segunda-feira, 30 de novembro de 2009
O Caráter Humano Mudou
Geisy Arruda e a Servidão Voluntária
Virginia Woolf escreveu que o caráter humano mudou em dezembro de 1910, ou perto disso. Para D. H. Lawrence o fato ocorreu em 1915. Passando dos romancistas para um historiador, já que afinal periodizar é parte substancial do ofício deste, lembraria que para Eric Hobsbawm a data decisiva é 1914, quando a eclosão da Primeira Grande Guerra fechou o longo século xix para inaugurar o curto século xx. Como periodizar é matéria de permanente controvérsia, fico mais à vontade para enfiar minha colher de pau nessa salada. Afirmo, portanto, que o caráter humano mudou novamente. Querem uma data precisa? Escolho 1984, que com certeza importa enquanto símbolo supremo do pensamento distópico. Além disso, seu símbolo totalitário, o Big Brother, tornou-se paradigma moral do nosso tempo. Veremos abaixo o que isso tem a ver com a mudança do caráter humano.
O intróito acima valerá como moldura para mais um momentoso evento tratado a clarinadas por boa parte da mídia sensacionalista: a turba da Uniban que agrediu com ferocidade inusitada a estudante Geisy Arruda. Não perderei tempo detalhando o episódio, já que se tornou matéria de domínio e controvérsia pública. Sempre mal-informado, tomei conhecimento do caso ao ler artigo de Contardo Calligaris publicado na Folha de S. Paulo de 5 de novembro. O relato do fato chocou-me tanto quanto parece haver chocado o próprio articulista. No primeiro momento endossei na íntegra o ponto de vista de Calligaris, que ressalta, como psicanalista, a ameaça que o desejo feminino representa para nossa tradição machista enganosamente enterrada por algumas décadas de autêntica revolução dos nossos costumes, sobretudo os atinentes à sexualidade. Até aí parecia-me fácil determinar a linha entre o certo e o errado. Variando os termos com a ênfase definidora da linguagem clichê, entre o algoz e a vítima, o bandido e a mocinha.
Sucede que li ontem, novamente chocado, a decisão tomada pela Uniban depois de apurar o caso: Geisy Arruda foi sumariamente expulsa. Mais uma vez a culpada é a vítima. Tudo indica que, para as autoridades acadêmicas, a turba da Uniban foi vítima das provocações diabólicas da estudante insultada. Foi aí que decidi informar-me melhor acerca do processo. Depois de ver dois vídeos dentre os muitos agora disponíveis na internet, afundei num estado de perplexidade moral. Foi então que mais uma vez, diante da nossa barbárie rotinizada, convenci-me de que o caráter humano mudou. Vi afinal Geisy Arruda no centro de um programa de auditório da Record. O apresentador, Geraldo Brasil, simulava um tom de denúncia moral típico das coberturas sensacionalistas correntes na mídia brasileira. Já vi esse filme, pensei comigo, mas interessava-me observar o comportamento de Geisy. Vi-a desfilando diante da platéia com o vestido que supostamente provocou o tumulto na Uniban. A câmera voraz devassou-lhe o corpo lambendo-o com closes semelhantes aos olhos da turba que a agrediu. E ela a tudo assistia, de tudo participava com a insanidade dos inocentes, para lembrar a frase indelével de Graham Greene.
Em seguida, entrevistada por Geraldo Brasil, Geisy Arruda relatou com docilidade e pura inconsciência moral os assobios e galanteios, também o assédio moral que correntemente recebia na escola. Relatou ainda sua complacência narcisista diante dos rapazes que a cortejavam. Mais que isso, deixou evidente sua docilidade diante de muitos dos galanteadores. Se não me engano, ela agora se deleita com os quinze minutos de fama, para valer-me da metáfora célebre de Andy Warhol, que a resgatam da miséria suprema imposta pela sociedade do espetáculo: a miséria do anonimato. Noutros termos, a vítima é vítima, mas não inocente.
De repente, senti que já não podia encarar e medir Geisy Arruda como uma simples vítima da barbárie, mas sim como uma evidência unitária e empírica dessa massa anônima escolada pelo Big Brother e outros termômetros da mudança radical que se processou no nosso caráter humano. Na distopia de George Orwell, o Big Brother encarna o poder totalitário ao qual se opõe nossa última reserva de liberdade individual: a defesa da nossa privacidade, antes de tudo do amor, da intimidade erótica antagônica à devassa imposta pelo poder. Hoje a mídia e todos os poderes que anulam nossa privacidade já não precisam de teletelas, já não precisam arrombar portas, pois a privacidade nos oprime como um castigo, não como expressão última da nossa liberdade. Negociamos tudo, contanto que nos reconheçam. Em suma, tornamo-nos não apenas mercadorias livre e consentidamente cambiáveis, mas sobretudo mercadorias baratas.
A docilidade inconsciente de Geisy Arruda parece-me tão chocante quanto o espetáculo da barbárie manifesto na turba da Uniban. Ela simboliza um gesto de rendição da vítima à barbárie. O que resta em nós de civilizado quando renunciamos à civilização? O Big Brother já não precisa policiar nossa consciência, pois esta se tornou o espelho da barbárie que sempre nos ameaçou. Big Brother c´est moi.
Recife, 8 de novembro de 2009.
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Caro Professor Fernando Motta.
ResponderExcluirMuito me fez bem seu artigo no Diario de Guarulhos. Vivemos tempos em que o homem desconfia da propria sombra. O Big Brother está instalado em todos os recintos. Não duvido que ate mesmo em nossos banheiros.
Parabéns pela reflexão.
Abmael Alves
Abmael:
ResponderExcluirGrato pelo comentário acima, que felizmente não repete as incompreensões que estou cansado de ler.
Fernando.
E assim caminha a "humanidade"...
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