li a expressão impensada dessa fantasia: a busca da outra metade? As mulheres a repetem como repetem outras fantasias amorosas que resistem inabaláveis às impossibilidades objetivas de realização de fantasias tão insensatas. Se se detivessem para refletir um minuto, logo constatariam que a fantasia da outra metade é apenas um sintoma narcisista. A outra metade é uma fantasia especular: a imagem do outro me refletindo no espelho. Noutras palavras, o ideal do amor seria encontrar fora de mim o outro que me reflete, o outro que completa minha metade cindida.

Penso precisamente o contrário dessa fantasia narcisista. Penso que o amor, o amor adulto que eu pelo menos procuro, se realiza na dimensão da diferença complementar, do outro que nunca será meu eu. É por isso que dele preciso, que, quando o tive, ele ampliou minha vida, enriqueceu-a com expressões de ser que me faltavam, que não sou e não posso ser. O outro que amo é minha diferença e meu igual, alguém que nunca poderia ser o que sou nem quero que seja. Se amasse o outro para ser minha outra metade, minha fração especular, então estaria procurando a mim próprio. Por isso afirmei que essa fantasia da outra metade é uma fantasia narcisista. Ora, a grande singularidade do amor, e aí reside sua fonte de generosidade e entrega ao outro, consiste na experiência de sair de si, de se desatar da tirania da nossa força egocêntrica.

Depois de tudo, depois do século da mulher, como antes observei citando Eric Hobsbawm, muita coisa deu e continua dando errado. A mulher conquistou a liberdade num grau sem precedente histórico, mas as relações entre gêneros, as relações de amor e família entraram em curto-circuito. O amor romântico, que passou a reger a consumação e duração dos casamentos e da constituição da família, vaza água por todas as juntas, inunda nossos desejos e fantasias mais profundos. Se fosse sociólogo, mobilizaria dados empíricos, acessíveis a qualquer pessoa letrada no site do IBGE, antes de tudo na nossa experiência refletida, para comprovar o que todos sabem, ainda quando não o queiram saber: o amor romântico está na UTI (O Teu Inferno, de acordo com minha tradução) das relações amorosas.

O amor romântico, que tem atrás de si uma história de séculos, segrega contradições insolúveis entre o que contém de fantasia amorosa e o teste da realidade, que tem sempre a última palavra. Para começar, ele consiste na idealização do outro amado. Não há idealização que resista à prova da intimidade e da rotina. Como disse alguém, nenhum homem é grande para seu criado de quarto. Traduzo mal, e de memória, mas sei que quem me lê entende perfeitamente o que quero dizer. A intimidade é demasiado reveladora para encobrir nossas idealizações. Viver sob o mesmo teto, compartilhar o mesmo cotidiano, a mesma cama, os mesmos odores, rotinas e reações em face da realidade é o modo mais banal e infalível de ver o outro como ele é, na medida em que ele se revela. Se não o vemos nessa medida aferível pela experiência, é porque nossas fantasias, nossa necessidade de ilusão é mais poderosa do que a força dos fatos que a todo momento nos dizem: ele é apenas humano e falível, apenas um homem, apenas uma mulher. Mas o amor romântico se lixa para essas evidências comezinhas da vida conjugada, do cotidiano doméstico, da família despida de romantização. O amor romântico precisa acreditar que o céu é sempre azul, que a vida é sempre bela, que o amor é sempre magia.

A realidade – ou o princípio de realidade, como repisava o estoico do charuto ao pé do divã – a realidade desmente todas essas nossas fantasias. No fim, sabem os iludidos mais renitentes, no fim é sempre ela quem triunfa. O amor se esfarela, o casamento se desmancha e cada um volta para sua solidão e endereço. Acaso insinuo, como um analista sadicamente negativo, que não há solução, que precisamos sempre sofrer essa via crucis? Bem pelo contrário, acho que a gente precisa mudar de disposição amorosa, reinventar o amor, ajustá-lo a uma medida humana mais realista. A leitora romântica certamente retrucará observando que o amor é sempre assim, assim romântico como ela o figura e compreende. Para ela o amor é um dado inalterável da natureza. Não, minha iludida leitora. O amor humano muda, como quase tudo que é humano muda, pelo menos nas formas sancionadas pelo costume, pelas formas históricas de organização da sociedade. Bem ao contrário do que espontaneamente imaginamos, durante a maior parte da história do Ocidente o amor e o casamento obedeceram a interesses inteiramente alheios à realização amorosa tal como idealizada pelo movimento romântico, obra de circunstâncias históricas apreensíveis por quem se disponha a estudá-lo, pesquisá-lo e interpretá-lo nas suas características distintivas.

Chego a este ponto e me detenho para avaliar espantado o estrago que acabo de causar. Ia desdobrar meu argumento visando justificar por que não quero ser mulher e todavia vejam onde acabei. Peguei o atalho do amor romântico, empurrado por uma arbitrária associação de ideias (relembrando: a metade do meu conto e a metade romântica sonhada pela mulher) e a essa altura nem eu sei mais onde estou, ou estava. Como precisamos sempre invocar alguma causa nobre ou suprema para justificar nossas imperfeições e erros, invoco Montaigne, meu herói filosófico e literário. Quem o leu com alguma atenção sabe que ele usa e abusa desse tipo de procedimento na composição dos seus ensaios. Quero dizer, promete falar sobre determinado assunto, por vezes já enunciado no título do ensaio, e logo deriva para outra matéria: entra por um beco, percorre uma vereda, atravessa uma ponte e quando damos por ele está nos revelando verdades insuspeitadas e imprevisíveis. Longe de mim presumir que a leitora conclua que me comparo a Montaigne. Afinal, se há em mim um orgulho que confesso à vontade, é o orgulho da humildade. Portanto, comparo-me a Montaigne tão-só em termos de forma de composição do texto ou argumento, não de valor. Afinal, interroga-se perplexo o narciso de TV, quem é Montaigne para se comparar comigo?

Retomo meu refrão: Deus me livre de ser mulher! Querem ainda razões que me justifiquem ou desgracem diante do olhar sombrio da leitora que teima ainda em descobrir aonde quero chegar? Pois invoco agora o argumento que me parece mais poderoso e por isso é talvez a fonte maior da infelicidade e da angústia feminina. Invoco a crueldade da mãe natura. Invoco-a para aludir mais precisamente ao corpo, ao lugar do corpo na nossa vida, à centralidade do corpo que por isso se projeta indomável na vaidade feminina, no seu senso de identidade e autoestima, no porte arrogante ou humilhado com que se move nas ruas, praias, festas, badalações, shoppping, no grande cenário do narcisismo de espetáculo em que foi convertido o mundo em que vivemos.

O corpo é nossa fração do ser mais falível, a mais vulnerável aos humores e movimentos mutáveis da nossa subjetividade. Isso é patente até no corpo de uma mulher linda e jovem. Basta-lhe uma noite de insônia, uma farra mal curada, um vinco de depressão ou desânimo e logo essas rachaduras do ser repontam no corpo. Se é assim quando somos jovens, o que dizer quando já ultrapassamos a fronteira da idade confessável, da idade que recobrimos com os disfarces que nos tornam ou semelham tornar-nos, não raro ao custo de um ridículo que a vaidade cega se recusa a admitir, aquilo que já não somos? Apesar de todos os avanços maravilhosos da ciência posta a serviço da beleza, do prolongamento da juventude, apesar da indústria do cosmético, dos muitos adornos e falsas fachadas, a rigidez e vitalidade da carne são parte da nossa natureza mais falível.

É aí que as mulheres são mais vulneráveis e com certeza sofrem mais que os homens. Estes, que evidentemente não passam impunes por essas mutações, continuam levando vantagens patentes sobre a mulher. Bastaria considerar a fragilidade do amor romântico, o amor que, como acima assinalei, está vazando água por todos os furos e juntas. Como rege ainda de forma imperativa o amor e o casamento, estes duram na medida em que ele é. Para a mulher isso parece ser condição inegociável. Os homens, escolados em milênios de dominação, além de dotados de uma força libidinal que se ramifica por muitas vias de gratificação (a política, o poder, o sucesso profissional, os esportes, as artes e o cultivo das práticas intelectuais...), raramente elegem o amor romântico como fundamento dos seus vínculos amorosos, mais exatamente do casamento e constituição da família.

Duvido que esta regra se aplique à mulher. Conheço mulheres inteligentes, cultivadas, com trunfos de sucesso profissional invejável etc. Nunca nenhuma me disse que isso lhe bastava, que se sentia realizada por alcançar essas formas de afirmação social e triunfo tão caras ao homem. O que sempre me dizem é: quero ser feliz no amor, quero ter filhos com o homem que amo e coisas parecidas. Por isso provavelmente a atmosfera confusa do amor contemporâneo, os abalos que sacodem a família, diretamente associados ao fenômeno precedente, atingem mais dolorosamente a mulher. Não bastasse tanto, ela envelhece (perdão, nesse mundo de eufemismo dissimulador da realidade não convém usar expressão tão ofensiva; digamos terceira idade, ou até boa idade, deixo a expressão ao gosto de quem mais queira ou não iludir-se) mais solitária ou mais privada de amor, de oportunidades amorosas do que o homem.

Quantos homens, já idosos e não raro barrigudos e carecas não se acasalam com uma mulher jovem no dia seguinte à separação da mulher mais velha que já não querem? Pior, mas não incomum, é descobrir que a causa da separação foi a opção inconfessada do homem pela mulher mais jovem e bela. Tenho amigas, além de conhecer outro tanto, que nunca mais voltaram a casar, a ter um homem permanente depois da separação conjugal. Mas se olhamos à volta, se deitamos o olhar sobre a paisagem onde transitam os homens maduros e idosos – barrigudos ou não, carecas ou não, feios ou bonitos – vemos quase sempre uma mulher jovem e bonita enlaçando seu braço, quando não mimando-o com modos servis. Portanto, apesar de reconhecer e louvar tudo que de admirável a mulher conquistou, concluo repisando meu irritante refrão: Deus me livre de ser mulher!
Recife, 3 de agosto de 2012.

sábado, 9 de julho de 2011

Amor, Narcisismo, Solidão...



Todo mundo se queixa do estado precário das relações subjetivas. Embora todos aspiremos à realização de uma vida mais bela e harmoniosa, e todos aparentem entender esses altíssimos fins humanos inseparáveis do convívio com o semelhante, em tudo e todos prevalecem a incompreensão, a impaciência, o tédio, quando não a opressão e o ódio. Mais frequente ainda, sobretudo no âmbito das relações prolongadas, é a substituição do amor ou da amizade pela indiferença. Não é difícil observar a incidência desse fenômeno nas relações entre pessoas casadas há muito tempo, ou nas relações gerais entre familiares. Incapazes de romper a cadeia opressiva da indiferença confortável, preferem acomodar-se a esse estado de coisas.

Dar o salto para além dessa fronteira, dissolvendo assim um pacto implícito de segurança fundada na indiferença, é algo que aparenta exigir muita coragem. E os que a têm e a exercitam são no geral as mulheres. Talvez porque imprimam tão alto significado existencial à realização amorosa e familiar, as mulheres tendem a ser mais resistentes a essas formas de degradação do amor cujo limite é a indiferença acotovelada no cotidiano doméstico e na própria cama repartida.

Os homens, em contrapartida, inclinam-se para a acomodação tecida de hipocrisia, traição sem culpa aparente ou mesmo a duplicidade que às vezes envolve a constituição inconfessada de uma segunda família. Formados dentro de condições culturais que tendiam sempre a lhes favorecer os interesses egoístas em detrimento dos da mulher, é compreensível sua melhor adaptação à traição conjugal, à duplicidade e ao reduzido peso que a família passa a exercer na economia da vida subjetiva.

Ousando avançar aqui uma tese discutível, acredito que as diferenças entre homem e mulher não se esgotam no plano cultural, como decerto fica sugerido nos parágrafos precedentes. Apontando para a zona genital, disse certa feita Gertrude Stein que no homem tudo aí começava para acabar em qualquer lugar. Na mulher, contrariamente, tudo principiaria em qualquer lugar para fatalmente acabar na zona genital. À parte o feitio trocista do episódio, julgo que sua intenção era no homem sugerir uma libido especificamente centrífuga contraposta à libido centrípeta da mulher. Isso não exclui necessariamente a influência dos fatores culturais, mas sem dúvida põe a ênfase na constituição biológica de um e de outra.

Ora, se os valores e práticas humanos comprovadamente variam na medida em que varia o ambiente cultural, o extremo dessa variação não me parece autorizar o desprezo pelas diferenças de ordem biológica. A evidência de algumas dessas diferenças é tal que chega a parecer simplesmente sensato admiti-la. No entanto, sabe-se o quanto o desenvolvimento da antropologia cultural, com nítidas ramificações sintetizáveis no princípio teórico do relativismo cultural, induziu a excessos. É assim hoje rotineiro ouvir-se alguém afirmar que tudo é cultural, que tudo depende das formas específicas adotadas pelas culturas particulares aparentemente irredutíveis, em qualquer dimensão, a proposições de validade universal.

Eu próprio, no exercício da profissão de professor de sociologia, perdi a conta de quantas vezes me envolvi em disputas, quase sempre sem força de convencimento intelectual, com representantes das formas difusas de ideologia feminista, homossexual, racial, etc. Quantas vezes, em meio ao calor dessas disputas, não lembrei com insucesso a meus interlocutores que estou, enquanto homem, privado do poder de engravidar, menstruar, amamentar, etc.? Essas diferenças de ordem biológica não vão decididamente atuar no modo como homem e mulher concebem a atividade sexual, no modo como a praticam, no modo como emocionalmente a vivem? Acredito que sim. O culturalista, entretanto, diria que não, que tudo não passa de condicionamento ou conformação cultural das disposições humanas fundamentais.

Voltando entretanto à questão inicialmente enunciada, presumo que conviver de modo compreensivo, ou simplesmente satisfatório, foi e sempre será difícil. Talvez a natureza de que somos feitos, máquinas falíveis e fundamentalmente egocêntricas, imponha sempre limites variáveis à realização de uma melhor humanidade convivida. Mas também neste ponto importaria advertir para o risco de uma visão essencialista. Se me parece verdadeiro o peso exercido pelos fatores variáveis, associados à cultura nas suas concreções espaciais e temporais, eles não anulam à força atuante, quem sabe modeladora, das constantes humanas. Negar aqueles, os fatores variáveis, seria incorrer numa visão essencialista. De outro lado, negar estas, as constantes humanas, seria reivindicar uma visão puramente imanente ou histórica para a nossa insolúvel humanidade.

Fica assim claro que busco entender essas relações complexas dentro de uma perspectiva regida pelo princípio do equilíbrio entre os extremos. O meio termo é sempre a posição dos seres sensatos. Mas também dos medíocres e vacilantes, não me esqueço. Talvez se possa historicamente creditar aos extremistas, não aos sensatos, as grandes transformações e avanços da humanidade. Também as grandes destruições e retrocessos, acrescentaria. Mas noto que voltei a me perder em digressões.

O que intentava dizer ao retomar a questão primeiramente enunciada era que o agravamento das nossas dificuldades de convívio me parece assentar sobre a variável que eu designaria, seguindo a lição crítica de Christopher Lasch, cultura do narcisismo. Valendo-me de expressões que sei exercerem funções mais retóricas que propriamente explicativas, diria que o capitalismo de consumo precisa de uma ética da permissividade e de uma cultura narcisista para operar de modo mais integrador e eficaz. Pois como conciliar o consumo tal como hoje o vivemos com uma ética da austeridade ou uma cultura na qual o indivíduo desprendidamente se orientasse pelo reconhecimento do outro, ou pelos interesses impessoais e abstratos?

Os fins visados pelo capitalismo do consumo, somados à aceleração do tempo histórico que continuamente dissolve e refaz expectativas e identidades, concorre para a articulação de uma ética e de uma cultura centradas no eu narcísico. Inseguro dentro de um mundo que não compreende nem tem poderes para controlar, o indivíduo contemporâneo cede às artimanhas sedutoras da indústria da publicidade que sistematicamente o assedia incitando-o a ser “ele mesmo”, a dar importância a si mesmo, a cuidar de sua beleza, seu corpo. Pior ainda, manipulando desejos humanos profundos, como o da felicidade e do prazer irrestrito, vende ao Narciso infeliz uma caricatura da felicidade e do desejo ilusoriamente confundindo o princípio do prazer com a própria realidade.

Se a constituição produzida pela revolução americana frisa “the pursuit of happiness” como um dos direitos humanos fundamentais, a indústria da publicidade converteu esse direito num dado ou num produto mágico da volição individual. Como estranhar, depois de tudo, a presença generalizada e ofensiva do Narciso sempre se mirando nas águas e vendo em cada outro um mero lago espelhado docilmente a serviço do seu desejo de autoabsorção. Trocando em miúdos esse fenômeno psicocultural típico da nossa época, hoje qualquer idiota se acredita espontaneamente autorizado a pensar que o mundo tem a medida do seu umbigo. Qualquer imbecil fala hoje obsessivamente de si próprio presumindo que existimos apenas para ratificar sua grandiosa existência.

Incapaz de se ver e medir assim como é, o Narciso contemporâneo se queixa do mundo, da impossibilidade de convívio satisfatório sem nunca se dar conta de que nele reside um dos fundamentos dessa impossibilidade. Ainda que fosse excepcionalmente interessante e sedutor, culto e investido de múltiplos talentos, quem o suportaria entregue ao exercício compulsivo de falar de si próprio, de ver tão só sua própria imagem projetada no espelho a que reduz o outro? Se o Narciso dotado dessas virtudes seria cansativo e inconvivível, o que dizer do Narciso banal, do cretino qualquer prisioneiro de sua mesmice, de sua visão estreita, quando não apenas boçal?

Diante desse quadro, somente a incapacidade de viver sua própria vida e sua própria e fatal solidão explica a aderência tenaz do homem à vida gregária. Já não me refiro a Narciso, que é constitucionalmente incapaz de tolerar a solidão, para não dizer refazê-la a ela imprimindo um sentido mais verdadeiro e autônomo de existência individual, mas aos seres humanos em geral.

Num belo livro dedicado ao tema da solidão, Anthony Storr retraça através de séculos da história da cultura as múltiplas maneiras e idiossincrasias mobilizadas por homens dotados de excelência inventiva para dar sentido a suas existências solitárias. Enfatizando a dimensão criativa e mesmo necessária da solidão, demonstra Anthony Storr que os relacionamentos interpessoais não constituem a única via de realização humana, como correntemente se pensa e sobretudo se vive. Sintetizando o objetivo fundamental do seu livro, eis como se pronuncia: “We all need to find some order in the world, to make some sense out of our existence. Those who are particularly concerned with such a search bear witness to the fact that interpersonal relationships are not the only way of finding emotional fulfilment” ( Anthony Storr, Solitude. London: Flamingo, 1989, p. 167).

Como entretanto procedemos de modo oposto a este observado e fecundamente demonstrado no desenvolvimento do livro de Storr, persistimos em acreditar que somente no convívio, quando não na pura necessidade de vida gregária, podemos encontrar sentido e realização na vida. A elevada incidência de insatisfação e desgosto de conviver parece claramente sugerir o quanto somos insensatos em proceder fixados num desejo – que é também necessidade humana, não o nego – rotineiramente contrariado no âmbito da família, das relações amorosas, profissionais, além das inumeráveis formas gregárias de relação. Frisaria aqui, como de resto já o fiz na intercalada do período precedente, que não estou negando a necessidade de convívio, mas apenas nossa cegueira em afirmar que seja a única necessidade fundante da nossa experiência de realização emocional.

Diário - Recife, 5 de fevereiro de 1998.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A Idade através das Idades


Há poucos dias Paul McCartney estrelou um show monumental no Brasil. Dentro de um estádio de futebol, ocupado por uma massa composta por 60 mil pessoas, o ex-Beatle deslumbrou o público com a vitalidade e o talento que confirmam sua posição mítica na história da cultura de massas universal no decorrer dos últimos cinquenta anos. O fato de estar com 68 anos não aparenta afetar sua condição de ídolo cuja atuação no cenário pop se mantém inabalável, quer consideremos o caráter da sua performance, quer a receptividade delirante do público. Esse fenômeno tornou-se tão rotineiro na história da arte de massas contemporânea que ninguém mais estranha a permanência do sucesso e da atuação pública de ídolos como Roberto Carlos, Caetano Veloso, Chico Buarque e muitos outros, todos bem acima dos 60 anos.

Notem que citei apenas homens. Embora a mulher também espelhe na posição social que ocupa essa extraordinária mudança atinente à noção atual de idade ou valor etário, o grande beneficiário dessa mudança é sem dúvida o homem. Pois o fenômeno que até aqui considerei em termos restritos aos ídolos da música de massas é de extensão suficiente para que o caracterize como uma modificação profunda observável na concepção da idade e dos papéis sociais a ela referentes. Basta que se pense na frequência com que homens de meia idade, para não dizer idosos, hoje se separam e logo se envolvem com mulheres jovens e bonitas, quando já não é esse próprio envolvimento a causa de muitas separações. Nesse sentido, como em tantos outros, o privilégio é antes de tudo masculino, pois bem poucas são as mulheres maduras, separadas ou não, que desfrutam das oportunidades amorosas franqueáveis ao homem.

Lembrando um exemplo de caráter contrastivo que poderia ampliar ao infinito, por volta de 1920 o escritor inglês Lytton Strachey reagiu perturbado quando a pintora Dora Carrington declarou-se apaixonada por ele. O leitor maledicente ou preconceituoso que acaso tenha alguma noção de quem foi Strachey poderia alegar que a perturbação seria apenas fruto de sua homossexualidade. Isso também importava no contexto do meu exemplo, mas o motivo que mais perturbava Strachey decorria do fato de ter 34 anos, enquanto Carrington teria por volta de 18. Em suma, declarou-se um velho e isso não era decerto um exagero para os padrões etários e culturais da época.

Bem antes, no decorrer do século 19, os padrões etários e culturais seriam ainda mais inconcebíveis se fossem cotejados com os contemporâneos. Quem leu Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre, sabe como ele caracterizava o lugar da criança naquela época. Condensando este outro exemplo contrastivo, a criança era concebida como um adulto em miniatura. Por isso, a cultura do tempo lhe impunha um papel que era como que uma antevisão da velhice prematura já indicada nas roupas fechadas e austeras, num comportamento em tudo inconcebível não apenas para a criança do presente, mas para o próprio adulto, para não dizer o próprio velho, se me atrevo a pensar em gente como Paul McCartney e outros ídolos da sua geração como velhos.

Se o amor muda através das idades, como leio num poema de Drummond, também a idade muda através das idades. Hoje chegamos aos 60, ultrapassamos os 60 e todavia já não somos velhos. A noção de idade mudou tão radicalmente que seria hoje ofensivo identificar alguém maior de 60, seja ou não ídolo das massas, como velho. Parece-me muito positiva essa distensão da vida ativa e mesmo hedonista para além dos limites que convencionalmente separavam a velhice e mesmo a maturidade da juventude. Se esta era vivida e concebida como a estação própria à participação ampla no mundo, sobretudo o mundo do prazer, da festa e da experiência amorosa, a maturidade e a velhice tendiam a isolar o homem e sobretudo a mulher numa esfera da vida onde não mais conviria “entregar-se aos prazeres da vida” cedendo a tentações apenas concebíveis e aceitáveis na juventude.

Se numa ponta o adolescente ingressou no território “adulto” que garante acesso à vida desatada de limites e repressões consagrados pela tradição, na outra o ser maduro ou já idoso conquistou a liberdade de continuar no mercado, como agora se diz, traduzido este termo num sentido muito amplo. Dizendo de um outro modo: o mercado do consumo novamente compreendido num sentido muito amplo. Mesclando as idades no mesmo balaio, ou no mesmo show da vida, para repisar o lugar comum difundido por um célebre e já longevo programa de televisão, as fronteiras etárias convencionais foram diluídas no reino da permissividade desencadeada pela cultura do narcisismo consumista.

Frisei acima que esse fenômeno geral é positivo, mas importa também ressaltar o que na outra dobra encerra de negativo. Apelando para um outro lugar comum, não há afinal bem que não contenha mal, assim como não há solução que não gere outro problema. O problema do adultescente - valendo-me aqui de um neologismo que já empreguei no artigo Elogio da Inutilidade, também postado neste blog - é que agora todos tem horror à velhice e por extensão à morte. Envelhecer tornou-se um processo tão degradante, tão incompatível com nossa ilusão narcisista embalada pelo mito da juventude eterna que o discurso publicitário logo cuidou de suprimir estas palavras repulsivas: velhice, idoso e todos os similares que remetem à imagem crua e iniludível do corpo castigado pela idade e o tempo. Se o discurso publicitário se encarrega de refazer a linguagem e as imagens que remetem a essa dobra detestável da realidade, nosso narcisismo soprado por mil velas incandescentes cuida do resto. É certo que, se é impensável quebrarmos todos os espelhos que nos refletem como somos, todos hoje fazemos o possível para suprimir o insuprimível: até segunda ordem da ciência, a verdadeira religião do nosso tempo, somos ainda seres mortais.

Portanto, estamos condenados a um ciclo biológico que foi sem dúvida estendido e profundamente modificado, como acima indiquei, mas continuamos envelhecendo e morrendo. Paul McCartney e nossos ídolos da sua geração expressam um inusitado sentido de vitalidade e desafio às convenções do tempo e da cultura, mas eles próprios, condenados à contingência da espécie, envelhecem e morrem. No caso deles sobrevive a obra, símbolo de uma imortalidade inexistente na vida de quem a cria. É nisso e apenas nisso que transcendem nossa humanidade comum. No mais, continuamos todos sendo mortais. Portanto, seria prudente, talvez algo sábio, encararmos na linha do espelho mais real e imperativo a sombra do nada que lá no fundo da imagem nos espreita e espera. Como sussurra a voz arrepiante da Indesejada das Gentes: busca um sentido para tua mortalidade, pois um dia não haverá mais dia...
Recife, 24 de novembro de 2010.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Recife era uma festa




A partir de meados dos anos 1970, muita gente com quem convivia caiu numa grande festa nas noites de Recife. Vínhamos todos, ou quase, da esquerda política que era a tônica nos círculos da classe média universitária. Penso que dois fatores decisivos concorreram para a emergência dessa inflexão cultural: a ditadura militar e a simultânea irrupção da cultura narcisista. Esta mereceu de Christopher Lasch um estudo fundamental das ciências sociais contemporâneas: A Cultura do Narcisismo, pouco adiante desdobrado num livro igualmente fundamental: O Eu Mínimo, entre nós traduzido como O Mínimo Eu. A ditadura suprimiu do horizonte da nossa vida durante os anos de chumbo, momento que aqui considero, qualquer possibilidade de atuação política legal. Essa supressão também concorreu, sem que o notássemos, para que nossa energia pulsional fosse canalizada para a grande explosão dos costumes ocorrida nos anos 1970. Aludi um pouco a esse fenômeno em tom de memória num outro texto postado no meu blog (ver Olinda Era uma Festa). Considero agora uma dimensão paralela do mesmo fenômeno, só que restrito à atmosfera festiva do Recife.

Uma fração minoritária da esquerda com a qual convivia refugiou-se em fantasias revolucionárias insolúveis. Impotente diante da repressão política dissimulada ou patente em todo o círculo em que nos movíamos, inteiriçou-se numa percepção intolerante e fantasiosa da realidade. A pretexto de resistir à opressão, fechou-se num círculo inacessível a tudo que fosse ou parecesse valor ou mentalidade burguesa. Diria antes de tudo pequeno-burguesa, pois os atores desse círculo eram sintomaticamente egressos dela. Daí seu ressentimento social orientado antes de tudo contra a própria classe de origem. Que eu saiba, ninguém concedeu ainda o peso analítico devido a uma categoria psicológica essencial à compreensão dos grupos revolucionários e pseudorrevolucionários: a categoria do ressentimento social. Trocando em miúdos, muitos dos rugidos de ódio revolucionário que corriqueiramente ouvia nas livrarias Dom Quixote e Livro 7, sobretudo nas mesas de bar exclusivas das seitas pseudorrevolucionárias da época, não passavam de ressentimento social. Em nome de um ideal louvável, a luta contra a opressão de classe, liberamos nosso ódio contra tudo o que não temos e invejamos. Vejam onde acabaram tantos revolucionários depois bandeados para o PT. Vejam o oportunismo e a cafajestice de esquerda hoje fartamente recompensada com dinheiro público usado nos processos de anistia.

A outra fração, objeto primacial deste artigo, a outra fração caiu na festa. Ela expressou inconscientemente o que acima designei como a irrupção da cultura narcisista. Era força social tão inconsciente desse papel que seguiu pela vida farrando movida pela boa consciência de que a farra era uma força de contestação, de que a rebeldia no plano dos costumes representava um poder minando a hegemonia decadente da cultura burguesa. Nutrida pela realidade e sobretudo pelo mito da revolução, essa geração precisava imprimir sentido de contestação a tudo, até à aderência (ou cooptação, como então se dizia) à dominação burguesa. Daí nossa incapacidade de percebermos que éramos também expressão e sintoma da decadência. Sugiro que também aqui se observe no presente onde muitos desses contestadores de festa e rebeldia narcisista acabaram. Assim como o mito do ideal social, no geral identificado com a revolução, foi característico da minha geração, a carência de ideal é característica da geração presente. Ruim por pior, nisso eu penso que fomos mais afortunados.

Um dos palcos simbólicos dessa farra, que alguns retardatários liam ainda como contestação, foi o “Depois do Escuro”. O nome do bar é aliás simbólico. Foi obra de Álvaro, ou Alvinho. Infelizmente, nunca me ocorreu perguntar-lhe o sentido simbólico preciso do bar, mas acredito que o Escuro simbolizava a ditadura. O que veio depois dela foi o bar, situado na Rua das Creoulas, bairro das Graças. Para quem vinha das noites “marginais” do “Maconhão” de Olinda, como eu e tantos dos meus amigos, o “Depois do Escuro” era como a tomada do Palácio de Inverno. Medindo os extremos, pois os bares eram extremos, embora a clientela fosse substancialmente a mesma, saltávamos da marginalidade chique para a classe média francamente consumista e narcisista. Era sintomático, por exemplo, o fato de o bar ser revestido com tantos espelhos e as meninas se produzirem, como então se dizia, como se fossem desfilar numa passarela. A rua, congestionada por carros policiados, era já uma antevisão do presente.

O “Depois do Escuro” foi espontaneamente ensaiado nas festas monumentais sediadas na casa de Alvinho e Iracema, em Casa Forte; no apartamento de outro Alvinho, o Jucá, na Rua Setúbal, Boa Viagem, e em várias outras casas onde as festas pipocavam madrugada adentro. Os ouvidos dos vizinhos que nos aguentassem, como de resto continuam aguentando agora um alarido perto do qual nosso ruído seria carícia. O excesso e a demanda eram tais que houve um momento em que Alvinho e Iracema pragmaticamente decidiram emitir convites pagos para festas privadas. Talvez daí tenha brotado a ideia do “Depois do Escuro”. Também o primeiro rebento da Arcádia e outras luxuosas casas de recepção que hoje fazem fortuna transformando qualquer festa de formatura num simulacro ridículo da festa do Oscar. Algumas meninas de classe média, sedentas de excitação e novidade, toparam trabalhar no “Depois do Escuro” e similares frequentados pela classe média embalada na orgia narcisista dos anos 1970. Algumas encontravam mais prazer nas cantadas dos paqueradores bêbados do que no salário, que era uma porcaria. Sorte delas que dele não precisavam.

Muitas mulheres lindas e gostosas frequentavam o “Depois do Escuro” e outros bares do circuito festivo do Recife. A Musa Muda era uma das mais notáveis. Como Danuza Leão em Terra em Transe, abria a boca apenas para beber. Diziam as más línguas que a explicação era simples: não tinha o que dizer. Diziam outros que as más línguas eram apenas a expressão da verdade. Mas eu me perguntava se com tanta beleza etc, com aquele corpo que o tempo e a natura inclemente já dissiparam, se depois de tudo ela precisaria dizer alguma coisa. Antes que uma feminista de plantão me puxe as orelhas, lembro que a mulher objeto e até a mulher abjeta não eram raras naquelas noitadas. Aliás, apesar de toda a luta pelos direitos da mulher que integralmente endosso, elas se tornaram hoje ainda mais comuns.

No bojo dessa folia assistimos ao renascimento festivo do Pátio de São Pedro. De repente, velhas casas do bairro antigo, quietamente preservadas à sombra da imponente fachada da Igreja de São Pedro dos Clérigos, foram convertidas em bares e o pátio tornou-se um palco fervente de festa e bebedeira. Até famílias que frequentavam as melhores colunas sociais da cidade, hoje confundidas com as colunas policiais, passaram a encenar casamentos espetaculosos no Pátio de São Pedro. Lembro-me até de um ilustrado pela figura magnética e narcisista de Gilberto Freyre. Vi-o adentrar o pátio cercado pela corte habitual, acenando sorridente para pessoas que o cumprimentavam com o servilismo sintomático das nossas tradições escravistas e autoritárias. Longe de mim chegar perto, pois era ainda um “marginal rebelde”, farrista contumaz do pior bar do pátio, que batizei com meus amigos comunistas como Proletario`s Bar.

A farra irradiou mais tarde para o Recife antigo. Era então o foco da prostituição segregada, que hoje está na internet e outros lugares chiques, tão chiques que prostituta já não é mais puta, é modelo ou acompanhante. Bem, as herdeiras das segregadas, as que fazem ponto nos becos e ruas da cidade, estas continuam identificadas como putas. São o lumpen da prostituição. O capitalismo à brasileira produz requintes distintivos dessa natureza. Eis aí um caso exemplar da profissão que não ousa dizer seu nome.

Ocorre-me aqui uma memória merecedora de registro. Voltava certa madrugada para casa quando cruzei com uma puta fazendo ponto numa esquina. Queixou-se da dificuldade de encontrar homem e por fim culpou indignada a liberação sexual das meninas de família. Demonstrou perceber com clareza como este fato explicava o desaparecimento de sua clientela que ao cabo a deixava chutando lata com a bolsa vazia dentro da madrugada deserta.

O Recife antigo vivia caindo literalmente. As fachadas dos prédios e sobrados seculares desfiguradas pelo tempo e a incúria das gentes, as escadas rangendo ao peso dos bêbados e putas que iam e vinham. Gente de todo tipo ali se misturava e se grudava e se perdia. A atmosfera geral era de uma decadência sombria. E era nisso precisamente que residia o fascínio que para lá nos puxava, o fascínio da decadência, o fascínio da marginalidade que tanto cultivamos de par com nossa adesão inconsciente à orgia consumista e hedonista que define o padrão cultural do presente. As meninas de classe média, incluída minha namorada, carentes de liberação e aventura, passaram também a frequentar os puteiros do Recife Antigo: o Bar do Grego, o Gambrinus, a Chantecler... Talvez vivessem esse modo de exotismo sexual na noite, quando todas as gatas são pardas, movidas por uma fantasia feminina muito poderosa: a fantasia de ser a belle du jour, a fantasia de ser uma outra abafada pela interdição da cultura.

Não bastasse a extraordinária riqueza da música brasileira dos anos 1970, muitos de nós descobriram maravilhados o jazz que ouvíamos também em muitas dessas festas. O acento recaía, claro, sobre o jazz dançante dos anos 1930, as big bands e o som lendário de Louis Armstrong. Lembro-me de uma festa no apartamento de Álvaro Jucá cujo grande momento e pretexto para a bebedeira foi a exibição de um documentário com alguns dos grandes nomes do jazz: Duke Ellington, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Miles Davis, Bill Evans, Oscar Peterson, Chet Baker... Hoje seriam com certeza Ivete Seugalo, Chiclete com Banana e coisas inomináveis. Saltamos do alguma coisa para o nada sem no trajeto sustentarmos grandeza nenhuma.

Depois da farra e da dissipação sobreveio a inevitável ressaca. Só que a minha ia cada vez mais além dos sintomas físicos. Era uma ressaca roendo-me a consciência, lembrando-me à força de pontapés que estava assim traindo a vida que me pensara viver, que projetara viver. Traindo antes de tudo a mim próprio, eu me negava a cada noite e farra sem rumo, a cada bebedeira errante nos labirintos da marginalidade recifense, a cada dia que dissipava em becos sórdidos. De repente, via o amor ruindo à volta e dentro de mim, via-me à deriva de uma vida sem centro ou propósito. Ecos insones de minhas festas de Olinda, ainda próximas, somavam-se a esses procedentes das festas de Recife e então me via assaltado por angústias e descontentamentos que passaram a desgovernar meu próprio sono.

De repente, já não me reconhecia no que procurei ser e viver. De nada sabia então, mas sabia que era hora de voltar para casa, para a casa que eu próprio precisava conquistar depois de anos errando de vida e endereço, batendo em portas erradas e saltando janelas à cata de ocos móveis de carne. A partir daí, procurei em suma encontrar e viver outros modos de festa. Diria que o que encontrei foi antes de tudo a solidão. Mas não mais a solidão do indivíduo diluído no grupo ou na massa sem norte ou centro. Aludo a uma outra ordem de solidão, a que buscava e conquistei: a do indivíduo que voluntariamente visa a solidão como um alvo, como estado de ser necessário, embora nunca autossuficiente; a solidão sem a qual sequer podemos tatear no escuro, na escuridão que nos habita e habitamos, as formas imprecisas do ser que somos e tão pouco conhecemos.

Um dia, já guardando alguma distância das festas que são o que mais se expandiu no cerne da sociedade de massas calibrada pelo hedonismo, cada vez mais circo até para quem não tem pão, um dia fui a uma festa de aniversário numa churrascaria em Boa Viagem. Então aconteceu algo que mudou por completo a minha vida. Mas isso seria assunto para uma crônica de amor, não mais de festa.
Recife, 10 de fevereiro de 2010.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Delírio de Onipotência do Narciso Consumista


Eu tudo quero e tudo posso. Ser feliz, desejo supremo de todo ser humano, é apenas questão de vontade e coragem. Não ter medo de ser feliz, esta é a expressão mágica no país de todos. Aproveitar tudo, viver tudo a que tenho direito. Mais que isso: tudo que desejo. Meu desejo é a medida da realidade. O negócio é chegar lá, lá onde me espera o objeto do meu desejo. E o que aprendi e o que sei é que vale tudo: tudo por dindim, tudo para que o outro me veja e confirme minha existência, tudo pelos 15 minutos de celebridade, que no meu caso serão eternos. Ser sempre o que o outro quer, já que o outro é a medida da minha existência, já que é o outro quem valida o que sou. Ser é ser o outro e à margem do outro que me vê e me valoriza eu sou apenas a sombra do apagão, um zero. Nada.

Se Caetano Veloso canta que Narciso acha feio o que não é espelho, eu vou além, muito além, e afirmo que Narciso é o próprio espelho, que Narciso é uma criação do outro. O outro é o Big Brother, a mídia, o olhar invejoso do vizinho que quer meu carro importado porque odeia o que tenho e o que tenho é o que sou. O outro é o chefe a quem presto vassalagem para ser o que ambiciono: o executivo sem alma, o astro da mídia, a prostituta que se chama acompanhante ou modelo, o deus do futebol com quem me identifico quando visto sua camisa e majestosamente desfilo pelas ruas como se fosse ele. Se ele me toca, ou rabisca um autógrafo no guardanapo de papel onde o nome dele e o meu se imortalizam, sinto-me como se a mão de Deus sobre mim descesse. É quando sei que sou onipotente. Eu tudo posso. Eu tudo quero.

Sou the hollow man, o homem vazio, o homem oco do poema de Eliot. Não me procurem onde não estou e nunca estive: dentro de mim, pois sou pura forma aparente. Sou o reflexo de uma avenida em cujas margens vislumbro outdoors e clipes publicitários, vitrines que semelham templos onde adoramos o Deus mercadoria, massas errantes rolando por ruas anônimas à procura do que todos procuram: um quinhão de fama, um farelo de notícia que prove ao mundo e antes de tudo a mim próprio a existência dentro de mim anulada. Sou o homem vazio, o homem oco que é pura aparência. Dentro de mim há apenas poeira, um deserto sem água, trapos recobrindo minha nudez vazia e uma angústia sem norte, uma ansiedade sem objeto, um desejo de fuga sem destino, o vazio carente de algo que o preencha.

Mas tudo posso, essa é a voz sedutora do clipe publicitário que me persegue e cativa em tudo que ouço e me cerca. Ela escorre geladinha na garrafa de cerveja. Ou é na bunda deslumbrante da loura gostosa que bebe nos meus braços? Ela me faz crer que sou o dono do banco, não o correntista esfomeado entre o desejo de consumo e a taxa de juros. Ela transfigura minha solidão num harém onde as mulheres mais lindas e inacessíveis estão à distância de um travesseiro na minha cama, dóceis e servis como as mucamas dos engenhos de açúcar coloniais. Eles sobrevivem, os engenhos e seus senhores onipotentes, os engenhos e a escravaria moída pela máquina que sem alma tudo tritura; eles sobrevivem no tipo de capitalismo brutal que criamos, na mídia com seu circo de horrores cotidianos.

Sou onipotente pilotando meu carro que é uma máquina de guerra. Dentro dele viaja submissa a mulher que eu quiser, escrava do meu desejo. Dentro dele, miro com desprezo a massa anônima pendurada no estribo do ônibus, espremida nas janelas de veículos ferventes à luz do verão. Dentro dele, vejo de relance a massa de trabalhadores espremida em trens como se fosse sardinha enlatada. Dentro dele traço a fronteira entre dois Brasis atados mas divididos, cada vez mais se defrontando com surda ferocidade. Um país de todos, mas desiguais. Dentro dele, acelerando como um guerreiro em combate, atropelo o pedestre, ultrapasso sinais vermelhos, excedo todas as velocidades porque a potência do meu carro é instrumento da minha onipotência. Dentro dele estou acima da lei porque a lei e todos os códigos inventados pela sociedade são apenas o que acelero e compro.

Os valores e direitos humanos? Digam-me quanto custam, pois tenho o poder de comprá-los. Amor, delicadeza, ética, respeito, civilidade, compaixão, tudo isso soa como palavra tão vazia quanto o vazio que dentro de mim transporto. Como disse, não me procurem onde não sou e estou. Sou pura aparência produzida pelos poderes aos quais servilmente rendo minha liberdade, um sentido de humanidade e beleza que nunca provei nem me apetece. O que não suporto é a solidão, a hora fatal em que preciso mirar-me não no espelho do outro, não no espelho que é o outro, mas no espelho da parede do banheiro que habito, no espelho da minha casa sem humanidade. Nesses momentos irrompe e me sufoca a solidão dos desertos áridos, a angústia sem corpo e forma, a insatisfação sem repouso. Como explicar essa insatisfação permanente, esse movimento sem pausa, se tudo compro e tudo tenho no shopping que é o templo onde venero meus deuses e realizo minha figuração do céu na terra, céu que é aliás o único, pois que sou eterno? Os publicitários, voz da minha consciência, inventaram a terceira idade e assim aboliram a velhice. Eu, que tudo posso, fui além deles: desinventei a morte e me fiz eterno. Eu sou o outro e sou eterno. Mas por que não paro de me doer? Por que sou a droga sem a qual não suporto o mundo nem me suporto? Por que esse vazio que vai de dentro para fora de mim quando o espelho não é o da mídia, mas o da parede do meu banheiro?
Recife, 5 de dezembro de 2009

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Elogio da Inutilidade


George Steiner ressalta num dos seus ensaios extraordinários a força corruptora que um regime totalitário – o nazismo, no caso – exerce sobre a língua que falamos. Antes de tudo, ele corrompe a possibilidade de a utilizarmos para expressar a verdade. Embora não exista felizmente nenhum regime totalitário regendo nosso presente, há no entanto certas características dele rondando obscuramente nossas vidas. Consideremos novamente o problema da linguagem. Vivemos numa época dominada pelo discurso publicitário, cujo objetivo maior é vender tudo, não raro ao preço de ilusões completamente infundadas, mentiras que não resistem a um minuto de análise sensata. O discurso publicitário contamina a mídia em geral, que por sua vez atua sobre nossas consciências incautas, ou simplesmente carentes de auto-engano. Assim, passamos a empregar livre e correntemente palavras e conceitos que servem antes de tudo para embaçar nossa relação com a realidade, representá-la turvada por uma rede de mentiras e ilusões nesse sentido afins ao discurso totalitário. Bastaria pensarmos no sentido verdadeiro de expressões correntes como fogo amigo, bala perdida (digam isso a quem foi atingido por uma, ou a quem perdeu uma pessoa amada atingida por uma) ou terceira idade. Pensemos ainda nos clipes publicitários que a toda hora, a todo minuto, representam o consumidor como um ser investido de onipotência. O limite é o nosso desejo. Se tomo uma coca-cola, converto-me milagrosamente num super-herói; se tomo uma Skol, o prazer desce redondo milagrosamente convertendo-me num Casanova de botequim...
Mas meu objetivo é concentrar a matéria deste artigo em algumas das implicações submersas na expressão terceira idade e variantes como boa idade e adultescente. Este talvez seja um neologismo que eu possa humildemente reivindicar como sendo de minha autoria, pelo menos no sentido em que o emprego. Para mim, o adultescente é apenas um adulador da adolescência. Esta idade, a adolescência, elevada pelo discurso publicitário a ideal de vida, converte a velhice (usei enfim a palavra obscena, o termo impronunciável) em autêntico pavor, espécie de assombração do processo biológico que precisa ser a todo custo abafada. Isso nos leva de volta ao uso da linguagem como exercício de uma forma de vida mentirosa, uma forma de vida baseada na ilusão e na mentira. O mais grave é que, no caso, lidamos com experiências humanas inescapáveis, modos de ser que são constitutivos do processo biológico que todos fatalmente vivemos. Trocando em miúdos, qualquer pessoa que tenha o privilégio (ou desgraça, depende sempre do ponto de vista de quem fala e vive) de viver uma vida longa inevitavelmente atravessa os ciclos da infância, da juventude e da velhice. Mas parece que agora, possuídos pela cultura narcisista e hedonista, refizemos o processo da seguinte maneira: infância, adolescência, juventude e adultescência (agora no sentido de regressão ao irregressível, já que desconheço o milagre do velho efetivamente adolescente). Em suma, abolimos a velhice e estamos a caminho de abolir a morte, obscenidade ainda mais impronunciável. Como todavia a realidade é sempre imperativa, não há como suprimir a velhice. E já que é impossível suprimi-la, resta-nos criar uma linguagem que a recusa, uma linguagem que a representa como se não fosse, ou fosse outra coisa. É aí que o publicitário entra em cena e cunha expressões do tipo terceira idade, ou boa idade. Outro recurso empregado pela ideologia corrente consiste em representar o idoso (perdão, quis dizer o membro da terceira idade) como um ser útil ou como um consumidor feliz. Observem a felicidade combalida dos idosos filmados em bailes da terceira idade. Observem ainda as reportagens onde aposentados falam orgulhosamente do que fazem para conservar-se ativos como parafusos lubrificados a serviço da grande e monstruosa máquina do consumo.
Diante do quadro feliz e harmonioso acima esquematicamente esboçado, incorro agora na atitude herética de reivindicar para mim próprio o direito de envelhecer e morrer conscientemente, envelhecer e morrer liberto do peso dessas ilusões lucrativas... para os publicitários e comerciantes que nelas investem. Falando baixinho, para não escandalizar os jovens que têm pavor da velhice e os velhos que se refugiam no espelho de uma juventude esgotada, um dos meus grandes sonhos é aposentar-me para me entregar luxuriosamente, para me entregar deliciosamente à minha inutilidade. Como dizia Mário de Andrade, ele que ironicamente trabalhou feito um mouro, quero desfrutar da divina preguiça. Quero ser um aposentado para enfim conquistar a liberdade de ser inútil, de não precisar mover-me como um parafuso disciplinado dentro da cadeia imperativa que move a sociedade. Quero ser um velho aposentado liberto para desfrutar de prazeres suprimidos pela mentalidade utilitária que vê em cada poema uma evasão criminosa da realidade, em cada canção um desperdício de desocupado, em cada leitura de romance uma rendição à mentira ou ao faz de conta. Melhor dizendo, quero ser um velhinho. Quero que minha namorada e meus amigos me chamem velhinho. Se a tanto posso aspirar, quero que me amem como amamos um velhinho, que em mim considerem a dignidade e o respeito que devemos a um velhinho humilde e humanamente vivo. Quero ser um aposentado para ler e reler todos os livros que requerem um tempo incogitável nesse mundo regulado pelo tempo útil, o tempo dinheiro, o tempo competitivo, o tempo a serviço de alguma finalidade alheia a quem o vive. Quero o tempo do aposentado inclusive para encarar minha velhice sem falsas ilusões, como essas que a mascaram sob a face neutra de termos como terceira idade e boa idade. Quero enfim conquistar na velhice um privilégio suprimido pelo mundo mesquinhamente utilitário em que vivemos: quero viver o privilégio da inutilidade que pulsa na poesia de Drummond, num romance de Machado de Assis, numa sonata de Beethoven, na música sublime de Bach, numa caminhada à beira mar quando a noite desce com seus sortilégios e promessas inefáveis...

sábado, 9 de janeiro de 2010

Máximas e Mínimas


Passamente
Ou Máximas e Mínimas

O título desta página visa traduzir algo do espírito da época: tudo passa e é fugidio, tudo passa na nossa mente exaurida pelo fluxo contínuo de imagens e palavras e muito do que nela passa mente sobre a realidade. No fundo de tantas mentes exauridas e confusas, o que sobra é niilismo tingido de barbárie, por vezes salvo na corrosão lúcida de alguns loucos dançando à borda do vulcão.

A razão fria e a irrazão cega são males equivalentes. Quando quer e onde quer que se manifestem, a catástrofe irrompe no mundo.

A razão é com frequência uma inconsciente serviçal das paixões. Por isso acredito que o racionalismo e a civilização constituem árduas, precárias e reversíveis conquistas do gênero humano.

O ceticismo atrai bem pouca gente. Afinal, como conceber amantes céticos, empresários céticos, guerreiros céticos, esportistas céticos... ? Em contrapartida, nunca soube de um crime passional cometido por um cético, de guerras de conquista empreendidas por empresários e guerreiros céticos, de qualquer tipo de conflito armado tramado por céticos. Mas eles decerto encorajam, quando não produzem, um estado existencial abominado pela humanidade: o tédio.

A arte logra e a vida mata.

Embora persigamos obstinadamente a felicidade, o que de ordinário encontramos é o seu avesso. Como observou Borges, a infelicidade sempre nos encontra.

Eu nada espero. Assim me poupo do infortúnio que é o desespero.

Já se disse tudo o que dizemos e prosseguiremos repetindo inconscientes dos que nos precederam. Isso se aplica, acredito, às questões substantivas concernentes à condição humana. Mas não mudará ela, se já não está mudando, com um sentido de radicalidade que desmentirá o que sempre fomos?

Fiel ao espírito da antropofagia oswaldiana, eu me aproprio de tudo o que não é meu e até do que é. Por exemplo assim: comer são as duas melhores coisas da vida.

Evocando o espírito das páginas que Dostoiévski escreveu sobre o Grande Inquisidor, se Cristo descesse a este mundo no Natal, até a cruz em que foi crucificado seria leiloada na bolsa de valores.

Uma das evidências mais fortes da cultura narcisista dominante no nosso tempo consiste no fato de que quase todo mundo agora se diz ou se pretende artista. A própria mídia atua no sentido de reforçar essa presunção tola. No noticiário esportivo, por exemplo, apaga-se a distinção entre público e atores, entre os atletas e a torcida. Todos são estrelas ocas, ou pelo menos alimentam a fantasia de fruir um minuto esportivo de estrelato. O mesmo fenômeno é observável na música. Nos shows que hoje mobilizam milhares de espectadores, também se dissolve a distinção entre palco e plateia, entre músicos e ouvintes. Qualquer anônimo – nulo ou talentoso, não importa – sente-se investido do direito de reclamar um grão de celebridade, não importa a que custo. Já não se sabe mais quem é Narciso, quem o espelho.

Concordo: nossas vidas são regidas pelo capitalismo transposto para um patamar de consumo e hedonismo que converte o conjunto das nossas relações sociais num vasto bazar ou bordel. Mas convenhamos: há gente indo um pouco além do excesso. Aludo aos que matam mãe ou pai; aos que leiloam a mãe no mercado; aos que leiloam tudo como se tudo fosse pura e exclusivamente mercadoria. Encurtando a transação: declaro que também estou à venda.

Quando me falaram do filme “Lula, o filho do Brasil” prontamente lembrei-me da famosa boutade de Oswald de Andrade. E logo assim a amplifiquei: nem vi nem gostei nem verei. Assim como ninguém precisa beber o mar para saber que ele é salgado, não preciso ir ao cinema para saber que falam da hagiografia (um Aurélio com caju para o presidente, por favor) de um pragmático afortunado. Como falar de estadista num país incapaz de criar um Estado moderno?

O recifense realizou um feito que eu julgava inconcebível: converteu os costumes públicos em algo bem pior que os privados.

If the water closet is our private opinion, what would you say about the public one? Traduzindo livremente para os brasileiros que não dominam nossa língua nativa: se a água da privada escorre sobre nossa opinião privada, o que dizer do esgoto que inunda nossa opinião pública?

Se já nem temos opinião privada, o que dizer da pública?

Fernando da Mota Lima
Recife, dezembro 2009.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O Caráter Humano Mudou II



Diante da recepção em certo grau equivocada que meu artigo suscitou, julguei conveniente acrescentar-lhe algumas considerações que talvez melhor esclareçam o sentido dos argumentos nele expostos. Acrescentei ainda, nos parágrafos finais, minha apreciação de alguns desenvolvimentos do caso Geisy Arruda entre os poucos dias que separam este e o artigo inicial. Por fim, uma previsão do desfecho de toda essa celeuma que prescinde de bola de cristal, presunção profética ou pura e simples clarividência. Basta simplesmente comparar o caso presente com outros episódios momentosos que com freqüência irrompem do bojo de nossa barbárie rotinizada.
Sabia que meu artigo seria lido de muitos modos e provavelmente nenhum corresponderia integralmente às minhas intenções. Visei muitos alvos ao escrevê-lo, mas previa que o leriam como se se referisse exclusivamente ao caso Geisy Arruda. Ora, ela é apenas um sintoma do que entendo ser, e deixo isso claro no artigo, uma mudança radical no caráter humano. Esta idéia central do artigo ocorreu-me recentemente em conversa com amigos cuja percepção da realidade social brasileira muito se aproxima da minha. Há algum tempo convenci-me, de certo modo contra mim próprio, de que houve uma mudança profunda no nosso modo humano de ser. Ele é sensível nas nossas relações íntimas, na forma como passamos a nos relacionar com a idade, a morte, a sexualidade e outras expressões humanas fundamentais. Ele se manifesta ainda no tipo de mentalidade capitalista que desenvolvemos, também nas nossas expressões morais e religiosas. Em suma, ele afeta de modo radical nossas expressões mais substantivas de humanidade.
Como frisei no meu artigo, tomei conhecimento do caso Geisy Arruda através de um artigo de Contardo Calligaris. Vivendo deliberadamente desinformado, pois confesso já não ter estômago para digerir o circo previsível da miséria humana reiteradamente veiculado pelos meios de massa, somente tomo conhecimento de episódios dessa natureza quando filtrados pela intervenção crítica dos poucos articulistas que leio. Foi ao ver dois vídeos na internet que passei a me interessar ativamente pelo assunto. Ressalto ainda que somente procurei ver os dois vídeos abaixo identificados depois de saber da expulsão de Geisy da Uniban. Estava até então considerando o caso puramente do ângulo dela, já que me chocara diante do comportamento da turba da Uniban, para lembrar a expressão usada por Calligaris. Quanto à expulsão de Geisy, ela representa uma pura e simples punição da vítima, acrescida do agravante de que, na outra ponta, aqueles que perpetraram a barbárie são vergonhosamente inocentados. Há a essa altura vários outros vídeos disponíveis, além de considerável volume de artigos e reportagens relativos ao assunto, que ganhou destaque previsível.
Foi vendo os vídeos que passei a considerar em registro mais complexo a questão atinente à mudança do caráter humano. Impressionou-me, antes de tudo, a docilidade com que Geisy relatava a experiência brutal a que foi submetida. Nenhum sinal aparente de indignação moral, sequer a mais vaga consciência de sua liberdade ultrajada. Sentada no centro do programa de auditório apresentado por um certo Geraldo Brasil, sobrenome demasiado sugestivo, ela não se dava conta do modo como ele explorava a questão em termos sensacionalistas dissimulados por um tom de aparente protesto contra a violência a que ela foi exposta. Foi nesse momento que me vi moralmente perplexo diante de tudo e logo me dei conta de que minha consciência já não visava mais o problema nos mesmos termos. Em suma, já não via Geisy como uma simples vítima da barbárie, mas como parte dela, como quem se rende à barbárie com completa inconsciência das implicações morais do jogo que está jogando.
Quando amadureci a idéia de escrever o artigo, em parte animado por conversas livres que tive com amigos igualmente chocados com a manifestação de barbárie ocorrida na Uniban, lembrei-me de que certa vez lera Virginia Woolf aludindo à mudança do caráter humano em 1910. Minha associação era no entanto vaga e não conseguia localizar precisamente onde ela escrevera isso. Foi quando tive a idéia de reler The Modern World, de Malcolm Bradbury. De fato, lá encontrei a referência que constituiu meu ponto de partida para escrever o artigo. Além dessa idéia relativa à mudança do caráter humano, quis também ressaltar nossa rendição às formas de poder social, notadamente a mídia, que hoje devassam nossa privacidade invertendo um dos sentidos profundos da distopia escrita por George Orwell: 1984. Foi também aí que me ocorreu, seguindo a noção de marco histórico presente nas citações que faço de Virginia Woolf, D.H. Lawrence e Eric Hobsbawm, datar essa mudança com o ano que dá título ao livro de Orwell.
Luciano Oliveira amigo cuja opinião muito considero, convenceu-me a mudar o título do artigo, que antes era O Caráter Humano Mudou. Este título não contém o apelo jornalístico que conteria um que de pronto chamasse a atenção do leitor para o caso Geisy Arruda. Persuadido por seu argumento, troquei o título por este: “Geisy Arruda e a Servidão Voluntária”. Aludo evidentemente ao título do livro de Étienne de la Boétie, o amigo supremo de Montaigne. Agora arrependo-me por haver adotado este título. Se antes o clima de recepção geral já estava posto em termos polares ou maniqueístas, contra ou a favor de Geisy Arruda, agora o próprio título do artigo já favorecia a leitura redutora do meu artigo, que pode ser tudo, menos um ponto de vista fechado, aderente aos extremos imediatos da questão.
É fácil ou pelo menos previsível tomar posição contra ou a favor de Geisy Arruda. Isso é o que quase todos estão fazendo nos artigos e comentários circulantes na mídia. O humanismo simplista de pessoas como Contardo Calligaris, Eduardo e Marta Suplicy e muitas outras que se têm manifestado, além da inteligência bem pensante da academia e da mídia, fere essa tecla previsível. Endosso esse discurso enquanto expressa repúdio à intolerância e aos insultos morais que Geisy sofreu, mas procurei antes de tudo ir além disso, pelo menos sugerir num breve artigo polêmico as raízes profundas dessa celeuma. É curioso, não fosse previsível, o fato de identificarem os termos da minha intervenção como justificativa implícita da barbárie que ostensivamente repudio no meu artigo. Por que sempre entendem que estamos inocentando o culpado quando ousamos afirmar que a vítima não é inocente?
Propor a questão dentro do parâmetro maniqueísta recorrente em controvérsias tingidas de paixão típicas de episódios momentosos como o que aqui considero é algo que pode sem dúvida, num dos extremos do processo, concentrar argumentos e ações em defesa da liberdade e portanto contra a intolerância e o preconceito. Mas duvido que nos ajude a penetrar as dimensões mais profundas do problema em foco. Deixando-as intocadas no calor das disputas presas à linha aparente dos fatos, estamos desarmados para sequer assinalar as causas operantes da barbárie. É por isso que teimo em repetir que encaro Geisy Arruda apenas como sintoma de causas suprimidas do debate. Longe de mim a presunção de integralmente descrevê-las, menos ainda analisá-las. Mas tenho consciência de que pelo menos ousei ir além dos esquemas maniqueístas que são a tônica da controvérsia efetiva. Os que justificam a intolerância desfechada contra Geisy Arruda alinham-se com as forças mais conservadoras e autoritárias sempre poderosas na nossa história social; os que a defendem nos termos restritos ao reducionismo maniqueísta enxergam apenas a inocência da vítima recobrindo-a com tons de paternalismo moral que implicitamente confirmam a minoridade ética e intelectual da vítima. É exatamente por essa razão que sublinho no meu artigo a responsabilidade moral da vítima em face da barbárie. Enfatizei esse argumento ao lembrar que a defesa da nossa liberdade subjetiva diante de qualquer poder corrente na sociedade é a última e a mais poderosa força de que dispomos para preservar nossa autonomia. Recuso-me assim, ainda que isso me custe o risco de me confundirem com a justificação implícita da barbárie, como de resto aconteceu, a tutelar a liberdade de Geisy. Pois é esse o sentido implícito do discurso paternalista comum a tantos bem pensantes, assim como ao humanismo simplista que identifico no debate.
A essa altura é mais que evidente o modo como Geisy frui deslumbrada seus 15 minutos de fama. Isso já estava registrado no meu artigo e qualquer crítico isento de reduções maniqueístas poderia facilmente enxergar os refletores no palco. O desfecho é também previsível. Geisy aproveitará avidamente a celebridade fugaz assegurada pela máquina impiedosa do espetáculo, cujo alvo fundamental é faturar audiência. A Uniban, evidência ululante da degradação do nosso sistema educacional, maquiará sem danos maiores sua imagem de instituição universitária que somente num país do tipo do Brasil pode funcionar do modo como funciona. Seria exemplar descrever, com base numa investigação isenta, o processo que a transformou na quarta maior universidade e décima sexta pior do Brasil. A inércia política e moral dominantes, para não dizer cinismo moral puro e simples, garante a manutenção desse estado de coisas. O circo da barbárie continuará faturando sem alterações significativas enquanto nós, professores, intelectuais e formadores de opinião, continuaremos deseducando a turba da Uniban e mulheres dóceis à opressão como Geisy Arruda. Daqui a alguns dias ninguém mais lembrará quem é Geisy Arruda, mas as causas determinantes da nossa barbárie prosseguirão seu curso produzindo novos algozes e novas vítimas, nenhuma delas inocente.

O Caráter Humano Mudou


Geisy Arruda e a Servidão Voluntária

Virginia Woolf escreveu que o caráter humano mudou em dezembro de 1910, ou perto disso. Para D. H. Lawrence o fato ocorreu em 1915. Passando dos romancistas para um historiador, já que afinal periodizar é parte substancial do ofício deste, lembraria que para Eric Hobsbawm a data decisiva é 1914, quando a eclosão da Primeira Grande Guerra fechou o longo século xix para inaugurar o curto século xx. Como periodizar é matéria de permanente controvérsia, fico mais à vontade para enfiar minha colher de pau nessa salada. Afirmo, portanto, que o caráter humano mudou novamente. Querem uma data precisa? Escolho 1984, que com certeza importa enquanto símbolo supremo do pensamento distópico. Além disso, seu símbolo totalitário, o Big Brother, tornou-se paradigma moral do nosso tempo. Veremos abaixo o que isso tem a ver com a mudança do caráter humano.
O intróito acima valerá como moldura para mais um momentoso evento tratado a clarinadas por boa parte da mídia sensacionalista: a turba da Uniban que agrediu com ferocidade inusitada a estudante Geisy Arruda. Não perderei tempo detalhando o episódio, já que se tornou matéria de domínio e controvérsia pública. Sempre mal-informado, tomei conhecimento do caso ao ler artigo de Contardo Calligaris publicado na Folha de S. Paulo de 5 de novembro. O relato do fato chocou-me tanto quanto parece haver chocado o próprio articulista. No primeiro momento endossei na íntegra o ponto de vista de Calligaris, que ressalta, como psicanalista, a ameaça que o desejo feminino representa para nossa tradição machista enganosamente enterrada por algumas décadas de autêntica revolução dos nossos costumes, sobretudo os atinentes à sexualidade. Até aí parecia-me fácil determinar a linha entre o certo e o errado. Variando os termos com a ênfase definidora da linguagem clichê, entre o algoz e a vítima, o bandido e a mocinha.
Sucede que li ontem, novamente chocado, a decisão tomada pela Uniban depois de apurar o caso: Geisy Arruda foi sumariamente expulsa. Mais uma vez a culpada é a vítima. Tudo indica que, para as autoridades acadêmicas, a turba da Uniban foi vítima das provocações diabólicas da estudante insultada. Foi aí que decidi informar-me melhor acerca do processo. Depois de ver dois vídeos dentre os muitos agora disponíveis na internet, afundei num estado de perplexidade moral. Foi então que mais uma vez, diante da nossa barbárie rotinizada, convenci-me de que o caráter humano mudou. Vi afinal Geisy Arruda no centro de um programa de auditório da Record. O apresentador, Geraldo Brasil, simulava um tom de denúncia moral típico das coberturas sensacionalistas correntes na mídia brasileira. Já vi esse filme, pensei comigo, mas interessava-me observar o comportamento de Geisy. Vi-a desfilando diante da platéia com o vestido que supostamente provocou o tumulto na Uniban. A câmera voraz devassou-lhe o corpo lambendo-o com closes semelhantes aos olhos da turba que a agrediu. E ela a tudo assistia, de tudo participava com a insanidade dos inocentes, para lembrar a frase indelével de Graham Greene.
Em seguida, entrevistada por Geraldo Brasil, Geisy Arruda relatou com docilidade e pura inconsciência moral os assobios e galanteios, também o assédio moral que correntemente recebia na escola. Relatou ainda sua complacência narcisista diante dos rapazes que a cortejavam. Mais que isso, deixou evidente sua docilidade diante de muitos dos galanteadores. Se não me engano, ela agora se deleita com os quinze minutos de fama, para valer-me da metáfora célebre de Andy Warhol, que a resgatam da miséria suprema imposta pela sociedade do espetáculo: a miséria do anonimato. Noutros termos, a vítima é vítima, mas não inocente.
De repente, senti que já não podia encarar e medir Geisy Arruda como uma simples vítima da barbárie, mas sim como uma evidência unitária e empírica dessa massa anônima escolada pelo Big Brother e outros termômetros da mudança radical que se processou no nosso caráter humano. Na distopia de George Orwell, o Big Brother encarna o poder totalitário ao qual se opõe nossa última reserva de liberdade individual: a defesa da nossa privacidade, antes de tudo do amor, da intimidade erótica antagônica à devassa imposta pelo poder. Hoje a mídia e todos os poderes que anulam nossa privacidade já não precisam de teletelas, já não precisam arrombar portas, pois a privacidade nos oprime como um castigo, não como expressão última da nossa liberdade. Negociamos tudo, contanto que nos reconheçam. Em suma, tornamo-nos não apenas mercadorias livre e consentidamente cambiáveis, mas sobretudo mercadorias baratas.
A docilidade inconsciente de Geisy Arruda parece-me tão chocante quanto o espetáculo da barbárie manifesto na turba da Uniban. Ela simboliza um gesto de rendição da vítima à barbárie. O que resta em nós de civilizado quando renunciamos à civilização? O Big Brother já não precisa policiar nossa consciência, pois esta se tornou o espelho da barbárie que sempre nos ameaçou. Big Brother c´est moi.
Recife, 8 de novembro de 2009.