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sexta-feira, 6 de maio de 2016

No Mural do Facebook XIV


A Política e o espírito de rebanho:

As pessoas acreditam espontaneamente, até porque essa crença conforta nosso ego inseguro, que praticam o livre arbítrio, que agem de acordo com sua cabeça e convicções. Nada mais ilusório. A verdade é que a maioria diz sim. Dizemos sim porque não é fácil pensar e escolher com a própria cabeça. Esta, o que nela é introjetado através de um infindável processo de socialização, é no geral um emaranhado de preconceitos, lugares comuns, crenças induzidas pela nossa experiência social.
Um universitário, por exemplo, tende a compartilhar as ideias instituídas no meio. Pensa as ideias da maioria, aprecia a arte da maioria, etc. Como no entanto é formalmente ideologizado, critica o eleitor ignaro, o que vota por interesse, conveniência ou qualquer outra razão condenável.
Já ouvi muita gente esclarecido dizer que a desgraça da nossa política é a ignorância do povo. Confesso que endossei esta opinião. No entanto, ao atentar para os momentos de grandes embates partidários e ideológicos, concluí que a maioria segue o trote do rebanho. Nâo há nada que ilustre isso melhor do que a história dos intelectuais durante o século xx. O trote do rebanho já neste século, embora o Brasil continue largamente paralisado no século xix, confirma o enredo. Perdi minha crença no discernimento e superioridade humanista dos intelectuais depois que examinei o culto e colaboração ativa que muitos dos maiores intelectuais do mundo emprestaram a ditaduras, tiranos e atrocidades que chegam ao limite do mal praticado na história da humanidade.
Outra verdade que deduzo na contracorrente do que acima expus é o isolamento ou perseguição movida contra quem de muitos modos ousa dizer não, ousa seguir seu próprio caminho inspirado na voz do que Kant chama de imperativo ético categórico. Até no país mais civilizado e de mais admirável tradição liberal que conheço, a Inglaterra, Bertrand Russell perdeu posições, praticamente todos os amigos e purgou um áspero isolamento quando escreveu The Practice and Theory of Bolshevism. É uma obra pioneira e profética, pois foi publicada em 1920. Fruto de sua viagem à Rússia, no auge da Revolução de 1917, nela Russell ressalta o caráter totalitário do comunismo e qualifica Lenin como um fanático. Como membro de uma delegação importante de políticos ingleses, Russell foi pessoalmente recebido por Lenin, com quem conversou durante cerca de uma hora.
Concluindo, se você depende da companhia de amigos dentro ou fora do Facebook, recomendo que siga o trote do rebanho. Duvido da qualidade desses amigos que nos desprezam quando a eles nos opomos, seguimos nosso caminho irredutível, optamos pela consciência antes da conveniência ou malabarismo militante, mas essas razões são irrelevantes, quando não inconscientes, para o boi de rebanho. Lembrando uma canção de Chico Buarque dos tempos em que ele tinha a coragem de dizer não à ditadura, embora hoje diga sempre sim ao PT e a todos os regimes que supostamente correspondem às suas convicções, "vence na vida quem diz sim". E logo lembro outra canção que responde: "Não diga não, não me deixe sozinho..."
(Postado no Facebook, 28 de abril de 2016).

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Política e Psicanálise


Comento tardiamente o artigo de João Rego: O político, o homem e a razão cética, publicado na revista eletrônica Será? João Rego tem com freqüência citado Freud, notadamente O mal-estar na civilização (este termo, aliás, mereceria um artigo esclarecedor), para definir sua compreensão da política e questões de fundo social discutidas nessa revista. Sua perspectiva me parece decorrer, antes de tudo, da sua qualificação como analista e portanto leitor da obra de Freud. A representação corrente da psicanálise é muito deformadora dos seus fundamentos, já que tende a restringir sua validade e exercício à relação clínica entre o analista e o paciente. Há portanto quem ignore, inclusive muitos praticantes da psicanálise, suas ambições explicativas mais amplas. Se perdemos de vista essa dimensão, não podemos sequer imaginar o impacto exercido pela psicanálise no movimento intelectual do século 20. Um verso de Auden, um dos que foram profundamente influenciados por ela, condensa em poucas palavras o que estou aqui sugerindo: Freud tornou-se um clima de opinião. Traduzo assim livremente, e sem aspas, o que ele expressa num poema em memória de Freud pouco depois de este morrer.
É certo que a formação de Freud prende-se de imediato às ciências naturais (generalizo para simplificar a exposição) num estágio de desenvolvimento dessas ciências tão acelerado que do seu bojo brotou a ideologia do cientificismo. Explicando-a grosseiramente, reduzia tudo à ciência. De acordo com essa perspectiva ideológica, a ciência era o fundamento do progresso humano e, no limite, tendia a explicar tudo. Na periferia da cultura européia, é o caso do Brasil, intelectuais como Euclides da Cunha validaram a inviabilidade racial do povo brasileiro baseados nessa ideologia espúria. Sabemos que retificou esse erro, mas não ao ponto de suprimir graves ambivalências e contradições observáveis na sua inquestionável obra-prima. Também Freud pagou tributo ao cientificismo, como é patente nos textos em que interpreta obras artísticas. Diria que o que salva Freud dos erros dessa ideologia é sua formação humanística e sua intuição profunda da natureza indomesticável das pulsões humanas. É graças a essa concepção que, sobretudo na sua obra tardia, retoma de forma explícita questões sócio-culturais como as que João Rego ressalta no seu artigo.
Acho que uma apreciação psicológica da política é fundamental. Freud é uma das matrizes modernas dessa abordagem, embora nunca tenha escrito estritamente sobre o assunto. Visando sugerir a fecundidade dessa perspectiva interpretativa, lembraria os muitos analistas e comentadores da psicanálise que a exploraram de forma explícita. Evito citar nomes, pois há uma infinidade deles. Uma das limitações sérias de muitos dos nossos estudos sobre a política, em particular a brasileira, deriva dessa omissão de uma concepção psicológica do ser humano. João Rego tem esboçado com pertinência essa dimensão interpretativa no que escreve para a revista Será?
Retomando um pouco seu argumento, ele se baseia antes de tudo em O mal-estar na civilização para expor argumentos que o leitor apressado pode simplesmente interpretar como pessimistas ou até niilistas. Um argumento que me parece central na obra de Freud acima citada consiste na ideia de que há no ser humano um cerne biológico indomesticável pela civilização. É isso o que explica o título da obra. Também explica a recusa de Freud a uma noção otimista do progresso humano, apesar de ocasionais ambivalências contidas no conjunto da sua obra. Explica por fim sua recusa a qualquer utopia. Convenhamos: se acreditava na natureza indomável do egoísmo e da agressividade humana, como validar ou propor qualquer projeto utópico?
Freud procede no livro a uma breve crítica do comunismo. Observa que este supõe a crença na propriedade como fundamento dos males humanos. Suprimida a propriedade, instituída a igualdade social na espécie, realizaríamos afinal a utópica reconciliação da humanidade. Para mim, isso não passa de substituto secular da religião. Baseado na psicanálise, Freud desqualificou esse experimento histórico em 1930, ano em que publicou O mal-estar na civilização. Bertrand Russell o precedeu nessa objeção certeira. Em 1921 foi à Rússia conhecer de perto a revolução em processo. Conheceu Lênin pessoalmente. Depois do que observou, escreveu um livro contra o comunismo que mesmo na liberal Inglaterra o deixou política e intelectualmente quase isolado. A prova de que ambos estavam certos, Freud e Russell, depois da catástrofe que foi a experiência comunista ao longo do século 20, não é mais questão de teoria, mas sim de ideologia. Os fatos históricos estão aí para quem queira avaliar os fundamentos utópicos do comunismo.
A conclusão acima que, embutida na obra de Freud, também serve para validar a razão cética contida no título do artigo de João Rego, suprime o solo de onde brotam nossas ilusões mais tenazes. Ousaria acrescentar que pode ir além validando uma concepção niilista, se como tal entendemos a insolubilidade da condição humana. Na visão de Freud, Deus está morto, como antes, com implicações distintas, também afirmaram Dostoiévski e Nietzsche. Até no âmbito terapêutico Freud assinalou que tudo que a psicanálise poderia fazer seria substituir nossa miséria psíquica por uma neurose suportável. Friso traduzir livremente de memória o que ele escreveu. Acrescentou ainda que “civilização é repressão”. Embora tenha pioneiramente lutado para promover condições culturais passíveis de aliviar o peso insuportável da repressão sexual numa época profundamente diferente da permissividade hoje reinante, nunca relutou na defesa da civilização. Nesse sentido e em muitos outros que omito num breve artigo, a substância da sua obra e de sua orientação ética são incompatíveis com o espírito do presente. Isso explica em parte a compreensão deformadora da sua obra.
Em suma, Freud foi um gênio, um conquistador (termo de sua eleição) de territórios insondáveis do nosso psiquismo. Por isso a substância da sua obra é tão indigesta para o mundo regido pelo hedonismo e a permissividade em que vivemos. É também indigesta para os que não suportam viver privados do consolo de ilusões salvadoras ou o peso da existência humana sem a consolação de uma utopia passível de dissolver a tensão insolúvel entre desejo e realidade. Também por isso o veio aberto por João Rego pode fecundar leituras mais agudas da política e da nossa retorcida natureza.

domingo, 4 de maio de 2014

A sabedoria de Montaigne I


A sabedoria é um ideal ao qual muitos aspiram e raros efetivamente alcançam realizá-lo. Esses a quem me refiro não incluem por certo o grosso da nossa humanidade. Por isso tenho em mente os que se determinam a viver uma vida examinada, os que buscam para ela um sentido no geral enraizado em fontes filosóficas ou religiosas. Mas me parece certo que mesmo os que vivem e seguem vivendo indiferentes às águas turvas da metafísica e da transcendência, onde flui uma ordem de sentido existencial que bem poucos identificam e retêm, em determinadas circunstâncias se interrogam sobre o que são e o que é a vida. Embora nesse grau elástico aqui vagamente sugerido todos compartilhemos uma busca de sentido para a vida, parece-me certo que bem poucos convertem o exame da própria vida num modo refletido de ser, como se ser e pensar o ser fossem um modo singular e irredutível de se situar no mundo. Penso que isso é verdade, por exemplo, para homens como Buda, Sócrates e Montaigne, de quem me ocuparei neste ensaio.
Montaigne chegou mesmo a desqualificar o conhecimento teórico como fonte de sabedoria. Além disso, depreciava a filosofia acadêmica do seu tempo, ou mais exatamente a tradição escolástica. Também Descartes e Pascal, dois dos seus leitores com os quais compartilhava muitas afinidades, depreciaram ironicamente a filosofia. Tinham em comum o fato de imprimirem ênfase à experiência como fonte de sabedoria. Era raro no tempo de Montaigne um nobre enfatizar, como o fez, a sabedoria espontânea do camponês, do homem que lavrava as terras de sua propriedade. Observando o modo de vida do camponês, rente à linha da necessidade e por isso aderente ao movimento da natureza, Montaigne afirmou encontrar mais sabedoria neste do que nos filósofos que tanto refletiam sobre a morte sem todavia a acolherem com a sábia e resignada aceitação do camponês.
Acentuando talvez em demasia o papel da experiência, Montaigne incorreu em uma de suas muitas e reconhecidas contradições. Afinal, por mais que nos convença do quanto a experiência é decisiva na determinação do que somos e nos tornamos, não há como negar o fato de que foi um leitor apaixonado. Por mais que valorizasse a experiência e nela se refizesse e corrigisse, é patente na sua obra a correlação fecunda entre leitura e experiência, teoria e prática. Muito do tempo que viveu, desde a infância, foi devotado ao âmbito privado da sua biblioteca e mais tarde da sua torre onde, partindo de si próprio e de sua experiência, captava a passagem do ser, seu movimento incessante e as fontes de sabedoria que disso extraiu. Como deixar de reconhecer que no cerne dessas fontes estão os sábios antigos que tanto impregnaram sua experiência de leitor? O que ele alcança de modo singular, me parece, é o sábio equilíbrio entre vida pensada e vida vivida. Noutras palavras, dependendo de como pensamos e do que fazemos do que pensamos, pensar pode ser um modo de experiência.
Longe de mim a presunção de definir o que seja a sabedoria de viver. Penso apenas que é possível apreender a forma como teoricamente foi formulada e sobretudo vivida pelos poucos reconhecidos como sábios, como é o caso dos que acima mencionei. Seria todavia enganoso supor que a sabedoria vivida por Sócrates, tal como a expõe seu discípulo Platão, ou a de Montaigne, que se espelha no modelo do primeiro, seja transmissível através da mera leitura e reflexão. Supor isso seria confundir sabedoria com conhecimento. Alguém pode conhecer profundamente a obra de Montaigne e no entanto negá-la no exercício de viver. Quantos não vivem o avesso do que conhecem ou mesmo pregam, não raro inconscientes da contradição observável entre teoria e fato, entre conhecimento e vivência? Bastaria lembrar o lugar comum que irônica e certeiramente desmascara os que pregam indiferentes ao que vivem, quando não incorrem na ação desonesta consistente em empregar a teoria sedutora como instrumento de exploração dos incautos. Não é isso o que subjaz ao lugar comum: faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço?
Sócrates afirmou saber que nada sabia. Montaigne, fiel a seu ceticismo, limitou-se a interrogar: que sei eu? Sabia que repetir Sócrates, em cuja sabedoria tanto confessadamente se inspirou, seria já afirmar uma certeza. Fiel a esse postulado, o da incerteza de tudo, nada ensina ou prega na sua obra. Por isso seus ensaios constituem um exemplo vivo da impossibilidade de se ensinar a sabedoria. Ela não é ensinável simplesmente porque cada um precisa traçar o seu próprio caminho. O viajante, para não errar cego pelo caminho e se perder nas veredas e encruzilhadas que o atravessam, pode valer-se de um guia ou mapa. Este pode ser os Ensaios de Montaigne, digamos, sob a condição de que não incorra na insensatez de confundir a viagem com o mapa, a caminhada com o guia cuja obra ou expressão de sabedoria é fruto da viagem singularmente vivida, aquela que por ser única é irrepetível. Portanto, se se pode afirmar algo acerca da sabedoria, esse algo consiste no reconhecimento dessa singularidade da experiência que somente Montaigne pôde viver.
O ceticismo de Montaigne, condensado na interrogação acima citada, que sei eu?, sugere-me algumas reflexões sobre a dúvida como fundamento do conhecimento e da experiência de viver. A dúvida adotada por Montaigne, no plano das ideias procedente de sua leitura de Pirro e Sexto Empírico, é a dúvida que diria liberadora, antídoto eficaz para nos defender de toda forma de dogmatismo, do fanatismo religioso que sacudiu a França durante a maior parte do tempo em que ele viveu. As pessoas tendem correntemente a apreciar de forma negativa quem de tudo duvida, quem não adere a nenhum grupo ou corrente de fé e pensamento. A intolerância ou incompreensão impaciente com que repelem o cético é com certeza um sintoma da insegurança em que vivem, da incapacidade de suportar o peso da vida e da liberdade sem a escora consoladora de uma fé ou convicção inabaláveis e no geral inquestionáveis. Não as questionam, nem suportam quem o faça, porque temem o desamparo dos que não sabem viver sem tutela e mentor, sem um governo exterior à sua determinação e vontade. Rios de sangue e horrores de toda a natureza atravessam a história humana decorrentes da sede intolerante de dobrar e exterminar o outro que nos nega, que afirma convicções ou crenças opostas ou divergentes dos escravos da certeza. A dúvida de Montaigne é de natureza absolutamente contrária. Duvidou sempre para sobre a dúvida fundar um ideal de liberdade subjetiva passível de preservá-lo de qualquer movimento inspirado pela intolerância.
Embora tanto leia e releia Montaigne movido pelo desejo de assimilar alguns grãos de sabedoria, admito o fracasso de todos os esforços que tenho nesse sentido empreendido. Talvez a causa consista simplesmente no fato de que a sabedoria, se acaso logramos alcançá-la em algum grau, não é transmissível pela leitura dos poucos sábios que já existiram, ainda que o leitor a exercite, a leitura, com humildade concentrada, inteligência sensível e reflexão continuada. Assim como não se aprende filosofia lendo os filósofos, pois cada um precisa aprender filosofia filosofando ancorado nas condições singulares de sua experiência, menos ainda se assimila alguma sabedoria tomando-a de empréstimo a quem foi capaz de forjá-la para si próprio.
Se tomamos por filósofo aquele que é portador de um diploma de filosofia, ou ensina filosofia, o mundo está cheio de filósofos, pois a proliferação das universidades, em particular dos cursos de filosofia, verte aos milhares esse tipo de profissional no mercado dos saberes e ofícios. Se todavia queremos ser fieis ao sentido originário e etimológico da filosofia, há e sempre houve bem poucos filósofos no mundo. Se a filosofia, como ensina a origem do termo, consiste no amor à sabedoria, como tomar por filósofos os autores de dissertações, teses, livros e produtos similares despejados no mercado portando o rótulo de obra filosófica? Essa enxurrada de obras, procedente antes de tudo da demanda do mercado de reprodução institucionalizada do saber, pouco tem a ver com filosofia no sentido aqui explicitado.
Voltando a Montaigne, não é de estranhar que sua obra seja omitida nos currículos de filosofia no seu próprio país de origem, aliás um dos que ostentam mais longa e sólida tradição filosófica. Os Ensaios, segundo André Comte-Sponville, integram o currículo de história da literatura francesa, sendo portanto ministrados nos cursos de letras. Sendo mais preciso, no nível escolar correspondente ao que é hoje no Brasil o nível secundário. Deixando à parte os critérios arbitrários que regem a institucionalização dos campos de saber, a singularidade filosófica da obra de Montaigne é de fato demasiado indigesta para amoldar-se à normatização acadêmica da filosofia. Dentro dos parâmetros aqui implicados, é fácil remover Montaigne do cânone filosófico. Melhor dizendo, dentro desses critérios ele seria barrado na porta de acesso à universidade por qualquer aprendiz de Kant ou Hegel. Até Bertrand Russell, filósofo inquestionável em qualquer sentido concebível, praticamente o omite na sua A History of Western Philosophy.
O irônico, na omissão de Russell, reside no fato de que, apesar de se inscreverem em tradições filosóficas muito distintas, compartilham muita coisa. Depois de se afastar da aridez da filosofia técnica e mais especificamente matemática, passando o bastão para seu discípulo Wittgenstein, sobretudo depois de ser por este superado, Russell derivou para a filosofia moral. Nesse plano de sua obra me parece nítida a convergência com a orientação temática e mesmo estilística característica da tradição francesa, mescla de filosofia e literatura, procedente dos Ensaios. A imensa popularidade de que desfrutou, rara para um filósofo, derivou não apenas de sua militância política, mas também de obras aparentadas à tradição fundada por Montaigne. Lembraria, entre outras, A conquista da felicidade, O casamento e a moral, Elogio do lazer, Por que não sou cristão. Além disso, os ensaios que reuniu em volumes como Retratos de memória são vertidos numa prosa fluida e transparente como a de Montaigne. Acrescentaria ainda ser temperada por um senso de humor e ironia digno da melhor literatura cética que conheço. Essa prosa cativou milhares de leitores, leigos fascinados pela filosofia, como eu, e é também nítida na sua história da filosofia que acabo de citar. Indo além de Montaigne no fecundo acasalamento entre filosofia e literatura, Russell aventurou-se pelo campo da ficção. Se logo desistiu, muito pesou para isso a reserva crítica de Conrad, a quem tomou como modelo inspirador. Por fim, foi agraciado com o Nobel de Literatura, reconhecimento inegável tributado a um filósofo cuja obra, sobretudo a vertente que acima designei como filosofia moral, é uma refinada expressão da prosa literária.
Falando por mim, resigno-me à minha ignorância filosófica e dou as costas a todos esses gênios da história da filosofia que não apenas são de leitura obrigatória na academia, mas também imortalizaram-se como fundadores de sistemas filosóficos. Confesso presumir que de nada me serviria assimilar sistemas tão complexos, quando não impenetráveis e controversos. Se ao cabo lograsse efetivamente assimilá-los, hipótese bem improvável, não percebo o sentido que teriam para ajustar-se às demandas existenciais que me movem para a filosofia. O que em síntese procuro como leigo apaixonado pela filosofia é um suporte de sentido para a minha vida, uma fonte de saber que ilumine minha ignorância orientando de forma mais adequada e serena o curso incerto da minha vida. É isso o que encontro na leitura dos Ensaios de Montaigne. Como sabemos, ele não propõe sistema nenhum. Por isso, também por ignorar a ambição dos formalizadores de sistemas filosóficos, elaborou uma obra absolutamente singular na forma compositiva, assim como no conteúdo. Ao escrevê-la, Montaigne fundou conscientemente um gênero: o ensaio.
O ensaio é uma roupa de medidas tão frouxas, para não dizer descosidas, que é capaz de vestir qualquer corpo. Este, depois de bem acomodado, pode não apenas sentar-se à vontade, mas também elastecer os músculos, flexioná-los segundo os caprichos do organismo carente de movimento e daí erguer-se, andar, correr na direção que mais lhe aprouver. Em trânsito ou sentado, pode dar-se ao luxo de deitar sobre o papel qualquer assunto. Não é isso o que faz seu fundador? Montaigne espichou e refinou a forma. Tanto acomodou-a à sua subjetividade arbitrária que o leitor ávido de aprender, como é o meu caso, de tudo encontra nos ensaios. A subjetividade arbitrária que acabo de mencionar fica evidente quando Montaigne afirma pintar a passagem, não o ser. Isso é por certo um choque, ou heresia filosófica para quem durante séculos acreditou, seguindo a matriz metafísica de Parmênides, nas categorias absolutas que regem a existência do ser.
A passagem do ser, que Montaigne limitou-se a descrever consciente da impossibilidade de espetá-lo no papel ou imobilizá-lo na corrente da vida, explica a natureza do ensaio, que é antes expressão formal do ser inapreensível por qualquer sistema de pensamento do que capricho da subjetividade arbitrária do ensaísta. Nesse e em muitos outros sentidos, penso não ser exagero afirmar que Montaigne foi um dos fundadores da subjetividade moderna. Perseguindo o fio descosido do ser fluente que apreende fluindo nas mesmas águas em que navegam o ser e o sujeito que o pensa, sinto-me também transportado para as páginas do narrador caprichoso, aparentemente errático, que alguns séculos mais tarde brota da pena de Machado de Assis. Restringindo a alusão a alguns gênios fundadores da moderna tradição literária, lembraria ainda predecessores de Machado como Shakespeare, Cervantes e Diderot.
O ser homem, esse ser que somos e tão mal sabemos, tão mal intentamos definir ou explicar, é tão diverso e mutável que nos escapa tão logo tentamos apreendê-lo paralisando-o na sua fluidez contínua quando em vão o retemos nas linhas esgarçadas de uma definição. Montaigne tinha absoluta ciência disso, como bem o demonstra nas palavras que cito:
“Pinto-o como aparece em dado instante, apreendo-o em suas transformações sucessivas, não de sete em sete anos, como diz o povo que mudam as coisas, mas dia por dia, minuto por minuto. É pois no momento mesmo em que o contemplo que devo terminar a descrição; um instante mais tarde não somente poderia encontrar-me diante de uma fisionomia mudada, como também minhas próprias idéias possivelmente já não seriam as mesmas”. (Ensaios, Do Arrependimento, vol. II, Editora Abril Cultural, p. 153).
II

segunda-feira, 10 de março de 2014

Memórias de um Leitor V


A áspera realidade da pobreza, não raro resvalando para a miséria, é prodigamente descrita na tradição literária nordestina, também no cinema, nas artes plásticas, na história social e saberes conexos. Vivendo nas ruas e bairros do Recife num tempo em que as fronteiras de classe eram bem menos nítidas, li com familiaridade inconsciente romances como O Moleque Ricardo, de José Lins do Rego e a tetralogia Um cavalheiro da segunda decadência, de Hermilo Borba Filho. Daí passei para a obra de Josué de Castro, notadamente Sete palmos de terra e um caixão. Também João Cabral de Melo Neto, com Morte e vida Severina, marcou de forma profunda minha consciência das condições iníquas que ainda hoje caracterizam nossa realidade social.
Corrigindo-me a tempo, ou sendo mais preciso, o que designo por “familiaridade inconsciente” é meramente a pobreza e a miséria enquanto fatos ou dados objetivos integrados desde a infância à minha experiência social. Reencontrar essa realidade transposta para o registro da invenção ficcional e da análise histórica e sociológica foi passar a encarar com estranhamento crítico algo decisivo para imprimir consciência política à minha percepção de leitor. Foi por essas vias e fontes que politizei minha relação com o mundo próximo e imediato do subdesenvolvimento nordestino, assim como também com o mundo social mais amplo. Noutras palavras, fui gradualmente captando em algumas das leituras que agora registro os determinantes externos do subdesenvolvimento do Nordeste e, por extensão, do Brasil. A isso acrescentei outra ordem de determinação: a das relações de poder interregional. Para integrar esses fatores complexos numa figura dotada de alguma coerência, inserindo o particular imediato, aderente à minha experiência social espontânea, no contexto político global, concorreram de forma decisiva minha leitura de Crimes de guerra no Vietnam, de Bertrand Russell, e a leitura de articulistas políticos como Otto Maria Carpeaux, Paulo Francis, Alceu Amoroso Lima, que na velhice rejuvenesceu politicamente passando a ser um dos críticos mais intransigentes e corajosos da ditadura militar, Antonio Callado, Carlos Heitor Cony e muitos outros que concorreram para politizar minha noção até então inocente da realidade do mundo. Como escreveu Graham Greene em The quiet American, “Innocence is a kind of insanity”. Muitas outras circunstâncias, algumas puramente acidentais, importaram para adensar minha consciência crítica conduzindo-me para a vertente das ideologias de esquerda. Não me detenho na reconstituição desse processo para não me desviar em demasia da rota retorcida dessas minhas memórias primariamente subordinadas à minha experiência de leitor.
Crimes de guerra no Vietnam, de Bertrand Russell, me caiu nas mãos por mero acaso. Alguém emprestou-o a minha irmã Zuleide, que vivia numa outra esfera de realidade e interesse, e assim ele acabou nas minhas mãos. A essa altura, entre 1969 e 1971, tendi progressivamente a envolver-me com a realidade política através da leitura de obras de ciências sociais, da própria literatura e do cinema. Outro fato que decisivamente me despertou para a política foi minha amizade com algumas pessoas de esquerda, no geral confessadamente comunistas. A primeira delas foi Urariano Mota. Conheci-o quando nos candidatamos a um emprego na empresa que editava o guia telefônico do Recife. Perdi um emprego, mas ganhei uma amizade. Nossa conversa revelou-nos de imediato afinidades literárias, políticas e musicais. Daí para a amizade estreita e constante a passada foi curta. Através dele, fiz também amizade com José Antônio Spinelli. Considerado o meio em que eu vivia, a aridez mental e a alienação política nele dominantes, Spinelli impressionou-me intelectualmente. Foi a primeira pessoa que me falou de Sartre, de vários intelectuais comunistas influentes e tudo isso aprofundou meu interesse pelas questões políticas da época. Meu ingresso na Faculdade de Direito, em 1971, consolidou e ampliou meus vínculos políticos com a realidade precisamente nas circunstâncias mais perigosas para quem ousasse envolver-se com essas coisas, já que foi precisamente durante esses anos que a ditadura se extremou na repressão implacável contra a minoria numericamente insignificante que se atreveu a desafiá-la, seja através da luta armada, seja através da oposição pública e ativa. Mas corto caminho para novamente não enveredar por digressões impertinentes.
Viver no Recife, então quanto agora, era esbarrar na pobreza e na miséria a cada esquina da cidade. A diferença que importa neste passo salientar é que então havia menos violência nas ruas, que ainda eram do povo, contanto que não se atrevesse a contestar a ditadura. O centro do Recife, também à diferença de hoje, era o centro da vida social da cidade. Havia os cinemas, as livrarias, os bares e sobretudo uma atmosfera de livre convívio nas ruas isenta das zonas de segregação hoje correntes. Além de freqüentar os cinemas do centro (o São Luiz, o Moderno, o Trianon e o Art Palácio), sem contar as salas de subúrbio já em vias de desaparecimento imposto pela crescente difusão da cultura televisiva, vivia nos bares do centro da cidade com os amigos, todos de esquerda.
Gilberto Freyre enfatiza em Sobrados e Mucambos os processos de mudança social descritos na dimensão da longue durée, como escrevem os historiadores franceses, que modificaram de forma profunda e irreversível os vínculos de confraternização atenuantes dos antagonismos implicados nos extremos senhor e escravo, casa-grande e senzala. O fenômeno da urbanização, desatado ao longo do século 19, alterou radicalmente as zonas de confraternização típicas da nossa sociedade colonial lastreada no patriarcalismo fixado no latifúndio monocultor e na escravidão. A transposição gradual dessa forma de organização social e cultural para a cidade rompeu os elos de confraternização tradicionais. Na interpretação otimista de Freyre, no entanto, eles se refazem no espaço da cidade através das procissões, das festas religiosas, do carnaval e de toda essa agregação festeira que pipoca a cada esquina ou espaço público ainda não privatizado pela sanha predatória das empreiteiras e seus prepostos, os políticos corruptos ou apenas inconscientes do caos urbano e das consequências desastrosas da política insana que praticam.
Se hoje as zonas de segregação tendem a acentuar-se, não obstante toda a ideologia “multiculturalista” e os mitos persistentes da nossa cultura integradora, naquele momento o centro da cidade, como já frisei, era ainda o espaço fundamental de vida associativa do Recife. Apesar da repressão política impiedosa, disseminada na universidade, notadamente na Faculdade de Direito, e nos pontos de maior agregação dos grupos politizados, vivíamos nos bares mais badalados, como o Mustang, na Avenida Conde da Boa Vista, nos cinemas, livrarias e sobretudo nas ruas. Lembro-me ainda dos papos sobre política e literatura, das nossas conspirações inviáveis e românticas às margens do Capibaribe e nas ruas onde circulávamos a qualquer hora do dia e da noite. O perigo que temíamos rondava na sombra e nada tinha a ver com a bandidagem marginal hoje corrente, bandidagem da qual nos protegemos fechados dentro da fortaleza do shopping, do condomínio policiado por câmeras, portões lacrados, alarmes eletrônicos e muros intransponíveis, não raro eletrificados. O Recife era outro. Não muito melhor, talvez pior, mas desse ponto de vista sem dúvida melhor. Em suma, havia ditadura, politização da juventude sem vias de acesso à militância institucionalizada, repressão política feroz. No mais, as ruas e o espaço público, embora sempre precário, eram ainda do povo.
Foi quando esse clima ideológico estava ainda se esboçando na minha vida pessoal que li Crimes de guerra no Vietnam. Diria simplesmente que representou um choque mental e ideológico na minha vida. Até então, minha consciência da cultura americana, assim como do que representava no mundo, era moldada sobretudo pelos filmes made in Hollywood. Noutras palavras, era um inocente do Leblon, lembrando o poema de Drummond. Cultuava os mitos do cinema americano, admirava a democracia americana, a música americana difundida pela cultura radiofônica e fonográfica da época e evidentemente vivia com minha imaginação erótica atormentada por Marilyn Monroe, Ava Gardner, Gina Lollobrigida, Elizabeth Taylor, Natalie Wood, Kim Novak, Doris Day e outras figuras mitológicas. Bertrand Russell revelou-me algo das entranhas da dominação imperialista imposta pelos Estados Unidos não apenas ao Vietnam, onde explodia a primeira guerra totalmente coberta pela mídia mundial, mas também ao Brasil e ao conjunto da América Latina. Foi um choque que suprimiu de vez minha inocência ideológica.
Outro sintoma das turbulências ideológicas da época associadas à minha experiência de leitor foi a emergência do boom da literatura hispano-americana. A difusão internacional desta literatura foi fruto antes de tudo de fatores políticos como o combate às ditaduras impostas praticamente a toda a América Latina, as lutas pela descolonização dentro do clima da guerra fria e o antiamericanismo reativo, fruto da política imperialista desencadeada pelos Estados Unidos em todo o mundo não-comunista. É claro que esse clima ideológico foi decisivo para que muitos jovens se bandeassem para o comunismo. Os de tendência mais moderada, abrangendo um leque que ia do catolicismo socialista ao liberalismo de esquerda, como era o meu caso, tornavam-se companheiros de viagem dos radicais. O clima de antagonismo ideológico, no entanto, reduzia todos esses matizes em termos práticos a dois pólos: direita versus esquerda, capitalismo versus comunismo. Na hora do pega pra capar, as forças repressivas nunca distinguiram quem do outro lado era comunista, simpatizante, companheiro de viagem, nem mesmo o inocente útil ou azarado, pego no “local do crime” na hora em que todos os gatos eram vermelhos.
Apesar da atmosfera ideológica acima grosseiramente pincelada, fui sempre um politizado malgré moi. Fosse outro o tempo, outras as circunstâncias, outra a geração dentro da qual me formei, jamais teria me metido com política, jamais teria feito o pouco que fiz dentro das possibilidades objetivas e subjetivas do tempo. O pouco que fiz foi feito contra o meu medo, minha aversão temperamental à política, minha consciência de que não podia ser indiferente, também um sentimento de solidariedade e compaixão inculcado por anos de leitura e convívio lastreados por valores humanistas cuja abrangência ia do catolicismo ao marxismo. Não preciso declarar que a política constitui um componente fundamental da consciência de todo intelectual digno deste termo, ainda quando se recuse à militância ou seja avesso à ação prática característica das formas e processos implicados no exercício do poder, nos modos de ordenação política da realidade. Sei de tudo isso, incorporo tudo isso à minha representação mental da realidade, mas confesso e reitero minha aversão à política compreendida no sentido prático e dominante do termo.
Voltei a derivar para as considerações político-ideológicas porque, no momento que considero dentro destas memórias de leitor que vou canhestramente compondo à deriva da memória, não há como dissociar minha experiência de leitor desse contexto que teima em enfiar-se nas linhas que vou cosendo tendo os livros como alvo prioritário. Isso explica o desvio que tomei em direção aos autores americanos de língua espanhola. Acho que o primeiro que li foi Gabriel García Márquez. Dele saltei para Juan Rulfo, Alejo Carpentier e Mario Vargas Llosa. Borges, hoje pairando por consenso crítico acima de todos, era então no mínimo silenciado. Li-o bem mais tarde. Um pouco antes conheci a obra de Ernesto Sabato e Manuel Puig. Minha leitura definitiva, direi mesmo suprema e insuperável dentro dessa linhagem procedente da língua espanhola, foi Dom Quixote, de Cervantes, que evidentemente nada tem a ver com os condicionantes ideológicos implicados nessa etapa da minha vida de leitor. Hoje os que mais leio e portanto elejo como preferidos são Borges, Octavio Paz, Mario Vargas Llosa e Ernesto Sabato.

domingo, 7 de abril de 2013

Egoísmo


Durante muito tempo subestimei a centralidade do egoísmo na organização biopsíquica do ser humano. Esse é um fato correntemente reprimido na noção que temos do que somos e de como nos relacionamos com o outro, assim como com a realidade em geral. Formado dentro da tradição cristã em cujas raízes pulsa um humanismo sentimental e idealizador da natureza humana, cresci embalado pela crença na minha própria bondade. Por extensão, também na bondade do meu semelhante. Sei que simplifico a representação da natureza humana dentro da tradição cristã, pois não esqueço de que ela convive com uma representação também negativa e falível do ser humano. Medindo-me bem melhor do que de fato era, expressava inconscientemente meu narcisismo, além de um desejo de ilusão que anulava ou coloria a percepção rotineira de nosso egoísmo impregnado de maldade.

Essa representação da natureza humana é patente na nossa idealização da infância, no mito baseado na pureza e inocência da criança. Ora, a observação mais elementar demonstra precisamente o contrário. É impressionante nossa cegueira diante da maldade que tão corriqueira e espontaneamente se manifesta no comportamento da criança. Bastaria observar, por exemplo, o que acontece em qualquer família de filho único quando nasce um segundo, isto é, um competidor do amor e atenção até então absolutos desfrutados pelo primogênito, até então rei ou rainha do lar. Além de observar essa realidade rotineira em muitas famílias depois que lavei os olhos da minha percepção ingênua, tolhida pela necessidade de idealizar a infância, acrescentei a essa matéria empírica relatos de amigas que me esclareceram sobre o egoísmo cruel desfechado contra a irmã que vinha ao mundo para subtrair-lhes a condição de rainha do lar, objeto absoluto do amor dos pais.

Conto uma que vale por muitas. Minha amiga, hoje médica e filha de uma psicanalista, também minha amiga, contou-me esta história exemplar que acabou convertida em brincadeira muitas vezes repetida no nosso convívio prazeroso. Era filha única quando, aos 3 anos, nasceu não apenas uma, mas duas gêmeas. Destronada, começou a hostilizar as irmãs recém-nascidas. Um dia a mãe, ocupada em amamentar as gêmeas, tentava conter seus ciúmes, seu desejo imperioso de amor exclusivo advertindo-a para o fato de que, privadas de amamentação, as gêmeas morreriam. “Ah, é, mãe? Então não amamenta não”.

Isso rendeu-nos bom motivos de gargalhada, um riso então esclarecido pelo egoísmo competitivo que se manifesta já na origem da nossa vida. Mas quantos pais e adultos não continuam testemunhando histórias desse tipo com a inocência cega ou a inconsciência passiva dos que se deliciam pontuando complacentemente: “como minha filha é engraçada, como as crianças são deliciosamente inocentes”. Será isso pura e simples insciência do universo infantil ou sintoma do narcisismo que nos tolhe a percepção realista e desilusória da nossa natureza?
Também a observação de grupos de crianças, do modo como convivem na família, na escola, nas brincadeiras e projeções do seu imaginário infantil, são reveladores da nossa poderosa disposição para o mal já pronunciada na infância. Bertrand Russell foi um filósofo racionalista de extraordinária lucidez. No entanto, só muito tardiamente se apercebeu desses traços do nosso egoísmo votado ao mal, à competição e fantasias de destruição do outro. Já por volta dos 50 anos, fundou com Dora Russell, sua segunda mulher, uma escola pioneira na Inglaterra. O propósito de ambos era instituir uma educação libertária inspirada em modelos educacionais supostamente científicos que marchavam, em síntese, contra a tradição vitoriana asperamente repressiva. Quando no entanto se deu conta de que os “anjinhos” aos quais aspirava converter em seres saudáveis e liberados de padrões repressivos tendentes apenas a produzir o mal eram capazes de misturar alfinetes à sopa dos coleguinhas à hora da refeição, precisou revisar toda sua concepção pedagógica.

Crianças são espontaneamente cruéis. São cruéis entre si, no convívio que travam tecido por brincadeiras de nítido fundo sado-masoquista. O bullying, palavra que designa um fenômeno psicossocial que ingressou no circuito da mídia de forma muito positiva, constitui evidência exemplar das nossas disposições agressivas. O romance O Senhor das Moscas (Lord of the Flies), de William Golding, retrata em clima de antiutopia imaginária o que seria uma sociedade composta por crianças isoladas numa ilha. Esta obra, e sei de muitas outras de sentido semelhante dentro da tradição literária e cinematográfica, desdobra-se no avesso de todas as idealizações da infância nutridas pela tradição religiosa, pedagógica, antes de tudo por nossa natureza narcisista.

É também oportuno mencionar duas teorias que muito concorreram para reforçar nossa idealização da condição humana: o marxismo e o culturalismo que se tornou moeda corrente no discurso sobre o egoísmo e o mal nas nossas relações sociais. Segundo a primeira, de nítido viés historicista, não existe a natureza humana enquanto tal, mas apenas variantes humanas produzidas pelas condições materiais e históricas das relações humanas. É essa concepção que induz Marx, Engels e seus seguidores a projetarem num futuro incerto a sociedade ideal, um ideal de humanidade reconciliada segundo o qual transitaríamos do reino da necessidade para o reino da liberdade. Nesse ideal paradisíaco, transposto do céu para a terra, seriam abolidas as classes sociais e portanto todas as manifestações da opressão e do mal decorrentes da injusta e cruel divisão da humanidade entre senhores e escravos, entre capitalistas e proletários e variantes antagônicas equivalentes. Logo, a representação do mal e da injustiça como constitutivos da nossa condição humana não passaria de metafísica ou justificação ideológica da desigualdade e da opressão de classe.

Quanto à segunda, o culturalismo, postula a cultura como fundamento último da nossa natureza mutável na medida em que mudam as culturas. Seguindo coerentemente esse princípio, todo mal, toda injustiça, tudo que há de negativo no ser humano seria atribuível às condições da cultura. Esse culturalismo, quando progressista, postula a mudança cultural como meio eficaz de transformação positiva das relações humanas; quando conservador, opõe-se veementemente à mudança cultural encarando-a sempre como uma ameaça às constantes humanas, à identidade de um determinado grupo ou sociedade.

O que ambas teorias, a marxista e a culturalista, compartilham é a convicção de que não existem constantes humanas também decorrentes da nossa natureza biológica. Claro que a inversão de ambas, substituídas por uma concepção puramente biológica, incorre no mesmo excesso teórico determinado por um princípio monista ou absoluto. Num extremo teríamos o historicismo econômico-social ou cultural; noutro, o extremismo biológico. Ora, acredito que a verdade não radica nem num extremo nem no outro. A verdade é que nossa natureza humana resulta da articulação complexa entre natureza e cultura. Noutros termos, nem somos determinados pelas condições materiais da nossa existência social, postulado do marxismo, nem pelas condições culturais, postulado do culturalismo, tanto o de corte progressista quanto o conservador. Por fim, também não somos redutíveis à nossa natureza de fundo biológico. A chave de tudo, que todavia não abre porta ideal nenhuma, consiste na complexa interação dos fatores naturais com os culturais. Dentro dessa moldura teórica, acredito que temos alcançado realizar em graus variáveis estados mais ou menos imperfeitos de organização humana. Solução última, sonho de todo utopista, isso não existe.

Seria também preciso frisar que há certa sabedoria no nosso egoísmo, ou pelo menos inconsciente dispositivo de autossobrevivência. Isto é, nosso egoísmo nos poupa do sofrimento decorrente da empatia e simples compaixão diante da miséria corrente do nosso semelhante. Como suportá-la se nossas forças altruístas, se nosso senso de compaixão nos inclinassem ativamente para a miséria alheia? Nosso sofrimento e nossa culpa seriam insuportáveis se verdadeiramente empatizássemos com a dor e o sofrimento que a todos os momentos irrompem à nossa volta. É talvez por isso, e nisso há algo de saudável força de preservação do nosso ego, que de ordinário sofremos apenas diante do sofrimento daqueles que amamos, sejam parentes, amigos, o cãozinho de estimação...
Novamente, a formulação acima não deve ser compreendida em termos absolutos. Embora movidos por nosso egoísmo espontâneo tendamos bem mais para o polo da sobrevivência e do interesse enraizado nas nossas disposições egoístas, quantos exemplos extraordinários e desconcertantes não temos de sacrifício, renúncia e empatia com a dor e a necessidade do outro humano? Que medida humana poderia afinal esgotar nossa humanidade inexplicável?

Salvador, 7 de fevereiro de 2011.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Cioran (fragmento de um diário)



Releio Cioran: Exercícios de Admiração. Esse romeno de formação francesa, que muito à vontade declara a ambição de escrever em francês melhor do que os próprios franceses, é sem dúvida um filósofo escritor. O traço talvez mais saliente dos ensaios curtos e textos de circunstância que compõem este volume – salvo o longo capítulo inicial dedicado a Joseph de Maistre – é o pessimismo dissolvente com que encara a condição humana. O curioso é que essa sua peculiaridade, com freqüência expressa em termos desabusados, não deprime o leitor. Pelo menos posso dizer que não me deprime, antes pelo contrário.

Cioran é um homem governado por excessos, presa fácil das paixões infrenes. Como ele próprio reconhece, é pouco afeito à nuança. Escrevendo sobre Otto Weininger, frisa as qualidades deste que mais o seduziam: o exagero desmedido, a negação extrema, a aversão ao bom senso, a busca intransigente do absoluto. Em suma, tudo que não sou nem me apetece. Weininger foi uma referência crucial na juventude de Wittgenstein. É este um dos argumentos mais fortes de Ray Monk, o biógrafo que mais profundamente me marcou. Sua biografia de Bertrand Russell em dois magníficos volumes (The Ghost of Madness e The Spirit of Solitude) é provavelmente a melhor que já li em toda a minha vida. A que dedica a Wittgenstein, The Duty of Genius, é também excelente, mas não tanto quanto a de Russell. Monk é um wittgensteiniano e coerentemente toma o partido de Wittgenstein contra Russell em ambas as biografias. Isso entretanto não basta para que a biografia do primeiro seja melhor que a do segundo. Sendo mais preciso, Monk toma o partido de Wittgenstein por nele identificar uma integridade ética e intelectual superior à de Russell.

Voltando a Weininger, ele é tão central para a compreensão da vida de Wittgenstein proposta por Monk que a epígrafe que este escolheu para The Duty of Genius é extraída de Sexo e Caráter, o livro fundamental de Weininger: “Lógica e ética são fundamentalmente idênticas; não são mais do que dever para consigo mesmo”. A epígrafe evidentemente é a pista que conduz ao título da biografia, portanto do seu sentido substancial. Cito a epígrafe em português por não dispor do meu exemplar da biografia em inglês. Alguém o levou ou roubou, não sei. Tenho adotado como norma neste diário registrar primeiramente uma obra no original sempre que a tenha lido primária ou exclusivamente no original. No caso de The Duty of Genius, cito a epígrafe em português por dispor apenas da edição publicada pela Companhia das Letras.

Cioran é autor de boutades deliciosas. Referindo-se à misantropia, escreve estas palavras que não resisto à tentação de citar: “Não receie encontrá-lo: de todas as criaturas, as menos insuportáveis são as que odeiam os homens. Não se deve nunca fugir de um misantropo” (p. 120). A propósito dos benefícios catárticos da função da escrita, revela haver sobrevivido graças a ela. Julgo compreender o que escreve acerca da função liberadora da escrita por experimentar corriqueiramente esse fato de raiz psicológica. Considero-o de resto tão saudável que viso antes de tudo a função expressiva da escrita, até porque não sou um escritor profissional e quase nada publiquei dos meus escritos erráticos e dispersos, além de no geral circunstanciais. Cioran é evidentemente um escritor profissional. Como tal, pode melhor apreciar os benefícios catárticos da escrita. Observa assim que “Quando detestamos alguém a ponto de querer liquidá-lo, o melhor é pegar uma folha de papel e escrever várias vezes que X é um canalha, um crápula, e imediatamente percebemos que o odiamos menos e que quase não pensamos mais em vingança (...) Suportei-me melhor assim, como suportei melhor a vida. Cada um se cuida como pode” (pp. 127-8).

Registrando um pouco de minha experiência pessoal a esse propósito, com freqüência noto que o mero fato de escrever no diário páginas duras contra determinadas pessoas ou situações funciona efetivamente como um dispositivo descompressor, um liberador de energia agressiva reprimida. Talvez o caso mais facilmente observável no meu diário seja o referente a tudo que na realidade social brasileira inspira-me revolta e aversão. Escrevo reiteradamente acerca dessas coisas e sinceramente gostaria de suprimi-las de um diário que estimaria menos pesado e menos negativo. Sucede, no entanto, que sou rotineiramente vítima de abusos e agressões a meus direitos elementares de cidadania numa realidade regida pela anomia; sou vítima da desonestidade ou descaso de pessoas e instituições que burlam minha boa fé, quando não simplesmente me ignoram. E não consigo nem quero adaptar-me a esses horrores grandes e pequenos inscritos no nosso cotidiano cultural, embora saiba de minha impotência, o que naturalmente acentua minha revolta. Diante disso, transporto muitas vezes intencionalmente parte dessas irresoluções para as páginas do meu diário. Aqui me pronuncio contra a grosseria dos recifenses, sua incivilidade crônica, sua inconsciência social que em verdade define um padrão de convívio. Noto então que o mero registro da crítica, da denúncia irrefreável, da indignação impotente, tudo isso como que se quebranta, cede na força opressiva que tanto me perturba. É esse, em substância, o processo psíquico que Cioran assinala na sua própria escrita.

Escrevendo sobre Scott Fitzgerald, indica Cioran dois modos de lucidez verificáveis nos seres humanos. O primeiro ele o caracteriza como um privilégio ou dádiva. Seria próprio dos que vivem a vida ou a experiência do mundo como algo transparente e assim sentem-se como que libertos do sofrimento de sabê-la transparente, já que ela assim os define. Ainda que a vivam como um estado de crise permanente, não sofrem nem se queixam do que afinal é inerente à sua condição. O outro modo de lucidez é sempre uma revelação tardia sobrevindo como um acidente, “uma rachadura interior que ocorre em dado momento”(p. 108). Este é o modo de lucidez característico de Scott Fitzgerald. Sua expressão mais plena e transparente está documentada num dos textos literários mais dilacerantes, verdadeiros e impiedosos que já li: The Crack-up. É a rachadura a que alude Cioran quando emprega a expressão “rachadura interior”.

Passo a palavra ao romeno da catástrofe, que sintetiza com felicidade o essencial do que escreve Scott Fitzgerald no seu dilacerante texto autobiográfico: “Até então, fechados numa agradável opacidade (refere-se aos que se identificam com o segundo modo de lucidez acima caracterizado, nota minha) aceitavam suas evidências sem avaliá-las nem lhes pressentir o vazio. Ei-los desiludidos e como que involuntariamente engajados no caminho do conhecimento. Ei-los tropeçando entre verdades irrespiráveis, para as quais nada os preparara. Por isso, experimentam sua nova condição não como um dom, mas como um ´golpe`. Nada preparara Scott Fitzgerald para enfrentar ou suportar essas verdades irrespiráveis. O esforço que fez para se acomodar a elas não deixa, contudo, de ser patético” (p. 108).

The Crack-up é o relato pungente de uma experiência de desintegração, expressão lúcida e dolorosa da ruína de um homem que antes viveu mimado pela glória literária e a dissipação de sua fortuna e talentos num estado de orgia inconsciente e infrene. Algo dessa atmosfera, ambientada nos círculos mundanos da Paris dos anos 20, foi recriado em The Sun also Rises, de Hemingway, mas sobretudo na obra de Scott Fitzgerald. Diria que antes de tudo nos seus contos. Meu favorito é Babylon Revisited, que já contém muito do que Fitzgerald expressará em nome próprio, isento de qualquer artifício ficcional, na sua lúcida, atordoantemente lúcida escavação autobiográfica. The Crack-up é o relato de uma ruína, a lúcida descrição do desmoronamento de uma mente brilhante e de um escritor emblemático da dissipação enlouquecida de uma geração, the lost generation, espremida entre duas guerras devastadoras.

Scott Fitzgerald morreu pouco depois dos quarenta. Não resistiu à experiência devastadora documentada na sua excepcional peça autobiográfica. Sua mulher, Zelda, parceira lendária de mergulho esgotante nos labirintos sedutores da vida, entrou em pane e acabou internada numa clínica psiquiátrica, onde morreu num incêndio. Otto Weininger, acima mencionado, suicidou-se com pouco mais de vinte anos. Seu suicídio foi cercado por circunstâncias patéticas, pois escolheu matar-se na casa onde Beethoven morreu. O fato não é de modo algum acidental, já que cultuava Beethoven como o gênio supremo. Weininger legou à inteligência do seu tempo um livro crucial para Wittgenstein e outras mentes poderosas: Sexo e Caráter. Como observa Cioran, pretexto para estas páginas pouco animadoras, cada um cuida ou precisa cuidar de suportar a vida como pode. Não consigo seguir à vontade, nem de fato, o espírito do seu pessimismo. Acredito ainda que a vida encerra outros valores e possibilidades além da mera e desoladora experiência da suportação. Sem a intenção de pregar ânimo demasiado para o exercício da vida, sei que ela representa bem mais que isso.

Diário - Recife, 30 de novembro 2008.

sábado, 1 de outubro de 2011

Bertrand Russell



Leitor viciado em releitura, como prazerosamente me confesso, volto a incorrer em mais uma: Retratos de Memória e outros ensaios, de Bertrand Russell. Acho que é a terceira ou quarta vez que o releio. Gosto imensamente deste livro de Russell, notadamente dos retratos de memória que dão título à obra. Nestes se evidenciam traços fundamentais da sua personalidade, como é de resto comum na escrita ensaística. A pretexto de falar de outros, ou de matéria alheia, o ensaísta se denuncia e se analisa, ainda quando não o declare. Mas voltarei mais adiante a esses retratos. Quero antes ressaltar outros aspectos da obra. O primeiro que me ocorre é na verdade uma frustração: gostaria de ler esse conjunto de ensaios e artigos na língua nativa do autor. Infelizmente, nunca consegui encontrar esses retratos em edição inglesa. Admirador do estilo penetrante, espirituoso e não raro mordente de Russell, preferiria ler esses escritos liberto da mediação importuna, embora inevitável, de Brenno Silveira, o tradutor. Já que me refiro às qualidades estilísticas de Russell, o melhor é dar a palavra ao próprio, que numa breve passagem, modelo de economia e precisão, exprime de modo incomparável o que não alcanço adequadamente parafrasear. Dando um exemplo de como escrever bem, eis o que diz:
“Tomemos uma frase como a seguinte, que poderia ocorrer numa obra de sociologia: ´As criaturas humanas só se acham completamente isentas de certos padrões de comportamento indesejáveis quando determinados pré-requisitos, não satisfeitos salvo numa pequena porcentagem de casos concretos, se combinam, mediante o concurso fortuito de circunstâncias favoráveis, congênitas ou ambientais, para produzir um indivíduo em quem muitos fatores se afastam, de maneira socialmente vantajosa, da norma geral`. Vejamos se podemos verter essa sentença para a nossa língua. Sugiro a seguinte tradução: ´Todos os homens são patifes, ou pelo menos quase todos. Os homens que não o são devem ter tido uma sorte pouco comum, tanto em seu nascimento quanto em sua educação`.” (p. 192).

A primeira versão, vertida em estilo abominável, é a dominante, quando não imperativa, na produção acadêmica que conheço. Se nossas universidades educassem de fato, deveriam submeter os estudantes, tantos já diplomados como mestres, doutores e outros enfeites, a um treinamento estilístico baseado em textos de Russell, Lewis Coser, Edmund Wilson, Shaw, Isaiah Berlin, Machado de Assis, Mário de Andrade, Gilberto Freyre (estes, Mário e Gilberto, com reservas) Antonio Candido, gente desse calibre. O resto é poeira acadêmica.

Vários ensaios de Russell, sobretudo os de tom mais autobiográfico, acentuam a solidão e isolamento que viveu em momentos cruciais de sua longa e admirável existência. A julgar por certas indicações que fornece – ora implícita, ora explicitamente – a infância e boa parte da juventude foram etapas de solidão atormentada. Na raiz de tudo pulsa surdamente um ambiente familiar de corte puritano e austero. O metro de tais opressões, puritanismo e austeridade, pareceria hoje absolutamente inconcebível se ligeiramente ponderasse o abismo que opõe a infância vitoriana de um rebento da alta aristocracia inglesa à permissividade narcisista do presente.

No ensaio de abertura, intitulado “Adaptação – uma síntese autobiográfica”, ele começa precisamente ressaltando a profunda diferença de valores observável entre o mundo anterior à Primeira Guerra, do qual fazia parte, e o posterior. Se já então era flagrante o abismo entre uma época e outra, o que dizer da vitoriana confrontada com a atual? A eclosão da Guerra, ponto de ruptura entre dois séculos e expressões de vida e mentalidade, impele Russell a uma decisão ética e política de grande risco e coragem: a militância pacifista dentro do país que era então a maior potência mundial. Isso lhe custou não apenas provações excepcionais, como o risco de linchamento e prisão efetiva, mas também um novo mergulho na solidão e isolamento. Como em toda guerra, seja justa ou injusta, a audácia de se pronunciar publicamente como pacifista forçou-o à perda de grandes amizades feitas durante seus anos de formação filosófica e científica em Cambridge.
É de fato extraordinário considerar que interveio dramaticamente na cena política numa idade, próxima dos quarenta, em que muitos estão já se recolhendo ao cultivo de seus jardins. Pois importa salientar que até então sua vida ativa, para não dizer mental, se concentrara em estudos de alta abstração lógica e matemática. Noutras palavras, Russell vivia numa espécie de mundo à parte, imerso numa atmosfera que se rompe bruscamente ao impacto brutal da Primeira Guerra.

Contrariando a experiência corrente, o esgotamento histórico do mundo em que se formou não o converteu em um nostálgico paralisado em face da hostilidade do presente. Sua personalidade combativa e generosa moveu-o para dentro do mundo que tanto o horrorizava numa sucessão de tumultos destrutivos sem paralelo. Mas é de se notar o quanto a apreciação nua e profunda da realidade humana tingiu sua perspectiva com linhas de sombra que ora beiram o desespero, ora a futilidade da condição humana.

Russell empenha-se na ação coletiva produzindo a partir daí uma obra de inspiração social, ou de filosofia social, distanciando-se assim das pesquisas e estudos abstratos que definiram a orientação fundamental da primeira etapa de sua obra. Não penso porém que seu alinhamento militante tenha abolido sua solidão, sequer afetado substancialmente seu individualismo irredutível. Sendo um produto intelectual do liberalismo inglês da era vitoriana, portanto de uma expressão de liberalismo jamais imaginável no Brasil, antes como ainda hoje, e por isso de ordinário incompreendido, Russell encarnou os valores fundamentais do indivíduo. Tal filiação e coerência, levadas ao extremo de suas consequências, concorreu para que se tornasse um dos primeiros e mais impenitentes críticos de Marx e do comunismo numa época em que o conjunto da intelligentsia ocidental era no mínimo simpatizante ou companheira de viagem desta ideologia que tão poderosamente marcou o século vinte.

Isso novamente custou-lhe muito combate, incompreensão e antipatia. Lembro-me de que quando morreu em 1970, plenamente lúcido e militante, apesar dos 98 anos de idade, Luiz Carlos Maciel, então guru supremo da contracultura tupiniquim, saudou-o como o último liberal. O tom do necrológio era de confessada admiração. Não obstante, valia supostamente como um atestado de óbito do liberalismo e da mais alta tradição racionalista. Argumentos ideológicos à parte, basta apreciar superficialmente onde acabaram a contracultura e seu guru tropicalista supremo.
Penso que não seria inexato condensar a obra de filosofia social de Russell no binômio racionalismo e liberalismo. Fiel a essa orientação substancial, procedeu como crítico impenitente e destemido das diversas ideologias e movimentos que tingiram de luta e sangue seu longo processo de vida. Já observei acima sua condição de crítico pioneiro de Marx – além de Hegel, inspirador idealista do materialismo marxista – e do comunismo.

Embora reformador libertário no campo da pedagogia, teve sempre a lucidez de se opor a delírios românticos direta ou indiretamente vinculados ao ideário de Rousseau. Como reformador pedagógico, Russell também amargou muita incompreensão repressiva. Opondo-se à tradição puritana em que se formou, pois sentiu na própria pele os danos que os excessos repressivos produzem, abraçou de início ideais libertários extremos na escola que fundou em parceria com sua segunda mulher. A experiência, todavia, logo lhe revelou o quanto se enganara acerca das virtudes humanas espelhadas no comportamento das crianças que educava. O resultado prático de tal experiência consistiu na adoção de normas pedagógicas baseadas no reconhecimento da necessidade de autoridade e disciplina ou, noutras palavras, na prescrição de limites ao exercício da liberdade. Que pedagogia atual postula e aplica de fato os princípios da autoridade e da disciplina? O que hoje prevalece é a pedagogia orientada para a formação de consumidores servilmente atados aos padrões narcisistas e hedonistas correntes. O mais grave é que essa pedagogia desastrosa é inoculada nas crianças e adolescentes em nome da liberdade e de uma aprendizagem baseada nos métodos do prazer e do mínimo esforço. Olhem dentro e fora das escolas o mundo que estamos criando.

Quanto à sua convicção racionalista, importa antes de tudo sublinhar que jamais concebeu o racionalista como um indivíduo isento de ou avesso à paixão. Circula por aí uma compreensão estreita e deformante do racionalista como um ser sem sangue e paixão. O racionalismo professado por Russell, assim como por todo racionalista autêntico, nada tem a ver com essa representação grosseira. Razão e paixão não são termos excludentes, mas complementares porque integram a substância do humanismo verdadeiro. O diferenciador racionalista desta combinação consiste na prioridade ontológica e cognitiva conferida à razão. A ela cabe a função reitora e esclarecedora da realidade e da experiência humana, que é indissociável da nossa natureza afetiva.

Um aspecto do racionalismo de Russell que no entanto me parece inconsistente, ou inviável, radica na sua presunção, ou convicção, de que seres humanos podem ser reformados mediante artifícios lógico-racionais. Para ser mais exato, há aí antes de tudo uma contradição flagrante, se se considera que ele é um homem muito cético sobre os limites positivos da nossa natureza. Essa contradição recorre em muitos dos seus ensaios, particularmente naqueles de intenção reformadora de nossos hábitos e costumes vinculados a questões como a felicidade, o casamento e a moral, as normas de condução da nossa existência rotineira. Friso esse dado contraditório por observar a frequência de uma argumentação redutível aos termos seguintes: somos infelizes e cruéis porque nos conduzimos de modo irracional, porque somos incapazes de aplicar meios lógicos à desordem da nossa vida afetiva. Depois de diagnosticar esses males humanos aparentemente insanáveis, prescreve normas de conduta baseadas na presunção de que seria possível induzir um quinhão ponderável de lógica à nossa irracionalidade que me parece lamentavelmente constitutiva. Quanto a isso, confesso concordar bem mais com pessimistas como Schopenhauer e Machado de Assis, com céticos como Montaigne, ou pessimistas reformadores como Freud.

Volto à questão do estilo, ou às normas regentes da boa escrita, porque escapou-me um dado que muito prezo ser de concordância com suas indicações. Aludindo à influência que quando muito jovem sofreu de Logan Pearsall Smith, frisa que o conselho mais enérgico deste consistia na recomendação de que sempre reescrevesse seus textos. Embora procurasse obedientemente segui-lo, logo a experiência alertou-o para o fato de que sua primeira redação era sempre a melhor. Sorte dele, que assim foi poupado dos tormentos de uma escrita laboriosa, como o reconhecem e confessam escritores de composição pautada pela letra atribulada. Sorte igualmente minha, que também me contento com a primeira redação. Embora privado de conselho alheio na idade em que precisei de modelos, cedo constatei que digo o que quero ou preciso já na primeira redação. Pena que seja tão preguiçoso, ou tão pouco dotado para produzir obra de real qualidade.

Outro aspecto da obra de Russell com o qual integralmente me identifico é o atinente a sua crítica do nacionalismo. Contemporâneo combatente e horrorizado das duas mais terríveis guerras da história, ambas deflagradas em nome de uma concepção insana de nacionalismo, tinha motivos ideológicos suficientes para hostilizá-lo. Preciso admitir que outros homens tão lúcidos quanto ele os tiveram e todavia adotaram argumentos opostos. Russell acreditava, com absoluta razão, que o nacionalismo constituía uma ideologia insidiosa de hostilidade e luta constante entre os povos. Na medida em que funciona como agente legitimador da agressividade humana, atua como uma força ideológica poderosa demais para ser ignorada por um autêntico aspirante à paz entre as nações, ou como o reformador pedagógico que foi.

Em Retratos de Memória, assim como em outras obras, ele afronta o inimigo. A esse propósito, expõe um argumento lógico e ideológico que adapto para uso de um exemplo próprio. Se alguém afirma que o Brasil tem oito milhões e meio de área territorial, está apenas enunciando um fato objetivo, portanto isento de implicação ideológica. Se todavia altera o enunciado, declarando que a área territorial brasileira é a quinta maior do mundo, salta do terreno dos fatos para o dos enunciados ideológicos. Infelizmente, no tempo em que lutou por reformas pedagógicas e políticas, talvez ainda mais no presente, somos desde crianças treinados pela mídia e pelo sistema educacional a apreender a realidade de acordo com o segundo enunciado, não com o primeiro. Como razoavelmente pretender que as nações do mundo se relacionem de acordo com os ideais pacíficos que contraditoriamente alegamos desejar?

Ideólogos do nacionalismo, atuantes em países periféricos como o Brasil, tendem a nele acentuar traços de uma ideologia positiva, e mesmo necessária para que tais países realizem sua integral autonomia econômica e cultural contra a hegemonia dos países centrais. Este aspecto do nacionalismo não é de fato contemplado por Russell, que aparenta concebê-lo exclusivamente como uma força a serviço da agressão entre os povos. Foi por isso que coerentemente empenhou-se pela criação de organismos reguladores, como a ONU, de composição e funcionamento internacional, ou transcendentes aos limites e interesses de cada nação individualmente considerada. Organismos de natureza semelhante foram efetivamente criados. Mas sabemos que neles prevalecem os argumentos de poder, não raro de força, acionados pelas nações hegemônicas. Em suma, dando um salto para dentro do presente, pouco progredimos no que se refere à condução das disputas e conflitos entre as nações. Talvez o problema tenha de fato se agravado, já que é irrecusável o imenso avanço objetivo dos processos globalizantes, sobretudo na esfera das relações econômicas e comunicacionais. Noutras palavras, enquanto de um lado assistimos à aceleração irreversível de tais processos, de outro persistimos no cultivo de ideais particulares, e especificamente nacionalistas, nos modos de compreender e conceituar as relações entre povos e culturas.

Arremato estas notas improvisadas com um comentário referente aos retratos de memória que emprestam título à obra. Antes de tudo, são o ponto alto deste variado e instrutivo conjunto de ensaios e artigos . Ocupando a parte central do volume, compreendem nove capítulos onde se perfilam intelectuais acadêmicos de Cambridge, com farta matéria ilustrativa da legendária excentricidade britânica, e grandes personalidades do mundo cultural como Shaw, H. G. Wells, George Santayana, Whitehead, Sidney e Beatrice Webb, Joseph Conrad e D. H. Lawrence. Embora sejam todos merecedores de um registro crítico acurado, o que não o é caso destas notas, seleciono o que julgo mais condizente com os limites do meu interesse e a relevância da matéria considerada pelo ensaísta: Conrad. As páginas que Russell lhe dedica são de admiração comovida. Apesar de se confessar admirador da obra de Conrad - da cabeça aos pés um gentleman polonês, nas palavras do próprio Russell, ou um gentleman anglo-polaco, no dizer mais preciso de outros – Russell veio a conhecê-lo tardiamente graças à intermediação de Lady Ottoline Morrell, amiga de ambos.

Abro parêntese oportuno para dedicar algumas palavras a essa dama ilustre das letras inglesas famosa não por dotes literários, mas por privar do convívio privilegiado dos contemporâneos londrinos mais ilustres. Em suma, importa não como autora de uma obra, mas como expressão de uma personalidade. A julgar pelo testemunho de Stephen Spender e Michael Holroyd – biógrafo de Lytton Strachey, do Grupo de Bloomsbury e por conseguinte dos contemporâneos aqui considerados – distinguia-se por ser mais excêntrica que a média da excentricidade inglesa. Mais que amiga de Russell, corrigindo a discreta identificação a que procede no ensaio que comento, foi sua amante. E não uma qualquer, mas aquela que lhe transformou a vida.

Viveram uma relação amorosa tão intensa que Russell, no auge da paixão, lhe escrevia diariamente. Lady Morrell figura como personagem de certo destaque no belo e pungente filme que Christopher Hampton escreveu e dirigiu sobre Carrington, que dá título ao filme, e Lytton Strachey. Numa cena imperdível, de típico humor inglês, ela, interpretada por Penelope Wilton, empenha-se de todos os modos em persuadir Carrington a ceder ao tenaz assédio sexual do pintor Mark Gertler renunciando assim à virgindade. Sendo, ela e Lytton, bem mais velhos que Carrington, este sensatamente observa que ambos viveram drama semelhante quando mais jovens. Lady Morrell retruca (com palavras minhas, pois cito de memória gasta): But that is precisely my point. One must believe in some progress. Num outro filme, Tom and Viv, sobre as relações atormentadas entre T. S. Eliot e sua primeira esposa, Vivienne Haigh-Wood, agravadas pela participação do sedutor Bertrand Russell, Lady Morrell participa discretamente do enredo.
Mas concluo voltando a Conrad. Além de ressaltar o moralismo severo e o conservadorismo político de Conrad, Russell observa que a maioria das suas opiniões eram divergentes. Concordavam porém acerca de um ponto fundamental, que se refere à concepção da vida e do destino humanos. Foi isso o que produziu um vínculo profundo entre ambos. Aqui é o momento em que sei que pela segunda vez devo passar a palavra a Russell, pois não saberia parafraseá-lo à altura do que escreve:
“Senti, embora não saiba se ele teria aceitado tal imagem, que ele achava a vida humana tolerável moralmente como sendo uma caminhada perigosa sobre fina crosta de lava recém arrefecida que poderia, a qualquer momento, partir-se e fazer com que os descuidados mergulhassem em abismos incandescentes. Tinha plena consciência das várias formas de ardente loucura a que os homens estão sujeitos, e era isso que lhe dava uma crença tão profunda na importância da disciplina. Talvez se pudesse dizer que o seu ponto de vista era a antítese do de Rousseau: O homem nasce acorrentado, mas pode libertar-se. Libertar-se, como creio que Conrad o teria dito, não por dar rédeas aos seus impulsos, não por ser casual e descontrolado, mas subjugando seus impulsos exteriores e dirigindo-os para um propósito predominante” (p. 76).

Poucos escritores mergulharam tão profundamente quanto Conrad nos abismos humanos para deles retornarem com essa visão atormentada e estoicamente vivida e refletida. Quem conhece sua obra, notadamente O coração das trevas, sabe o que aqui vai apenas sugerido. Russell com certeza o sabia, pois a experiência apaixonada, mas isenta de complacência, com certeza iluminou também na sua consciência verdades penosas semelhantes àquelas espelhadas na biografia e na obra de Conrad.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Carrington e o Amor Romântico


Começo citando uma definição do famoso grupo de Bloomsbury vazada em termos de humor primoroso: “ They were couples who lived in squares with triangular relationships”. Li-a antes num livro de Michael Holroyd, biógrafo de Lytton Strachey e George Bernard Shaw, com variações que merecem registro: “...all the couples were triangles and lived in squares”. Infelizmente a definição é intraduzível, pois sua engenhosidade e witticism, falta-me termo adequado em português, é fruto precisamente de um jogo de palavras sem correspondente na nossa língua.

O parágrafo acima está longe de qualquer laivo de pedantismo. Comecei por ele por acreditar que condensa muito do que o espectador apreciará num filme como Carrington. Dirigido e escrito por Christopher Hampton, um dos meus roteiristas favoritos, o filme é livremente baseado na biografia de Lytton Strachey escrita por Michael Holroyd. Além de ser um dos membros mais típicos do grupo conhecido como Bloomsbury, por envolver um grupo de intelectuais sofisticados que se reuniam em algumas casas deste bairro onde se situam o Museu Britânico e a Universidade de Londres, Lytton Strachey (Jonathan Pryce) viveu com Carrington (Emma Thompson) uma longa relação amorosa cuja excentricidade ilustra à perfeição alguns dos valores fundamentais adotados pelo grupo. A casa para a qual convergiam os membros do grupo era a da família das irmãs Virginia Woolf e Vanessa. Depois que esta casou com Clive Bell, doravante identificando-se como Vanessa Bell (Janet Mcteer) o grupo passou a frequentar prioritariamente dois endereços: Gordon Square, onde vivia o casal Clive e Vanessa Bell, e Fitzroy Square cujo número 29, antes ocupado por Shaw, tornou-se a residência de Virginia e seu irmão Adrian Stephen.

Dora Carrington conheceu Lytton na casa de campo de Vanessa e Clive Bell. Adotando atitudes deliberadamente masculinas, cabelos cortados de modo sexualmente ambíguo, Lytton confundiu-a à primeira vista com um rapaz e sentiu-se prontamente atraído por ela. As cenas que narram esse encontro inicial transitam do cômico para o embaraçoso desdobrando-se por vias imprevisíveis. Encurtando a história, pois não é minha intenção aborrecer o leitor comprimindo o enredo do filme neste artigo, Carrington, que detestava seu primeiro nome, e Lytton se envolvem numa história amorosa de características e desfecho absolutamente singulares.

O roteiro obedece a um princípio de divisão em sessões temáticas baseadas nos personagens mais importantes da trama: Lytton e Carrington, evidentemente; Mark Gertler (Rufus Sewell), pintor então famoso cujo envolvimento tumultuoso e malogrado com Carrington acabou em ruptura; Rex Partridge (rebatizado Ralph por Lytton e interpretado por Steven Waddington) componente de um dos triângulos fundamentais da vida promíscua de Lytton e Carrington; Gerald Brenan (Samuel West), um dos amantes de Carrington; Ham Spray, a casa onde Carrington e Lytton viveram até a morte deste e o consequente sucídio dela. O título da sessão final é simplesmente Lytton.
O filme é fascinante em muitos sentidos. Destacaria, por exemplo, a forma como recria a atmosfera de convívio das pessoas associadas ao grupo Bloomsbury. Algumas cenas são filmadas em Garsington, casa de campo de Ottoline Morrell (Penelope Wilton) e Philip Morrell, que aparece na sequência em que Lytton comparece ao tribunal que o intimou a depor por defender publicamente uma política pacifista contra a Primeira Guerra. O grande símbolo intelectual desta facção foi Bertrand Russell, por isso apropriadamente citado no filme, que foi condenado à prisão. Ottoline, figura excêntrica e lendária, foi a grande amante de Russell, a que teve o poder de desatar as amarras racionalistas do matemático que acabou se tornando o sátiro supremo da pouco libertina intelectualidade inglesa.

Já que aludi a Russell enfiando na alusão dois termos porejantes de sensualidade, um dos pontos fortes do filme é precisamente a vida sexual promíscua de Carrington e Lytton para muitos ainda hoje chocante, apesar da fachada permissiva de muitos moralistas que aparecem na televisão praticando a mercantilização dos costumes. Intentando ser breve na exposição deste assunto, volto ao parágrafo inicial deste artigo detendo-me nas relações triangulares compreendidas na definição do grupo de Bloomsbury. O filme compreende muitas relações triangulares, para não falar de outras que não saberia como adequadamente designar. A primeira compreende o trio Carrington-Lytton e Mark Gertler; a segunda, Carrington-Lytton e Ralph Partridge; a terceira, Carrington-Ralph e Gerald Brenan; a quarta, Carrington-Ralph e Frances, que mais tarde casou com Ralph; a quinta, Carrington-Lytton e Beacus (Jeremy Northam). Algumas dessas relações seriam quadrangulares, se compreendêssemos a relação amorosa entre Carrington e Lytton como uma relação sexual isenta de relação genital. Dentro desse mesmo critério, outras ainda seriam triangulares. Penso, no caso, nas várias relações homossexuais de Lytton mencionadas ou mesmo explícitas no filme.

Condensada a rede de relações eróticas no parágrafo precedente, cabe agora introduzir o que me parece ser o aspecto mais original do filme. Como explicar que um amor tão excepcional quanto o de Carrington e Lytton tenha perdurado até a morte? À parte o enredo acima esquematicamente descrito, que pode sugerir ao leitor moralmente estreito um filme de sacanagem, Carrington e Lytton tinham uma qualidade rara nas histórias amorosas do seu e do nosso tempo: a que os tornava capazes de aceitar o outro amado tal como é. Esta expressão está demasiado corrompida pelos arroubos românticos de amantes que inconscientemente a repisam de pés e corações juntos: amo você como você é. Isso dura até o momento em que o outro ousa revelar-se tal como é.

Há no filme uma cena na qual Carrington comenta com Lytton os transtornos que lhe causam o amor exigente e possessivo de Gerald Brenan. Depois de justamente ressaltar o mal que os idealistas de qualquer natureza causam ao mundo, Lytton faz uma crítica devastadora e certeira ao amor romântico. Observa, noutras palavras, que as pessoas que se amam passionalmente não devem viver juntas. Se o fazem, ou o amor acaba, corroído pela rotina e outros venenos letais da realidade, ou um amante enlouquece o outro. Penso que aí radica o cerne do filme. O amor que Carrington e Lytton compartilham é singular e a tudo sobrevive, até à frustração dolorosa sofrida por Carrington - que ama e devotadamente aceita amar e servir a um homem incapaz de lhe dar amor sexual, filhos e tudo mais que uma mulher apaixonada deseja – porque ambos se aceitam e se querem como são, ambos acolhem a medida imperfeita do amor humano.

Carrington amou devotadamente Lytton e desejou com ele viver dimensões impossíveis do amor passional, mas era uma mulher de personalidade notável. Ainda jovem, tinha consciência do malogro do casamento, do que há de sórdido e hipócrita no amor casado e corroído pelas engrenagens insidiosas da instituição e da rotina. Há cartas dela, ainda jovem, reveladoras dessa consciência arguta e corajosa. Tinha noção bem crítica do que era o casamento dos seus pais e nunca quis para si própria uma vida de amor convencionalmente casado. O filme, por outro lado, é em muitos momentos revelador da consciência que ambos tinham dos limites e imperfeições do amor. Isso decerto explica o bom senso e o pragmatismo com que negociam e contornam conflitos amorosos previsivelmente comuns na experiência erótica tão promíscua que viveram. Aposto como os moralistas sentimentais se arrepiam diante das cenas em que desatam conflitos decorrentes das demandas e turbulências geradas pelos amantes com quem se envolvem valendo-se de recursos como o egoísmo esclarecido e a franca negociação dos interesses que os românticos encaram como sórdidos e incompatíveis com o amor.

Sabemos que o ideal do amor romântico, de longeva existência cujas raízes modernas remontam a Rousseau e outros românticos da segunda metade do século 18, está vazando água por todos os canos e juntas. No entanto, a maioria das pessoas, sobretudo as mulheres, resiste às evidências gritantes da realidade. Vivendo numa etapa do capitalismo de consumo hedonista que funciona no sentido de promover a realização com frequência ilusória da felicidade compreendida num sentido ferozmente narcisista, continuamos atados à idealização romântica do amor. O clichê que melhor sintetiza esse delírio neurótico da felicidade perseguida através do amor romântico é a frase: encontrar minha alma gêmea. É preciso uma poderosa força de autoengano para acreditar nessa ficção que não resiste a um minuto de análise sensata. Aspirar à fusão com a alma gêmea é claramente aspirar a si próprio, ao amor narcisista que se consome na fantasia de reduzir o outro à nossa imagem e semelhança. Isso me parece assim clamorosamente evidente e todavia milhões de pessoas continuam vivendo embaladas por esse sentimentalismo barato, por essa compreensão absurda e desonesta dos sentimentos amorosos, da intimidade amorosa. Os amores se desmancham como sorvete exposto ao sol dos trópicos, os casamentos se dissolvem em traição, hostilidade e ressentimento, mas continuamos devorando a porcaria sentimental e hipócrita que nos vendem como mercadoria a serviço da felicidade. Basta pensar na produção em cadeia de revistas sentimentais e baratas, na engrenagem da ficção folhetinesca difundida em escala global pela mídia.

Ouça um bom conselho que lhe dou de graça: inútil refugiar-se no amor aos cachorros, gatos e outros objetos de projeção narcisista do amor nutrido pela engrenagem feroz desse sistema reificador das relações amorosas. É inútil porque a dor não passa, a dor produzida pelo amor romântico nutrido por fantasias como o encontro da alma gêmea não cessa de doer. Além disso, nosso destino humano é o outro. Não há aqui nenhuma alusão ao humanismo sentimental, que é de resto uma variante do sentimentalismo desonesto que corrói o amor romântico. Afirmo que nosso destino humano é o outro porque, gostemos ou não, é no convívio, na busca e no encontro e nos desencontros com o outro que realizamos nossa condição humana. Nesse sentido, acho que Carrington poderia ensinar-nos algumas lições preciosas acerca da sobrevivência do amor numa época de individualismo feroz, de narcisismo e consumismo infrenes absolutamente incompatíveis com os ideais de amor que nutriram os três últimos séculos da cultura ocidental.
Recife, 4 de fevereiro de 2011.

sábado, 15 de maio de 2010

A Ética Religiosa da Sexualidade




Bertrand Russell foi provavelmente o filósofo que no decorrer do século XX mais tenazmente combateu a religião. Melhor dizendo, mais combateu o Cristianismo, que é a tradição religiosa hegemônica no Ocidente. Nisso, como em tanto mais, Russell renovou nossa memória de Voltaire, o mais virulento anticlerical dentre os grandes secularistas do Iluminismo. Assistimos hoje a uma renovação da crítica à religião em geral, não apenas ao Cristianismo e suas múltiplas ramificações. A crítica procede de fontes filosóficas e sobretudo científicas. Procede ainda da aceleração dos processos de secularização e racionalização impostos pelo desenvolvimento da ciência e do capitalismo que, tudo convertendo em mercadoria, tende a suprimir o sagrado do horizonte da cultura contemporânea. É certo que o sagrado se refaz noutras formas, o que leva alguns estudiosos a postularem um reencantamento do mundo em oposição a Max Weber, que previu o desencantamento do mundo como consequência dos processos de secularização e racionalização acima mencionados.

Em meio a essas turbulências profundas que tanto desnorteiam nossos referenciais culturais e éticos, o Cristianismo – para não falar das religiões marginais aos processos de modernização do Ocidente – persiste no seu combate à sexualidade. Em meio a uma atmosfera de franca permissividade sexual, sobretudo em países como o Brasil, a religião mobiliza ainda e sempre suas armas enraizadas na tradição, saturada de componentes patriarcais, para vetar a legalização do aborto, o casamento dos padres católicos, a prática sexual independente do casamento, a legitimidade dos direitos da mulher e dos homossexuais etc. Como não tenho nenhuma competência religiosa e muito menos teológica para examinar este problema, atrevo-me a sugerir algumas razões históricas passíveis de lançarem alguma luz sobre os fundamentos da ética sexual adotada pelo Cristianismo.

Em sua monumental História da Filosofia Ocidental, Bertrand Russell dedica um capítulo aos doutores do Catolicismo: Santo Ambrósio, São Jerônimo e Santo Agostinho. Além de contemporâneos, importa ressaltar o fato de que testemunharam a decadência do império romano e as invasões bárbaras que mergulharam o Ocidente em séculos de atraso. Embora vivendo durante uma das mais profundas crises da história da humanidade, todos deram mais ênfase à luta contra o pecado, em particular o pecado da carne, além de velarem pela preservação da virgindade feminina. Mesmo Santo Ambrósio, que se distinguiu antes de tudo na luta travada entre a Igreja e o Estado, conferiu prioridade à ética de natureza sexual.

Como grande historiador da filosofia, Bertrand Russell procura compreender essa realidade dentro das condições próprias à época em que os doutores sagrados do Catolicismo viveram. Ainda assim, não contém o espanto com que narra a obsessão dos santos com os pecados da carne. É interessante salientar que a obsessão com os pecados da carne impõe vetos e punições sobretudo à mulher, que desde o mito da expulsão do Éden é representada como um ser seduzido pela carne, além de representar uma permanente ameaça para o homem. Considerando que o Cristianismo foi forjado em sociedades agrárias de rigorosa orientação patriarcal, nada há de surpreendente no fato que acabo de assinalar.

Santo Agostinho, como Santo Ambrósio e São Jerônimo, coloca o pecado no centro de sua concepção teológica. Quando irrompe a Reforma Protestante, Lutero herda da teologia agostiniana a mesma obsessão com o pecado. Seguem-no nessa tendência todos que lideraram ou seguiram as diferentes seitas de inspiração protestante, sobretudo as puritanas. Bastaria observar, nessa perspectiva, filmes como A Letra Escarlate e As Bruxas de Salem, o primeiro baseado no romance homônimo de Nathaniel Hawthorne, o segundo numa peça de Arthur Miller.

Suponho que a tradição acima grosseiramente esboçada explica a leniência, quando não cumplicidade, com que o Catolicismo, notadamente brasileiro, considera o mal corrente no universo da política, por exemplo. Confesso ter ainda grande dificuldade para compreender tamanha disparidade do ponto de vista racional. Mesmo admitindo-se que uma pessoa peca ao adotar práticas sexuais contrárias a nossas crenças religiosas, o mal em que incorre afeta apenas a ela, ou a quem com ela livremente se envolva. Ora, o mal praticado por um político corrupto, por exemplo, é de consequências incomparavelmente mais graves. O que representa o “pecado” de um homossexual, o “pecado” de uma adúltera, ou de uma mulher que incorre no crime do aborto, comparados aos bandidos que saqueiam cofres públicos privando milhares de brasileiros de serviços sociais necessários à sua sobrevivência, à possibilidade de uma vida elementarmente decente?

Enquanto bandidos e corruptos saqueiam impunemente recursos públicos colossais, as necessidades sociais básicas vivem entregues à ineficiência e à carência que impõem terrível opressão cotidiana a grande parte da população. Em suma, que mal representa para o mundo um “pecador” da carne comparado à corrupção endêmica das práticas políticas que envenenam nossas relações sociais? No entanto, a maior parte dos religiosos deplora e quando pode persegue e pune apenas a quem cede às tentações da carne.

Quando inverto o lugar comum afirmando que a carne é forte, não pretendo com isso implicitamente aprovar a sexualidade infrene dominante na cultura do presente. Meu intento é apenas denunciar o absurdo de qualquer ordenação ética da sexualidade que incorra na insensatez de determinar a supressão de forças que são parte da nossa natureza. Foi com esse propósito que num outro artigo – Uma Passagem pelo Mosteiro - aludi à inoperância de uma ética religiosa orientada para a supressão da sexualidade. Disse e reitero que isso é pura perda de tempo. Toda a história da humanidade, mesmo nos períodos de mais profunda e contrita religiosidade, testemunha a presença de nossa energia libidinal que, como escrevi, pode ser em certo grau reprimida, noutro sublimada, mas nunca suprimida.