terça-feira, 29 de março de 2011

Capitalismo à Brasileira




Declaro que este artigo é antes de tudo um desabafo, um testemunho de indignação. Portanto, advirto de saída o leitor acerca da disposição subjetiva com que o escrevo. Isso evidentemente não me autoriza a fechar os olhos para fatos imperativos da realidade. Sendo assim, começo reconhecendo algumas verdades óbvias: os avanços econômicos decorrentes dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva. O Brasil avançou em muita coisa e a massa sofrida e oprimida tem raspado no prato raso os despojos dos banquetes da nossa impiedosa camada privilegiada da qual, aliás, sou beneficiário menor. Indo além do prato raso, o povão passou a ter acesso a outro patamar de consumo. Longe de mim, portanto, negar estes e outros fatos positivos que pontuam o melhor do Brasil no decorrer dos últimos 16 anos.

Meu assunto é outro. Apesar dos avanços acima grosseiramente pincelados, nossas instituições fundamentais continuam muito distantes do padrão de civilidade, de respeito à cidadania que prezaria reconhecer como parte substancial da nossa sociedade. Escrevo este artigo em tom de desabafo indignado porque sou todos os dias de modos variáveis agredido no exercício dos meus direitos. As operadoras de telefonia, poderosas corporações econômicas que acumulam lucros fabulosos no Brasil, abusam dos meus direitos mais elementares. É inútil brigar com elas ou recorrer à Anatel, instituição cujo dever é fiscalizar as operadoras. Nos aeroportos sou igualmente vítima de abusos inconcebíveis numa sociedade efetivamente democrática. Também aqui é inútil recorrer às instituições encarregadas de fiscalizar a qualidade dos serviços prestados ao usuário.

Já que empreguei o termo qualidade, convém frisar o sentido correntemente atribuído à expressão “qualidade de vida”. Para começar, isso é antes um slogan publicitário do que uma realidade social. Quando de ordinário falamos de qualidade de vida, na mídia e além dela, estamos falando de acesso a bens de consumo conspícuo. Tudo no capitalismo real instituído neste país parece resumir-se a operações de guichê e cartão de consumo. Como falar de qualidade de vida num país onde as instituições socializadoras fundamentais não funcionam? Trocando em miúdos, quem de fato acredita na qualidade real das nossas escolas, não excluo a maioria das privadas, nas instituições religiosas, na polícia, nas instituições estatais responsáveis pelas políticas públicas, nos órgãos estatais que supostamente existem para controlar e conter os abusos impostos pelos poderosos à maioria de mãos atadas?

Por volta de 1880 Joaquim Nabuco escreveu que a escravidão permaneceria viva durante muito tempo nas nossas relações sociais. De fato, logo depois veio a abolição formal da escravidão, já que a massa dos escravos foi mantida nos termos da sua condição precedente, e desde então muita água rolou sob as pontes – também sobre, como estamos cansados de ver e sofrer nas nossas cidades grandes e pequenas depois de uma hora de chuva. Bem mais de um século mais tarde, a previsão lúcida de Joaquim Nabuco está ainda viva no cotidiano da nossa realidade social. O Brasil tornou-se bem mais complexo, tão complexo que definitivamente escorre entre as frestas da rede na qual amadores e explicadores profissionais tentam retê-lo e decifrá-lo. Temos muito do que de tecnologicamente mais avançado existe nos países do capitalismo central, mas tudo isso convive ombro a ombro com os veios profundos das nossas piores tradições.

Desviando o olhar deste artigo que digito ao pé de minha janela, vislumbro lá fora a paisagem potente dos arranha-céus que se elevam cada vez mais aceleradamente tangidos pela vitalidade da economia brasileira. Mas o operário da construção civil continua caindo dos andaimes pingentes, como diz a canção de Chico Buarque, mourejando como um servo e morando provisoriamente nos prédios que constrói para usufruto da classe média. Quando o prédio fica pronto, ele põe a trouxa nas costas como um cigano espoliado na linha de produção do capitalismo à brasileira.

O Estado é o maior vilão do capitalismo à brasileira. Desde suas origens já bem remotas, ele existe como Estado patrimonial, isto é, como um Estado a serviço de uma casta privilegiada. Vem governo e sai governo, não importa de que tendência ideológica, e no entanto nossos vícios profundos persistem. O Estado funciona antes de tudo para assegurar a manutenção de privilégios, a política da corrupção endêmica, a impunidade cinicamente praticada e encobertada, quando não justificada num tom somente concebível num país onde a lei é coisa para inglês ver, como reza a vetusta e bem viva tradição farsesca da democracia à brasileira. A era PSDB-PT, que governou o país durante os últimos 16 anos, não alterou nem ousou alterar a substância dessa realidade. As reformas fundamentais necessárias à instituição de um Estado efetivamente democrático continuam existindo apenas como conversa da boca pra fora, como foguetório de campanha eleitoral.

Como o povo no Brasil é no geral politicamente desorganizado ou apático, não faltou quem ao longo da nossa história apostasse no Estado como instrumento fundamental de reforma, quando não de revolução social. Apesar das tentativas e abalos observáveis na nossa história política, a essência do Estado patrimonial se mantém. Raimundo Faoro, melhor que qualquer outro, estudou seus mecanismos de enraizamento e manutenção. Quanto ao pensamento de esquerda, deu muitas vezes com os burros n´água quando tentou realizar revoluções e mesmo reformas profundas a partir dele.

E o que dizer do povo, esse nosso povo sofrido que tanto ama futebol, carnaval e samba? Pelo visto, sua capacidade de organização respeitada e até temível se esgota nos itens que acabo de enumerar. Ai do Corinthians se for cuspido da Libertadores ou rebaixado para a segunda divisão do campeonato brasileiro. Ai da nossa capenga estabilidade social sem a energia caótica e anômica do carnaval, que agora espicha o calendário convencional a seu gosto e capricho. Ai do samba se não levar o povão para as ruas e não balançar as cadeiras sensuais e suadas da mulata assanhada.

Quanto à política... bem, esta o povo continua deixando-a nas mãos dos políticos, que compreensivelmente esfregam as mãos de contentamento. Portanto, longe de mim o romantismo populista de Darcy Ribeiro, que com uma mão debitava toda nossa fabulosa dívida histórica às elites canalhas, enquanto com a outra inocentava o povão vítima, tão lindo e sensual no paraíso da sua mestiçagem. Dizem os otimistas que a longo prazo tudo isso mudará. Suponho que, além de otimistas, sejam eternos. Os mortais como eu têm perfeita consciência de que a longo prazo todos estaremos mortos.
Recife, 24 de fevereiro de 2011.

sexta-feira, 25 de março de 2011

A Utopia Existe




Sabem os leitores cultos, ou meros ratos de dicionário etimológico, que utopia quer dizer lugar nenhum ou lugar inexistente. A maior evidência da nossa natureza entranhadamente descontente, ou possuída pela miragem do irrealizável, consiste no fato de havermos convertido a utopia no mais extraordinário, insaciável e despótico capítulo da história das ideias. Nela inspirados, por ela cegamente movidos, milhões de seres humanos converteram um sonho, o lugar inexistente ou a sociedade utópica, numa assombrosa corrente de ideias, projeções imaginárias e fantasias infrenes. Mais poderoso e inquietante do que tudo isso é o fato de que essas maquinações humanas se desataram do reino das ideias e da imaginação para se converterem numa outra ordem de realidade ou expressão histórica. Quero dizer, passaram da ordem das ideias e da imaginação para a dos fatos.

O primeiro marco dessa epopeia que viso erraticamente esboçar é a Utopia de Thomas Morus, que aliás perdeu literalmente a cabeça. Não por conceber a sua utopia, marco nominal desse fantasma perene que assombra nossa passagem pelo mundo, mas por se opor, como autoridade suprema da religião na Inglaterra do seu tempo, às maquinações políticas e amorosas do soberano Henrique VIII. Aliás, corrigindo a tempo minha ignorância, antes de Thomas Morus houve Platão, Santo Agostinho e outros utópicos e utopistas.

Sendo antes de tudo uma projeção imaginária, a utopia encerra duas características fundamentais. Em primeiro lugar, constitui uma crítica do presente, não raro de forma críptica ou velada, um libelo contra as injustiças da sociedade enquanto tal. Impedida de realizar-se como crítica nua e crua da tirania inscrita na face do presente, ela se dissimula sob as vestes imaginárias da ficção projetando em um lugar inexistente, a utopia, o mundo que sonhamos e por isso constitui a negação do mundo real que combatemos. Dando provas de que no século 20 o mar não estava mesmo para peixe, muito menos para miragens paradisíacas, nele emergiram, na contracorrente do totalitarismo, várias obras que inverteram o gênero utópico fundando na literatura a distopia ou antiutopia. Bastaria lembrar Zamiatin, Arthur Koestler, Aldous Huxley e George Orwell.

O mundo que sonhamos, esse produzido pela imaginação utópica, constitui, noutras palavras, a segunda característica fundamental do pensamento utópico. Assim, a crítica do presente, ou do real enquanto dado opressivo e empírico, se enlaça à projeção do mundo impossível ou inexistente. Sucede que nossa natureza, cindida entre a realidade e a imaginação, que são de resto indissociáveis, daí distingui-las antes de tudo por razões de conveniência argumentativa, nossa natureza, dizia eu, é possuída pelo desejo de converter a utopia em realidade.

Quando descamba para o reino da política a utopia finda convertendo-se em tirania sanguinária. Em nome dos mais belos e impossíveis ideais, ela se instala como utopia e acaba como terror instituído sob as vestes dos mais belos ideais concebidos pela imaginação humana. Basta lembrar a Revolução Francesa, inspirada pela trindade Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Quantas cabeças não rolaram em nome desses bens inatingíveis, quanto sangue a guilhotina não verteu no reino do terror que se dizia libertário e fundador da utopia? Mutatis mutandis, o enredo se repete na Revolução Russa de 1917. O mais impressionante é constatar o quanto nosso desejo da utopia é sempre mais poderoso do que a realidade, cujos fatos logo comprovam o quanto a política inspirada por ideais utópicos logo se corrompe em tirania e terror. Os próprios intelectuais, suposta consciência crítica da sociedade, embarcam servilmente na defesa da tirania exercida em nome da utopia. Quantos durante décadas não prosseguiram louvando e lutando pela Revolução Russa, Stálin e outros “benfeitores” marxistas da humanidade? Utopia, quantas mentiras não inspiraste?

Catástrofes semelhantes ocorreram quando a utopia nutrida pela religião contaminou-se da política, isto é, aliou-se ao Estado para realizar neste mundo, ou reino da imanência, ideais utópicos que antes convêm ao reino da transcendência. Trocando em miúdos, ao céu ou nossas delirantes projeções do céu. Aliás, bem que podemos nesse sentido dizer que o marxismo não passou de religião secularizada. Como bem observou Chesterton, quando paramos de acreditar em Deus, passamos a acreditar em qualquer coisa.

Há quem acredite em Papai Noel e Xuxa; há quem acredite numa revolução existencial a cada passagem de ano, embora nossas vidas individuais continuem as mesmas, quando não piores. O processo de acelerada secularização da cultura e da religião decisivamente concorreu para que as pessoas passassem a acreditar em Deus apenas como uma mercadoria rentável. Outra consequência da secularização ou racionalização da cultura se espelha na deificação do artista pop e do jogador de futebol. Diante de tudo isso, parece-me insensato, ou pura perda de tempo, querer persuadir as pessoas de que a utopia não existe, de que suas maquinações imaginárias, que vão de Deus ao Shopping Center como expressão do paraíso mercadológico, não passam de delírio facilmente desmontável pela evidência objetiva da realidade, ou pelo discurso racionalista.

É evidente que aludo agora à utopia num sentido bem amplo, confundindo-a assim com qualquer tipo de invenção imaginária carente de comprovação empírica. Tomando-a nestes termos, reitero minha afirmação: a utopia existe. Parece-me pura perda de tempo tentar convencer os carentes de mito e fantasia, de ilusão e esperança, de que a realidade se esgota nos limites do comprovável, do aferível, do que se pode objetivamente assinalar no âmbito da nossa experiência.

A utopia existe e muita gente decerto seria incapaz de suportar a realidade privada desse tipo de projeção imaginária. O que pragmaticamente procuro imaginar é uma expressão de ordem utópica dissociada de qualquer poder político. Nesse sentido, é fundamental preservar a distinção entre Estado e Igreja, conquista da modernidade que felizmente nos põe a salvo da insanidade que, invocando a utopia, aspira a fundar no século a sociedade ideal. A experiência histórica comprova que esse foi o caminho mais curto para a realização do inferno neste mundo. Aliás, não sei de outro.
Encerro o artigo com a transcrição parcial de um diálogo travado pelos dois personagens de um conto meu cujo título é “A nudez do escritor tímido”:
“É possível tolerar nossa vida individual regida pela dúvida?
Penso que sim. A aprendizagem é longa e tormentosa, mas alguns se libertam da rede de crenças ilusórias que escoram nosso medo e o vazio flutuando à borda do abismo. Não esqueça de que as mais terríveis atrocidades produzidas pela história humana são fruto de alguma crença, alguma convicção cega e poderosa, algum sistema de fé. A crença, transformadora ou reativa, convertida em energia de ação social, tem sido a grande geradora de devastação da humanidade e do mundo natural. O mal que causei a este mundo derivou quase sempre do impulso vindo de alguma fé consciente ou obscura. Seríamos mais livres e menos destrutivos se aprendêssemos o dom da dúvida liberadora”.
Recife, 1 de janeiro de 2011.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Teoria da Nova Elite




Minha identidade?
Sou pós-moderno, narcisista, consumista e high-tech. Ah, também sou rico, ideólogo intelectual da nova elite.

Religião?
Tenho a minha, que misturo sem preconceito com tudo que me torne mais livre, resolvido e saudável. Acho que religião é hoje um investimento e é bom que assim seja. Quem hoje pensaria em guerra religiosa no Ocidente? Só se fosse por acidente. Por que eu teria pudor de traduzir Deus nos termos de minha ética utilitária? As novas religiões, os pastores, hábeis investidores no mercado da fé, também as religiões tradicionais, todos estão adotando esse novo perfil religioso. Estou apenas remando com a corrente.

Preconceito?
Corta essa, galera. Nenhum. Defendo a diferença, todo tipo de diferença. Por isso estou com a diferença da mulher, sempre oprimida nessa sociedade machista, com a diferença gay, com a igualdade de todos. Logo, estou também com a igualdade racial e a liberdade religiosa.

Felicidade?
Totalmente. Como o Estado brasileiro é o Estado patrão, o Estado provedor, o Estado mãe das tetas fartas, concordo que a felicidade deve ser objeto de uma política de Estado. Melhor dizendo, é dever do Estado garantir a felicidade de todos. Afinal, não é pra isso que vivemos no país de todos?

Autoestima?
É a base de tudo, meu. Acho que o publicitário que levantou essa bola trouxe uma contribuição fundamental para a felicidade na sociedade das massas, a realização da felicidade nas condições do capitalismo competitivo em que passamos a viver. Não compreendo a modéstia desses publicitários geniais que tramam nos seus gabinetes coisas geniais como o princípio da autoestima, difundem isso no mercado e no entanto se escondem. Sem autoestima não chegamos a lugar nenhum. Como intelectual e escritor, acredito sempre em mim consciente de que a opinião alheia, sobretudo a dos meus pares, é a fonte do meu sucesso, da minha realização profissional. A primeira coisa que faço, quando acordo todos os dias, é me olhar no espelho e dizer para mim próprio: cara, você é a pessoa mais genial do mundo. Você é um vencedor. Depois disso vou para a luta certo de que transformarei todas as minhas ambições em realidade.

Ambições?
São o que mais tenho. Tenho tantas, meu, que preciso tomar umas drogas pra nocautear a insônia. Quero tudo e mais alguma coisa. Como intelectual, apareço literalmente em todas as feiras literárias. Se a literatura importa? Claro que sim, contanto que eu apareça. Não existe coisa mais fácil do que me achar numa feira literária. Basta ir aonde estão as câmeras, os escritores da moda, os astros da mídia e sobretudo os cantores, que são o verdadeiro foco das feiras. Portanto, melhor estar perto de uma guitarra ou violão do que perto de um livro ou de um laptop.

Ética intelectual?
Óbvio. Um intelectual que se preze não pode prescindir da ética. Quando resenho um livro, por exemplo, escolho uma obra sempre para falar bem. Escolho o autor vivo a quem tenho acesso e portanto pode também me promover. Qual o sentido de louvar os clássicos, todos há muito bem enterrados e portanto inoperantes no mercado? Que lucro posso eu esperar de Shakespeare, Machado de Assis, Conrad, Italo Svevo, Auden...? Deixo essa função para os críticos acadêmicos, que apostam sempre no certo, no já estabelecido. Com meu editor - de editora, blog ou periódico - procuro sempre concordar, sobretudo quando discordo. Como aparecer polemizando com os companheiros de profissão, detonando uma obra ou um autor que podem me garantir muitos rendimentos futuros?

Se sofro do tédio da controvérsia, como Machado de Assis? Depende. Se for controvérsia para me promover, fique certo de que entrarei na luta sem transigir. A controvérsia intelectual ou a polêmica literária importam na medida em que rendem dividendos publicitários. O público não está interessado no debate de ideias, mas sim nas pessoas que debatem as ideias. Além disso, não existe nada mais relativo do que gosto literário. Assim, não há como determinar se Machado de Assis é melhor do que Paulo Coelho. É tudo questão de gosto ou opinião pessoal. O que afinal importa é o rendimento promocional da polêmica. Já imaginou o que não me renderia uma polêmica com Chico Buarque ou Caetano Veloso, com Paulo Coelho ou Jô Soares?

Política?
É claro que tenho convicções políticas. Só que não são mais aquelas da militância tradicional e antiquada. Não aguento mais esse papo weberiano de ética da responsabilidade, muito menos ética de convicção. Quero dizer, devemos adotar a ética da responsabilidade na medida em que ela garanta resultados traduzíveis em fonte de renda. O negócio é calcular resultado, a ética do cálculo e benefício. A ética careta malha Lula e o PT somente porque souberam astutamente se apropriar das práticas dos grupos políticos tradicionais. A ética careta ataca Lula simplesmente porque Lulinha, símbolo de uma nova elite, enriqueceu em poucos anos, dizem que adotando meios ilícitos. Ora, para mim isso é antes de tudo prova de competência. Ataca ainda o PT e seus aliados simplesmente porque blindaram Lula quando pipocaram escândalos que, vemos agora, deram em nada. A população, o povo brasileiro que precisa de trabalho e renda, que quer legitimamente acesso ao mercado, o povo não dá a mínima para isso. Basta observar a aprovação de Lula sem precedente em toda a nossa história política. Concluindo, os resultados estão aí à vista de quem queira ver. A ética careta e ideologicamente anacrônica não vê porque é presa do preconceito contra um presidente que veio lá de baixo e não passou pela universidade. E daí? A universidade está cheia de gente que não sabe nada do que Lula sabe. Acima de tudo, não é capaz de ganhar nada do que Lula ganhou. O que importa é o resultado, o dindim no bolso.

Se com Tiririca pior fica?
É uma. Pensei que não ficaria, mas pode ficar. E daí? Se ficar pior, não será por culpa dele, muito menos minha.

Uma política para os pobres?
Por que vou me preocupar com isso? Aliás, ela já existe desde que Lula transformou o Brasil no país de todos. No mais, deixe que os pobres cuidem de sua pobreza, que não é em nenhum sentido parte da minha responsabilidade. Se fosse, criaria uma ONG para faturar ainda mais, como faz muita gente de sucesso que conheço. Catador de lixo é investimento, meu. Um conselho que te dou de graça: invista numa ONG chamada Salvador do Lixeiro. Esse papo piedoso sobre a pobreza, a desigualdade existente no Brasil, não passa de populismo da velha esquerda. Aliás, como bem disse Joãozinho Trinta, quem gosta de pobre é intelectual. Ou não foi isso que ele disse? Ou não foi ele quem disse? Tenho coisa mais importante para fazer e pensar.

Se sou um rebelde sem causa?
Claro que não, meu. Tenho causa, sim. Se escolho, e estou sempre exercendo minha liberdade de escolha, isso é já uma evidência de que minha rebeldia tem causa. Escolho minha grife. Escolho meu carro. Escolho entre a Skol e a Antarctica. Escolho minha gata não só por amor, mas também por saber que ela corresponde a meus ideais de mercado e afirmação da minha identidade. É no mercado que a gente encontra a alma gêmea e assim promove a síntese entre a tradição romântica e a bolsa de valores. Escolho entre Messi e Kaká. Escolho meu ídolo do Big Brother Brasil baseado na política promotora da diferença, que é a minha praia. Escolho a telenovela que promove a diferença. Não vou sair por aí beijando homem, meu, mas defendo a telenovela que mostra homem beijando homem. Não gosto dos negros que moram no meu condomínio nem acho que empregada doméstica deva usar elevador social, mas defendo o direito de eles ocuparem seu lugar na sociedade. Como já observei, o país é de todos. Taí uma frase que eu gostaria de ter criado. Você não imagina o quanto invejo o publicitário que bolou essa frase.

O ser que mais amo?
São dois, não um: Bill Gates e Lulinha, meus cãezinhos adorados. Não sei de dito mais verdadeiro que este: o cão é o melhor amigo do homem. Entre nós, eu e eles, não existe concorrência, conflito de opinião, choque entre vontades, a guerra que a todo instante decretamos entre nós, humanos, em nome do princípio da liberdade de cada um. Se as pessoas fossem como Bill Gates e Lulinha, o mundo seria o paraíso.

Se escolho ser eu?
Casseta e planeta! Claro que escolho ser eu e sei quem sou. Sou o que o espelho reflete. Já imaginou a vida de um intelectual como Nietzsche, por exemplo? Lembra como acabou, onde acabou? Quero é cuidar de mim, meu. Ser eu é ser saudável. Só me falta agora uma coisa: o dinheiro da entrevista que previamente acertamos. Vamos nessa.
Recife, 14 de janeiro de 2011.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Nacional e Universal


Começo este breve ensaio enunciando a contradição relativa ao movimento dialético que permeia toda a nossa história cultural baseada na antinomia do nacional e do universal. Entendo que esta perspectiva teórica é fundamental para que adequadamente se coloquem os problemas atinentes à nossa formação cultural. Aplicável ao conjunto dessa formação, ela me interessa, em particular, na consideração dos dois movimentos culturais decisivos da nossa cultura no século vinte: o modernismo paulista e o regionalismo recifense. Retomo portanto essa contradição para novamente conferir alguma atenção a esses movimentos e a seus dois líderes incontestes: Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Penso que Antonio Candido é o estudioso que melhor empregou esse esquema dialético na análise da nossa literatura compreendida em suas conexões essenciais com o contexto histórico-cultural. Seu emprego do método dialético consiste na função integradora, não excludente, dos polos contraditórios implicados no processo da análise. Nos termos que importam para este ensaio, os pólos compreendidos na relação entre o nacional e o universal não se relacionam de modo excludente, mas sim integrador. É por compreender a relação deste modo que represento o desdobramento histórico do modernismo e do regionalismo como forças que se negam continuamente ao mesmo tempo em que se alimentam manifestando-se de forma indissociável.

Não haveria modernismo paulista sem os fecundos empréstimos culturais provenientes dos movimentos da vanguarda européia. A própria inflexão nacionalista do movimento muito deve à contribuição de um europeu e vanguardista como Blaise Cendrars. Toda a teorização estética e cultural de Mário de Andrade, assim como de Gilberto Freyre, é em boa medida tributária do contato que estabeleceram com outras fontes de cultura e estudiosos que confessadamente os influenciaram. É por adotar este ponto de vista que discordo da tradição nacionalista ou regionalista ciosa de conceber nossa história cultural como autônoma, como explicável baseada apenas em fatores dissociados e até hostis a nossos vínculos com a cultura ocidental. O que pressuponho como atitude fundamental de análise das culturas é a interdependência necessária entre elas observável.
Ainda hoje, não obstante o acelerado processo de globalização cultural em que vivemos, há quem pretenda sustentável uma noção de nacionalismo dissociada do intercâmbio entre valores culturais. Há ainda quem critique a importação de ideias, ou a imitação cultural, como pura e simples subserviência de povo colonizado. Um dos mais lúcidos estudiosos da história das ideias no Brasil há muitos anos corretamente assinalou que
“A inteligência brasileira formou-se pelo mesmo processo que plasmou o povo brasileiro, isto é, graças às contribuições estrangeiras. Eduardo Prado diz que ´escrever a história do Brasil é escrever a história da imigração neste país`. Escrever a história de suas ideias é, também, descrever as aventuras das ideias estrangeiras no Brasil. Nesse lento processo de formação intelectual é natural que tenha havido e que haja imitação. Era compreensível que imitássemos os colonizadores. Estes, porém, ao exercerem a sua ação, sofreram também a influência das condições novas que o meio lhes oferecia e aí já se encontra uma primeira modificação do modelo original europeu. Certos autores, muito ciosos de originalidade, costumam denunciar a imitação como a fonte dos nossos defeitos e erros. É mister, porém, não esquecer que a imitação é um fenômeno social natural e universal”. (Cruz Costa. Contribuição à História das Idéias no Brasil. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 6).
Acredito que o melhor da obra dos nossos escritores expressa a interação fecunda dos empréstimos culturais. Além disso, procuro demonstrar que o nacionalismo adotado por Mário de Andrade está longe de algumas interpretações redutoras tendentes a figurá-lo como um nacionalista avesso à cultura universal. O próprio herói Macunaíma, símbolo maior do nosso nacionalismo literário e cultural, foi descoberto graças aos vínculos profundos que Mário de Andrade estabeleceu com a cultura alemã. Lido por muitos como sendo pura e simplesmente o símbolo cultural do brasileiro, realização suprema do nosso Modernismo nacionalista, Macunaíma é todavia muito mais complexo. No estudo crítico que reputo o melhor e o mais agudo já produzido sobre este herói, argumenta Gilda de Mello e Souza precisamente no sentido de ressaltar o sentido universalista ou europeu da obra. Este sentido está de resto explícito no título do seu estudo, composto de um binômio, tupi e alaúde, empregado por Mário de Andrade num poema de Paulicéia Desvairada para traduzir sua identidade bifronte, isto é, nativa e européia. Como ela certeiramente observa,
“... o núcleo central de Macunaíma, não obstante os mascaramentos de toda a ordem que despistam ininterruptamente o leitor, permanece europeu, ou, mais exatamente, universal, e se liga ao tema eterno da busca do objeto mágico, de que a Demanda do Santo Graal representa no Ocidente a realização mais perfeita.” (Ver Gilda Mello e Souza. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma, p. 92)
O nacionalismo de Mário de Andrade é, por conseguinte, universalista. Dizendo o mesmo de um outro modo, observou Anatol Rosenfeld ser supra-regional e cosmopolita. Segundo este crítico, Mário de Andrade buscava dentro da sua concepção de nacionalismo isento de etnocentrismos, assim como Herder, reconhecido como o pai do Nacionalismo Cultural, “...a autodefinição nacional no pluralismo positivo das culturas”.
Levando em consideração a amplitude dos estudos já consagrados às obras de Mário de Andrade e Gilberto Freyre, é curioso que tão pouco ou quase nada se tenha feito no sentido de associá-los de modo mais franco à obra de Herder. Dado o papel fundador que este desempenha na história do nacionalismo cultural, caberia aqui esboçar as linhas profundas que o aproximam sobretudo de Mário de Andrade. Como salienta Hans Kohn, o nacionalismo moderno surge no século 18 diretamente associado à democracia e ao industrialismo. Seu advento representa o primeiro momento da história de alcance propriamente universal. ( Hans Kohn, Historia Del Nacionalismo). Quanto ao desenvolvimento particular do nacionalismo cultural, observa que este prevalece nos países carentes de soberania política e culturalmente dependentes. Isso torna historicamente compreensível o fato de a Alemanha da segunda metade do século 18, politicamente retalhada em inúmeros principados e culturalmente dependente da França, distinguir-se como matriz dessa fecunda tradição identificada como nacionalismo cultural. É portanto nesse contexto que se materializa a obra de Herder, herói intelectual de um dos maiores estudiosos das idéias no século 20, Isaiah Berlin.

Houve já quem identificasse Herder como o pai do nacionalismo cultural, tamanha é a sua importância na história das ideias atinentes à tradição romântica e ao papel do intelectual como agente dos processos de autonomia cultural nos países dependentes. Se é fato que concebia o Estado como uma nação com caráter nacional, entendia isso como um meio orientado para um fim universalista. A isso caberia acrescentar que, de acordo com Isaiah Berlin, o nacionalismo proposto por Herder é cultural, não político, isto é, tem como fundamento os grupos humanos naturais, baseados nos vínculos de sangue, vizinhança, valores empíricos, mas mutáveis, constituintes do que enfim podemos conceber como a cultura viva de um povo. Entendendo o nacionalismo nestes termos, opõe-se a toda forma de dominação exercida em nome de qualquer espírito de conquista política. Por isso coerentemente rejeita o ideal do conquistador, seja o antigo, como Alexandre Magno, seja o contemporâneo, como Frederico o Grande, ou os pósteros, incluídos os que invocaram os ideais do nacionalismo cultural para dominarem outros povos e culturas.

Importa reter criteriosamente esse traço do nacionalismo originário de Herder porque, dentro de suas múltiplas manifestações históricas, ele foi apropriado por correntes políticas de extrema-direita inspiradas pela dominação guerreira e a destruição de particularidades, nacionais ou étnicas, qualificadas como inferiores ou degeneradas. Em suma, como objeto de supressão, como alteridade justificadora de operações de guerra e conquista. O exemplo mais devastador desse tipo de nacionalismo é naturalmente o nazismo. Faço aqui esta breve menção, cuidando de ressaltar a distinção necessária observável entre ele e o nacionalismo cultural proposto por Herder, para que não se perca de vista o fato de que há muitos modos e formas de apropriação do nacionalismo.

Visando melhor traduzir a concepção de nacionalismo cultural de Herder, lembraria a metáfora naturalista que propõe. Afirma, em suma, que as culturas são como um jardim composto de muitas flores, cada uma dotada de características próprias e irredutíveis (cf. Isaiah Berlin, Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. O ensaio que tomo como referência é Herder e o Iluminismo, pp. 379-446). É impressionante observar-se a equivalência que guarda com a metáfora musical proposta por Mário de Andrade ao reivindicar o nacionalismo cultural brasileiro como fundamento da nossa universalidade ainda irrealizada. Inspirado por essa mesma noção de nacionalismo cujo fim seria o universal, valeu-se Mário de Andrade de uma metáfora musical com o propósito de ressaltar que o Brasil somente se realizaria como cultura própria quando fosse capaz de contribuir com seu acorde singular, um acorde exclusivamente brasileiro, para o concerto das nações civilizadas:
“De que maneira nós podemos concorrer prá grandeza da humanidade? É sendo franceses ou alemães? Não, porque isso já está na civilização. O nosso contingente tem de ser brasileiro. O dia em que nós formos inteiramente brasileiros e só brasileiros a humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas. As raças são acordes musicais. Um é elegante, discreto, cético. Outro é lírico, sentimental, místico e desordenado. Outro é áspero, sensual, cheio de lembranças. Outro é tímido, humorista e hipócrita. Quando realizarmos o nosso acorde, então seremos usados na harmonia da civilização.” (A Lição do Amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 15).
Ao propor acima sua noção de nacionalismo, Mário de Andrade acentua nitidamente a compatibilidade que julga estar contida na relação entre o nacional e o universal. Seu correspondente – Drummond, no caso – como tantos estudiosos que consideram este problema, tende a identificar oposição ou contradição onde, segundo o entendimento de Mário de Andrade e de Herder, há perfeita congruência, já que uma coisa pressupõe a outra: o universal é irrealizável sem o nacional que para ele converge, assim como o nacional se converterá em exotismo, e no limite xenofobia, se não visar o universal como seu fim. Melhor devolver a palavra a Mário de Andrade que assim corrige Drummond:
“...você fala em ´apertado dilema: nacionalismo ou universalismo. O nacionalismo convém às massas, o universalismo convém às elites`. Tudo errado. Primeiro: não existe essa oposição entre nacionalismo e universalismo. O que há é mau nacionalismo: o Brasil pros brasileiros – ou regionalismo exótico. Nacionalismo quer simplesmente dizer: ser nacional. O que mais simplesmente ainda significa: Ser. Ninguém que seja verdadeiramente, isto é, viva, se relacione com o seu passado, com as suas necessidades imediatas práticas e espirituais, se relacione com o meio e com a terra, com a família etc., ninguém que seja verdadeiramente deixará de ser nacional.”
Tanto Herder quanto Mário de Andrade, confirmando sua concepção supra-regional e universalista do nacionalismo, tiveram fina sensibilidade para a apreensão e o entendimento crítico do singular. Sendo assim, não apenas estudaram e teorizaram apaixonadamente as culturas particulares de que faziam parte, mas toda expressão singular de cultura. Basta observar, por exemplo, o zelo e curiosidade empática com que Herder se debruça sobre culturas de todos os quadrantes, das africanas às indígenas, das terras desérticas às regiões frias, assim como das diferentes épocas, indo das mais antigas às contemporâneas. (Cf. Herder. Idées sur la philosophie de l´histoire de l´humanité. Ver em particular Livre VII, pp. 45-82).

No que se refere ao brasileiro, estendeu seu espírito de pesquisador por todo o Brasil, como o demonstram suas viagens etnográficas ao Norte e Nordeste, além dos seus estudos folclóricos, etnográficos, sócio-antropológicos e linguísticos. Mas o fato é que nunca se fechou etnocentricamente dentro das fronteiras nacionais. Pelo contrário, desde cedo, nutrido por autêntica e rara formação católica, religião fundada sobre o princípio da universalidade, aprendeu línguas e outras culturas cuidando sempre de iluminar sua compreensão do Brasil relacionando-o com o diferente, o estrangeiro, o outro através do qual reconhecemos nossa singularidade. Isaiah Berlin, a quem sigo na minha compreensão do caráter universalista do nacionalismo cultural professado por Herder e Mário de Andrade, observa que para Herder é graças ao advento do cristianismo que os horizontes da humanidade se alargam extraordinariamente. Sendo uma religião de cunho universal, estende-se doutrinariamente a todos os seres humanos superando assim todas as formas de lealdade e identidade fundadas em valores locais. Segundo Isaiah Berlin, a tese acima era francamente adotada pelo iluminismo cristão da Alemanha. Conforme acrescenta,
“...apesar de tudo o que se tem dito em contrário, Herder nunca abandonou esse ponto de vista. Sua crença central foi expressa perto do fim da vida com palavras semelhantes às de seus primeiros escritos: ´Gabar-se do seu país é a forma mais estúpida de bazófia... O que é uma nação? Um grande jardim silvestre cheio de plantas boas e ruins; vícios e loucuras se misturam com virtudes e méritos. Que Dom Quixote vai quebrar uma lança por essa Dulcinéia?` O patriotismo era uma coisa, o nacionalismo outra: uma ligação inocente com a família, a linguagem, a cidade, o país, suas tradições, não deve ser condenada. Mas ele prossegue dizendo que o nacionalismo agressivo é detestável em todas as suas manifestações e que as guerras não passam de crimes”.
Considerando ainda o ponto referente à singularidade das culturas, Herder argumenta baseado no próprio saber do seu tempo para realçar a singularidade observável no reino da natureza e também das culturas. Mas também ressalta, ao mesmo tempo, a realidade empírica da variedade infinita a esta acrescentando o fato igualmente observável da permanente mutabilidade. Ele acomoda a aparente contradição aí contida afirmando haver sobre a terra “... uma única e mesma espécie de homens”. Afirma adicionalmente que não se deve oprimir o dessemelhante, em cujo conceito identifica nominalmente o negro e o americano.

O sentido da mutabilidade permanente de tudo o que vive, na natureza quanto nas sociedades humanas, encontra correspondente na obra de Mário de Andrade na distinção que propõe entre tradição móvel e tradição imóvel. Objetivando esclarecer que sua identidade de líder do movimento modernista não supõe desprezo pela tradição, por todo o legado cultural brasileiro que passa expressamente a defender a partir de 1924 com espírito proselitista, como sua correspondência com Drummond e outros escritores limpidamente evidencia, assim distingue os dois tipos de tradição que propõe: “O que a gente carece é distinguir tradição e tradição. Tem tradições móveis e tradições imóveis. Aquelas são úteis, têm importância enorme, a gente as deve conservar talqualmente são porque elas se transformam pelo simples fato da mobilidade que têm. Assim por exemplo a cantiga, a poesia, a dança populares”. ( Mário de Andrade, O Turista Aprendiz, p. 254).

Passando a Gilberto Freyre, não sei de nenhum estudo que sequer insinue algum paralelo entre ele e Herder. O melhor estudo que sobre ele conheço, sobretudo por se tratar de investigação ampla e profunda no âmbito da gênese das ideias que fecundaram a composição de Casa-Grande & Senzala, não faz qualquer alusão a Herder (cf. Maria Lúcia Pallares-Burke, Gilberto Freyre: Um vitoriano dos trópicos). O que podemos sem mais detido exame reconhecer é que também Gilberto Freyre revela aguda sensibilidade para captar e traduzir sociologicamente o sentido do singular assim como da infinita variedade das culturas.

Houve já quem observasse, penso em Darcy Ribeiro, que sua fina percepção do singular, dos entretons que tecem o multifacetado tecido da cultura, seria decorrente não do cristianismo universalista tal como assimilado por Herder e Mário de Andrade, mas de sua formação protestante dentro de um contexto tradicionalmente católico. Nele, entretanto, não diviso a mesma acentuação do sentido universal das culturas particulares que surpreendo na leitura das páginas de Herder e Mário de Andrade, menos ainda o entrelaçamento complexo do nacional e do universal. Como acima fica bem explícito, tanto Herder quanto Mário de Andrade visavam o universal como fim do nacional. Quanto a Gilberto Freyre, seu ponto de vista me parece haver sido sempre o do nacional ancorado nas fontes do regional. De qualquer modo, o pouco que expus justifica minha estranheza diante do fato de tão pouco ou quase nada existir na bibliografia de Mário de Andrade e Gilberto Freyre com relação a este ponto.

Concluo essas notas soltas acima designadas como um breve ensaio ressaltando os elos que identifico entre a cultura europeia e cultura universal. Seguindo de resto formulações correntes, por que identifico o universal, no âmbito da cultura erudita, com o europeu? Antes de tudo, porque preciso fatalizadamente me posicionar dentro dos horizontes de minha percepção da realidade. Noutras palavras, a realidade que percebo e intelectualmente apreendo está enraizada na tradição europeia. A ela devemos, preliminarmente, a língua que nos exprime e através da qual nos exprimimos. A ela devemos ainda os fundamentos da tradição dentro da qual elaboramos nossa formação científica e literária. Lembrando uma platitude todavia oportuna, não haveria sociologia no Brasil, e por conseguinte nossa formação, emprego e produção acadêmica, dissociada de toda uma tradição relativa a esse campo gestada na Europa e a partir dela difundida por grande parte do mundo.

Refutar esses vínculos que tomo como evidentes, e empiricamente aferíveis, em nome de algum suposto exclusivismo particularista – de região, nação ou identidade cultural – é deslizar irrecorrivelmente para o solo minado já aqui indicado. Assim procedendo, logo nos enredaremos nas contradições e paradoxos embutidos na falsa disjuntiva nacional versus universal. Outra poderosa razão para que eu identifique o universal com o europeu deriva do reconhecimento de que a proposição e defesa de valores universais são características marcantes da cultura européia.
Recife, 7 de setembro de 2009.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Montaigne I




Além de criador de um gênero literário que muito me seduz, o ensaio, Montaigne praticou-o com um sentido de qualidade inigualável. Embora ensaístas admiráveis se tenham distinguido em inúmeras línguas e tradições intelectuais, sou dos que pensam que ninguém o excedeu no gênero. A variedade e profundidade temática que ensaiou também merecem registro num artigo de comentário geral. Tendo isso em mente, ficarei restrito a alguns aspectos e questões que mais me interessam e de imediato me ocorrem. Como escrevo isento de qualquer noção precisa de planejamento e anotações que me valham como baliza e matéria expositiva, ouso aqui repeti-lo à margem de qualquer intenção de falsa modéstia ao afirmar que tenho fôlego curto e andar moroso. Associando o ensaio ao exercício da viagem, acrescentaria viajar antes de tudo sem sair de casa. Se acaso saio, raramente vou além da esquina mais próxima. Eis portanto a medida manca do ensaio que me aventuro a praticar inspirado nas minhas vagas mas constantes leituras de Montaigne. Adianto ainda que o leio unicamente movido pelo prazer e com igual propósito o comento.

O que de ordinário escrevo me sai sem traçado prévio, sem ordenação metódica do assunto que intento erraticamente explorar. O advérbio de modo vai aqui bem pensado ou colocado. Foi muito tardiamente que me apercebi do quanto me confundia ao optar por uma profissão, a de docente universitário, que me obrigaria a escrever obras de cunho acadêmico. A verdade tardiamente descoberta, tão tardiamente que é agora irreversível, é que não pude consagrar-me ao tipo de formação que me qualificaria para isso. Aliás, talvez melhor me explicasse e justificasse se dissesse que me falta antes de tudo inclinação para ser um autor acadêmico, aquele tipo de trabalhador intelectual institucionalmente disciplinado para escrever teses de andamento penoso e laboriosa escavação. Os melhores – sempre raros, como em qualquer ocupação humana – alcançam realizar obra de valor e referência sobrepondo-se aos códigos reguladores de técnicas de trabalho e composição que frequentemente atormentam criadores de talento e sufocam alguns mais infensos às normas de produção acadêmica.

Dentre as regras de trabalho que a instituição me impôs e mais me anularam, mencionaria o que a troco de tudo e de nada designam como marco teórico. Longe de mim desqualificá-lo pura e simplesmente. Dado que não me passa pela cabeça esclarecer o que entendo seja, até por que muitos dos que o cobram e fiscalizam são os primeiros a invocar-lhe o santo nome em vão, friso apenas que o marco teórico com frequência exerce a função de inibir ou anular o estudante pouco treinado para assimilar essas práticas acadêmicas. Diria que no meu caso a inabilidade ou incompetência somou-se à resistência do aprendiz (de)formado à deriva das circunstâncias. Mais que a academia armada de rituais e práticas nos quais tanto aridamente tropecei, tolheu-me a própria vida tangida à deriva de acasos e obstáculos que seria impertinente aqui grosseiramente descrever, até porque tudo saberia longo e digressivo além de qualquer medida tolerável.

Os dois parágrafos precedentes podem até com proveito ser ignorados pelo leitor compreensivelmente impaciente com autores demasiado digressivos que a troco de tudo e de nada desandam a falar de si próprios. Afinal, o ensaio que aqui esboço é sobre Montaigne ou sobre mim? Ao enfiar de brusco esta questão, que juro nada conter de artifício retórico, fico à vontade para melhor justificar o andamento sem prumo aparente deste ensaio. Antes de tudo, o próprio gênero o justifica. Ele é nitidamente apreensível, antes de tudo, no próprio pai fundador. Montaigne é tão digressivo e caprichoso na forma como desdobra a matéria dos seus ensaios que não raro confunde ou desvia a atenção do leitor já em alguns títulos que escolhe para nomeá-los. Ai do leitor que procure outro assunto que não sejam a morte e o suicídio no ensaio cujo título é “A propósito de um costume da Ilha de Ceos” ou presuma cuidar apenas de Catão, o Jovem no curto ensaio assim identificado. Fazendo justiça à forma arbitrária do gênero que inventou, Montaigne avança tão à vontade quanto recua, dobra-se zelosamente sobre a realidade objetiva com a mesma destreza que revela ao recolher-se para dentro de si próprio, quando não sobrepõe uma coisa à outra. Por fim, visando praticar a norma de mais estrita franqueza com o leitor, alega escrever apenas sobre si próprio, assertiva que logo descobrimos ser tão enganosa quanto instrutiva. Logo, se os dois parágrafos acima denunciados parecem de fato impertinentes, e não nego que também o sejam, ambos encontram justificativa no gênero que Montaigne inventou. Resumindo, o que se pode incriminar-me é a qualidade do que produzo dentro do gênero, não a forma e o modelo que me inspiram.

A ambiguidade essencial do ensaio constitui um dos motivos que me autorizam considerar Montaigne tanto um filósofo quanto um autor literário. Embora se tenha detido no exame de questões essenciais à filosofia, parece-me improcedente qualquer pretensão de busca de uma filosofia sistemática na sua obra. Além do tratamento ensaístico que confessadamente adota ao examinar questões de fundo filosófico, suas fontes e autores de eleição não derivam de nenhum modelo de filosofia sistemática. Se há assim quem com razão o vincule ao estoicismo, quando não a uma ética de fundo estoico, outros com igual razão o associam ao ceticismo. Sabe-se ainda que suas fontes primaciais procedem da tradição clássica greco-latina, mas nada nelas fundamenta a determinação de uma filosofia unitariamente formulada. De resto, seria absurdo atribuir-lhe finalidades ausentes dos seus escritos.

Embora o prólogo da obra seja tão breve, quase lacônico, não me deterei na sua análise. Interessa-me apenas salientar seu tom de franqueza quase desabusada que de algum modo me acorda na memória o prefácio também breve de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Mas a franqueza que vai ao extremo de fazê-lo lastimar a impossibilidade de pintar a si próprio sem qualquer reserva ou concessão às convenções que freiam a expressão desatada da verdade mesmo no escritor mais livre, também encerra um vinco de autoironia e um suspeito verniz de modéstia ou fingida humildade. É isso o que deduzo ao lê-lo aludindo à sua “ingenuidade física e moral”, também quando alega ignorar o juízo da posteridade, isto é, o destino reservado à sua obra.

Para não sair por aí tão à deriva, tropeçando nas pedras guiado apenas por meu andar de bêbado, convém fixar alguns limites para este ensaio. Já antes aludi à extraordinária variedade dos ensaios de Montaigne. Resta-me agora selecionar alguns temas que elegi como matéria de minhas improvisadas reflexões. Como digito estas notas hospedado na casa de parentes em Salvador, não disponho de maiores fontes de referência, salvo o primeiro volume da tradução dos ensaios feita por Sérgio Milliet e o livreto Montaigne, de Peter Burke. Até o volume dos ensaios integrais em língua francesa atualizada pelo filólogo André Lanly, até este deixei-o na minha biblioteca em Recife.

Começando por um tema que a própria revolução dos costumes concorreu antes para fazê-lo obsessivamente discutido, analisado, dissecado e sobretudo vulgarizado no pior sentido do termo, acompanho um pouco Montaigne despindo nossa sexualidade de muito dos preconceitos, obsessões e disparates que a cercam. Montaigne tratou-a com franqueza e discernimento raros no seu tempo. Também no nosso, apesar de todas as aparências em contrário. Fascinado pela desconcertante diversidade das culturas que direta ou indiretamente reteve na rede de sua insaciável curiosidade, apreciou-a, nossa sexualidade e suas infinitas variações, isento dos preconceitos, da cegueira etnocêntrica característica do seu tempo, do nosso, de qualquer outro tempo.

Somente nossa presunção de vivermos numa época, a modernidade permissiva, liberta de preconceitos, pode iludir-nos ao ponto de afirmarmos, como é corrente, que vivemos numa cultura estranha ao etnocentrismo. Se de ordinário não o dizemos nestes termos, até porque etnocentrismo é um termo derivado da linguagem especializada, dizemo-lo em termos pessoais. Noutras palavras, estou cansado de ouvir pessoas afirmarem em tom frequentemente de autolouvor que não têm preconceito. O que de fato dizem, embora não o saibam ou não tenham disso nenhuma consciência, é que têm muito preconceito. Vão na verdade bem além disso, pois o sentido que transpira no subtexto é o do pior tipo de preconceito: o que nem sabe de sua existência, ou por outra não ousa sabê-la.

Montaigne observou nossa sexualidade com olhar arguto e serena ironia. Sendo assim, não foi por acaso ou dissimulada afetação que inscreveu na sua biblioteca, entre tantas máximas sábias, as palavras de Terêncio que cito livremente de memória: sou homem e portanto nada do que é humano me é estranho. São palavras impressionantes que condensam um sentido modelar de visão humanista. Mas quantos já não as repetiram ou presumem adotá-las como norma de vida armando-se de intolerância e grosseira incompreensão à visão do primeiro estrangeiro que inadvertidamente pisa nos calos da nossa medida etnocêntrica?

No ensaio XXI, “A força da imaginação”, Montaigne confessa o quanto era susceptível aos poderes dessa falsa demente, como diria Drummond. Evidenciando o quanto a imaginação tinha o poder de induzir-lhe estados de franca hipocondria, revela que “a vista das angústias alheias influi fisicamente em mim de maneira penosa, e não raro sofro de sentir que alguém sofre”. Assim como atua no sentido de assaltar o equilíbrio dos hipocondríacos, a imaginação exerce igualmente o poder benfazejo de curar pacientes adoecidos pelo seu feitiço ou curáveis por sua eficácia terapêutica. Montaigne relata a propósito anedotas exemplares, algumas francamente divertidas. Há quem tocado por suas forças misteriosas testemunhe milagres ou sirva como veículo de visões e alucinações que, a depender de cada caso, ora atormentam, ora maravilham.
A sugestão erótica, variante fecunda da nossa imaginação insubordinável aos ditames da razão tantas vezes desavinda de governo, rende páginas deliciosas saídas da pena de Montaigne. Aqui os poderes da imaginação se manifestam de forma igualmente ambivalente, já que tanto podem atear fogo aos mares quanto cobrir de trevas a luz do dia, tanto nos transportam às delícias e prazeres mais intraduzíveis quanto nos aprisionam nas mais horripilantes figurações do inferno. Nada ilustra melhor as maravilhas e tormentos dos poderes da imaginação, no caso literária, do que as façanhas delirantes de Dom Quixote ou os desvarios românticos de Madame Bovary, esse Quixote de saias.

Bem mais caprichosa e sedutora é a imaginação que se manifesta no curso anárquico da vida, não no da literatura. Daí voltar-me à mente a imagem da falsa demente invocada por Drummond. Dentre suas multifacetadas materializações, talvez nenhuma seja mais recorrente e ingovernável do que a erótica. Também aqui recorrem seus conteúdos e efeitos ambivalentes. Se de um lado ela nos descortina a fruição do amor e dos mais deleitáveis prazeres eróticos, de outro inverte o curso das águas e a rotação das horas cuja duração pode converter-se em estados de expectativa apreensiva, medo e até puro desespero. Montaigne ilustra todas essas nuances da banda torta da vida com relatos que variam do patético ao cômico, do insensato ao inacreditável. Citando alguns que de pronto me sobem à memória sem motivos de definida ordenação, lembro aqui algo do que nos revela dos efeitos que o fantasma da impotência sexual impôs a alguns figurantes do ensaio que comento. Há o caso do homem que, humilhado pela impotência no momento fatal da prova de virilidade, ficou tão transtornado que mutilou o próprio pênis. Inversamente, prende-nos o relato do recém-casado apreensivo que na noite de núpcias triunfou sobre o medo da impotência beneficiado por técnicas de sugestão induzidas por Montaigne.

Montaigne guia o leitor curioso através dessas peripécias pontuando ora os limites desconcertantes de nossa razão presunçosa e todavia vexatoriamente vulnerável, ora os embaraços de nossa natureza insensata exposta aos caprichos e poderes da imaginação que tão amiúde nos atraiçoa. Mas também se esmera em sabiamente dosar nossas medidas desencontradas vazando em tom de ironia e humor muito do que a outros inspiraria apenas medo, incompreensão e perplexidade. Diverte-me, por exemplo, a forma como a meio de relatos tão inusitados relativos à retorcida sexualidade humana ele alude ao pênis como esse órgão tão imprevisível e caprichoso, vulnerável ao arbítrio da imaginação que tanto o impele a trair-nos no momento em que mais carecemos que dê provas afoitas e potentes de si quanto nos vexa nas circunstâncias contrárias, aquelas nas quais precisamos que se comporte com discrição tão louvável que se faça ausente ou despercebido.

Esses episódios provindos de séculos remotos, os que nos separam do tempo em que Montaigne viveu, se renovam ou refazem moldados por circunstâncias distintas, fruto de outros tempos e costumes. Isso apenas comprova a constância de certos traços da nossa natureza. Mudam os costumes, os valores éticos e religiosos que demarcam a pauta de suas manifestações, mas continuamos de modos variáveis a inquietar-nos e padecermos de dramas e aflições substancialmente comuns àqueles que Montaigne nos relata ao examinar seus semelhantes e contemporâneos.

Somente os ingênuos ou inscientes, aqueles tolamente deslumbrados com as supostas maravilhas do presente, iludem-se supondo que o progresso humano, com e sem aspas, e as engenhosas descobertas e soluções de muitos dos problemas humanos bastam para nos libertarem de limites e perplexidades humanas que teimam em nos afligir. Se os tempos e os costumes sem dúvida mudam, nossa aderência de ordinário servil àquilo que nos ditam permanece substancialmente inalterada. Ponderar devidamente essa verdade guiados pelo propósito de libertar-nos da tirania que sobre nós exercem seria já uma evidência de sabedoria assimilada – um grão que seja, concedamos, mas já um grão nada desprezível na contracorrente de nossas vidas insensatas.
Salvador, Bahia, 8 a 10 de fevereiro de 2011.
Ler também
http://fmlima.blogspot.com/2011/02/montaigne-nosso-contemporaneo.html

quinta-feira, 10 de março de 2011

Brasileiros de São Paulo e de Pernambuco



Para Antonella.

Gilberto Freyre inicia um dos seus ensaios assinalando relações de afinidade histórico-cultural entre paulistas e pernambucanos (Ver “Modernidade e modernismo nas artes”, in Vida, forma e cor). O tema, frequente em muitas das suas páginas, é no ensaio retomado com o aparente propósito de acentuar pontos de convergência entre os dois estados. O foco é histórico-cultural, sempre deslizando para a fixação de um ethos descrito com base em fontes históricas livremente utilizadas pelo autor na composição das suas obras mais significativas. Transitando das generalidades históricas para a fase da nossa cultura moderna na qual se inscreve a sua obra, passa Gilberto Freyre a considerar especificamente o papel desempenhado pelo modernismo de São Paulo na constituição dessa cultura. Embora reconheça seu caráter renovador, critica-o por se mostrar no conjunto incapaz de converter o movimento, modernismo, num modo substantivo de ser, isto é, ser moderno. Esta a fraqueza fundamental do movimento paulista. Nas palavras do próprio Gilberto,
“...(o modernismo) envelheceu depressa pelo fato de se ter contraído e sistematizado numa quase seita de adoração do que fora apenas um momento ou um instante – instante libertador, revolucionário, violentamente antiacadêmico – na vida do brasileiro criado com muita gramática ou com excessivo respeito pelas academias”.
O foco desta crítica se estreita especificando-se na figura de Mário de Andrade. Diferentemente de Oswald de Andrade, com quem é negativamente contrastado na distinção proposta por Gilberto entre moderno e modernista, Mário teria sido incapaz de transcender o momento puramente contestador dos códigos estéticos estabelecidos incorrendo assim em mimetismos vanguardistas indicativos de subserviência mental à cultura europeia. Em suma, a insuficiência de Mário de Andrade traduziria a própria insuficiência fundamental do movimento que liderou: um modernista incapaz de se fazer moderno.

É por demais sabida a resistência de Gilberto Freyre ao modernismo de São Paulo. Tal resistência é compreensível, talvez inevitável, se se considera a posição secundária atribuída ao regionalismo originário de Recife que nele encontrou a figura do líder e animador inconteste. Dada a hegemonia cultural exercida pelo eixo Rio-São Paulo, as forças culturais mais renovadoras desenvolvidas nas décadas de vinte e trinta foram no geral associadas à corrente triunfante do modernismo paulista. A própria crítica de corte modernista, assim como sua historiografia correspondente, tende a incorporar ao modernismo o impacto e a dimensão mais renovadora de obras como Casa-Grande & Senzala e o movimento de renovação da narrativa regionalista do Nordeste.
Consciente da importância da sua obra, ampliada em ação pessoal e continuada de liderança junto a numerosos artistas e intelectuais, Gilberto Freyre viu-se muitas vezes compelido a reivindicar em prefácios, artigos e ensaios um papel de absoluta autonomia para o movimento que comandou a partir de Recife. Ao fazê-lo, porém, incorreu por vezes em formulações polêmicas merecedoras de apreciação mais isenta do leitor e crítico da sua obra. Um dos propósitos deste artigo é, por conseguinte, fixar dentro de uma linha de necessária isenção crítica a imagem do modernismo fundada antes na apreciação das suas características culturais historicamente aferíveis do que em juízos polêmicos resultantes de lutas por hegemonia no campo cultural.

Outro motivo que por certo decisivamente concorreu para pontuar a resistência e hostilidade de Gilberto Freyre contra o modernismo paulista deriva da polêmica travada com Joaquim Inojosa. Entusiasta do movimento paulista, Inojosa logo se tornou no ambiente de Recife um propagandista do novo ideário. Sua ação militante coincide com o momento em que Gilberto retorna a Recife e gradualmente desenvolve nos limites da província um movimento de revalorização das tradições regionais. Esse movimento, como é sabido, se define melhor com a publicação do Livro do Nordeste e a realização do Congresso Regionalista e atinge sua expressão mais alta e definitiva em 1933, quando da publicação de Casa-Grande & Senzala. Ora, se já no início do processo ele compreensivelmente se distancia do movimento representado em Recife por um mero epígono, um propagandista incapaz de realizar obra de qualidade própria, a afirmação objetiva da sua importância, nacionalmente consolidada com a publicação de Casa-Grande & Senzala decerto contribuiu para legitimar suas justas reivindicações de autonomia perante o modernismo paulista. Ao fazê-lo, porém, Gilberto Freyre por vezes cedeu à tentação, sempre inspirada por circunstâncias de natureza polêmica, de confundir o modernismo e a obra de Mário de Andrade com a dos epígonos, sobretudo regionais. A isso seria necessário acrescentar fatores tais como a rivalidade regional estabelecida entre São Paulo e o Nordeste, agravada pela expansão socioeconômica daquele em contraste com a longa e lenta decadência deste, a crise de poder detonada pela Revolução de 30 e a institucionalização do modernismo nos anos que se seguem a 1930.

Num documento de publicação tardia, Mário de Andrade esclarece as circunstâncias que definitivamente o afastaram de Gilberto Freyre antes mesmo de qualquer aproximação efetiva. O que abaixo descrevo, importa frisar nesse terreno minado por apreciações parciais, é o seu ponto de vista. Em carta endereçada a Guilherme de Figueiredo poucos meses antes de morrer, Mário refere-se a Gilberto como alguém distante. Por um momento, em meados dos anos vinte, foi informado a respeito deste através de amigos comuns residentes no Rio de Janeiro: Manuel Bandeira, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Moraes, neto. Se estes de um lado já demonstravam admiração por Gilberto, de outro assinalavam seu espírito malicioso, sempre inclinado a troçar mesmo dos amigos mais íntimos. Mário atribui a isso o fato de nada haver feito no sentido de então encontrar Gilberto.

Mas eis que Prudente de Moraes, neto, co-editor de Estética, o periódico modernista sucessor de Klaxon, publica no no. 3 desta revista uma resenha sobre A Arte Moderna, de Joaquim Inojosa. Nesta obra, lançada no Recife em 1924, intenta o autor divulgar, em linguagem polêmica, o ideário modernista para o público de Recife. Embora distinguindo-o com comentários elogiosos - Inojosa era afinal o propagador do modernismo em Recife, onde também representava Estética por indicação expressa de Mário de Andrade e dos editores do periódico – observa o resenhista o quanto a derivação do modernismo na província andava em descompasso com o centro dinâmico do movimento:
“Mas Pernambuco, sem excetuar o sr. Inojosa, ainda está na primeira fase do modernismo. Fase de revolta, de violência destruidora, de desorientação, em que se cultiva o absurdo pelo absurdo, a esquisitice pela esquisitice, as máquinas, modas, invenções, toda essa parte exterior da vida contemporânea pela aparência de atualidade do aproveitamento delas como motivo artístico. Seria inútil negar que todos tivemos esse período, que o futurismo italiano não conseguiu ultrapassar. (...) Depois, uma compreensão melhor do modernismo nos ensina a estabelecer algumas diferenças; cada um vai encontrando seu caminho e a gente perde a preocupação com os últimos inventos e últimas modas”.
Dado que a citação foi demasiado longa, refaço com palavras minhas outros pontos da resenha necessários à precisa caracterização do problema aqui discutido. Acrescenta Prudente de Moraes, neto, que a desorientação e a confusão de valores são defeitos evidentes na plaqueta assinada por Joaquim Inojosa. Como agravante, conhece imperfeitamente a história do modernismo. Seu relato da Semana de Arte Moderna, sempre de acordo com o resenhista, “só tem de exato a vaia”.

Pode-se aí nitidamente perceber como os modernistas mais consequentes tinham já revisto os excessos de contestação e até inconsequências que tingiram as lutas e tomadas de posição iniciais. E note-se que a resenha é assinada por um então militante do modernismo, editor, com Sérgio Buarque de Holanda, de um dos mais importantes periódicos do modernismo. Outra nota relevante prende-se ao fato de que ambos nesse momento se distanciam da suposta liderança intelectual de Graça Aranha ao mesmo tempo em que, movidos por razões de afinidade intelectual e ideológica, aproximam-se independentemente tanto de Mário de Andrade quanto de Gilberto Freyre.
Voltando à carta de Mário de Andrade, escreve ele a Prudente criticando-o por tratar Inojosa com tanta severidade na sua resenha. Dado que Mário era já o líder do movimento, atenua suas restrições a Inojosa cioso talvez de não melindrar o epígono combativo de Recife. Por artes do destino, ou mero acaso, Gilberto Freyre visita Prudente no momento em que este lia a carta enviada por Mário de Andrade. Como Gilberto era já inimigo de Inojosa, ao tomar conhecimento da carta de Mário decide-se a rejeitar este para sempre. A decisão de Gilberto perdura até 1928, quando Mário, viajando pelo Nordeste, é recebido por ele em Recife. Não o fez porém sem muita resistência, afinal vencida pela mediação de um grande amigo de ambos: Manuel Bandeira, também coincidentemente visitando sua cidade natal. A julgar pela curta anotação feita por Mário no seu diário de viagem, o encontro foi se não frio, com certeza apenas cordial e sem prolongamentos:

“... Tarde M. Bandeira me busca no hotel e me leva a Gilberto Freyre, que nos oferece um passeio de lancha pelo Capibaribe, maravilhoso, com vista da cidade...” (Mário de Andrade, O Turista Aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976, p. 347. Para confronto do meu texto com a carta de Mário de Andrade a Guilherme de Figueiredo, ver Mário de Andrade, A Lição do Guru. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989, pp. 136-7).

Embora não me ocorra reivindicar em qualquer sentido prioridade para o tratamento crítico que procuro conceder à matéria polêmica deste artigo, talvez me exponha ao puxão de orelha do leitor mais esclarecido. Assim, cuidando prevenir-me de apreciações infundadas, frisaria ter ciência de alguns precedentes ilustres na nossa historiografia crítica. Refiro-me restritamente a José Aderaldo Castello, cujo livro sobre José Lins do Rego e suas conexões com o regionalismo e o modernismo traduz um espírito de elevada disposição de compreender ambos os movimentos de forma integradora, e sobretudo Sérgio Buarque de Holanda, que aprecia com juízo certeiro as divergências polêmicas entre os dois movimentos numa série de artigos reunidos em volume de publicação recente (Ver Sérgio Buarque de Holanda, O Espírito e a Letra, vol. II, org., introdução e notas de Antonio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 331-345).

Aderaldo Castello foi o primeiro a desenvolver uma análise sistemática sobre o modernismo paulista e o regionalismo recifense num estudo de fôlego dedicado à obra de José Lins do Rego (Ver José Aderaldo Castello, José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo). Embora reconheça e documente a influência exercida pelo modernismo paulista no Nordeste, particularmente no Recife através do contato estabelecido por Joaquim Inojosa com o grupo paulista, Aderaldo Castello associa-se a Gilberto Freyre e Lins do Rego na defesa da autonomia do movimento regionalista. Observa ele corretamente que desde o começo – isto é, desde 1923, quando Gilberto Freyre regressa ao Recife e se aproxima de Lins do Rego – Gilberto distingue-se pelo papel decisivo que exerce na constituição de uma tendência independente dentro do processo nacional de renovação da cultura. Sem deixar de acentuar a oposição inicialmente verificável entre o movimento paulista e o pernambucano, a orientação crítica de Aderaldo Castello é pautada pela acentuação de traços convergentes entre ambos. Coerente com esse princípio, intenta unificar os aspectos mais positivos dos dois movimentos caracterizando-os como um movimento neo-romântico.

Frisava acima que a resistência de Gilberto ao modernismo é amplamente conhecida. Reiteraria, ademais, que se expressou muitas vezes em tom polêmico. Uma das suas manifestações mais remotas está contida na introdução que escreveu para Região e Tradição. Embora o livro tenha sido publicado em 1941, a introdução data de 1940. Nela, ecoando a depreciação polêmica do modernismo detonada por seu amigo e discípulo confesso José Lins do Rego no prefácio que consta deste mesmo livro, Gilberto Freyre caracteriza o modernismo como um movimento francamente hostil a qualquer forma de tradicionalismo e regionalismo. Polemizando num contexto em que intentava afirmar a autonomia e pioneirismo do regionalismo recifense, Gilberto identificou no modernismo já triunfante nos quadros da cultura brasileira o opositor que carecia de ser contestado. Assim, nas páginas polêmicas de Região e Tradição configura-se uma atitude e uma avaliação depreciativa que serão repostas em outros textos. A reiteração de uma crítica redutora, inspirada pelo espírito polêmico já aqui assinalado, tem infelizmente concorrido para que leitores mais apaixonados, quando não simplesmente ignorantes do nosso processo cultural objetivo, tendam a caracterizar o modernismo paulista como um movimento de inspiração estreitamente européia, como avesso à tradição, à cultura de extração regional e até antinacionalista. O equívoco é grave e com certeza não resiste à confrontação objetiva com os fatos culturais incorporados à linha da nossa tradição cultural.

Um outro motivo que justifica a tentativa de esclarecimento dos equívocos e mal-entendidos que cercam as relações entre modernistas de São Paulo e regionalistas de Recife radica no fato de que a tarefa mais alta da crítica e do leitor esclarecido consiste em precisar de maneira isenta a significação efetiva de ambos os movimentos e, mais restritamente, dos seus dois grandes líderes: Gilberto Freyre e Mário de Andrade. Insistir em opor um ao outro - sempre na intenção de louvar este em detrimento daquele; ou exaltar o segundo às expensas do obscurecimento do primeiro - é atitude que me parece incompatível com o exercício da crítica autêntica, que como tal carece de fundar-se em critérios e argumentos de natureza estética e intelectual, não em apreciações particularistas, sejam elas dirigidas por valores estreitamente regionais, ideológicos ou apenas pessoais.

Cabe, portanto, proceder ao exame dos argumentos fundamentais invocados na polêmica. Acusar o modernismo paulista de ser hostil à tradição é confundir o movimento tal como se configurou nas suas manifestações iniciais com a dinâmica de um processo que consistiu, em síntese, na conversão do modernismo internacionalista em modernismo nacionalista. É verdade que, à volta da Semana de Arte Moderna, era nítida a influência do ideário vanguardista procedente antes de tudo da França. Nesse momento, a grande aspiração dos modernistas era acertar o passo – ou o relógio, evocando aqui a metáfora empregada por Oswald de Andrade – do Brasil com o das vanguardas europeias.

Klaxon, órgão oficial do modernismo da primeira hora, exprime nas suas páginas, no gosto por vezes abusivo e inconsequente da experimentação formal, esse desejo de atualização das artes brasileiras. Mas esse quadro, de corte sem dúvida internacionalista, portanto avesso à corrente da tradição e do regionalismo, logo se modifica. O ano marco é sem dúvida 1924, embora algo da produção poética e da correspondência literária imediatamente anterior já indique o ponto de inflexão nacionalista em l923. Algumas evidências: poemas como Carnaval Carioca, de 1923, e O Poeta Come Amendoim, de 1924, ambos de Mário de Andrade, renovam a nossa poesia do ponto de vista temático e formal. No que se refere à correspondência de Mário, de imensa e já reconhecida importância documental para a história cultural brasileira, pode-se mencionar, entre outras, uma carta endereçada a Drummond em novembro de 1924. Nela é inequívoco o espírito de nacionalismo militante já plenamente adotado pelo líder do modernismo paulista. Criticando a formação francesa de Drummond, que o induzia a olhar o Brasil com um misto de indiferença e desprezo, assim argumenta Mário:
“Você é uma sólida inteligência e já muito bem mobiliada... à francesa. (...) devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. (...) Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime. (...) Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França e a Cochinchina. Mas é no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei” (A Lição do Amigo. Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, pp. 5-6).
Como ler a citação acima sem automaticamente lembrar o célebre prefácio escrito por Gilberto Freyre para a primeira edição de Casa-Grande & Senzala? Nele Gilberto declara um espírito de missão similar àquele traduzido na profissão de fé nacionalista de Mário de Andrade. Comparando seu fervor nacionalista ao dos russos e românticos do século XIX, Gilberto declara sua convicção de que tudo parecia depender dele e dos seus companheiros de geração (Casa-Grande & Senzala. 25a ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1987, p. lvii).

O móvel que norteia a produção de Casa-Grande & Senzala é a necessidade vivida por Gilberto de se compreender, de definir sua identidade individual através da apreensão da própria identidade cultural do Brasil. Esse espírito de missão orientado para a transformação da nacionalidade é comum a ambos, ele e Mário de Andrade. Acrescentaria ser ele comum a todos que se empenharam na realização do nacionalismo literário, em sentido específico e, mais amplamente, no sentido do nacionalismo cultural. Deixando de parte rivalidades regionais e variações estético-ideológicas no fundo acomodáveis no leito promíscuo do nacionalismo cultural, como não reconhecer em Gilberto Freyre e Mário de Andrade os agentes seminais desse movimento que tantas contribuições trouxe para o enriquecimento da nossa cultura moderna?

Se o nacionalismo cultural de Gilberto Freyre se desenvolve fundamentalmente a partir da sua volta a Recife para alcançar sua expressão suprema cerca de 10 anos mais tarde, quando ultima e publica Casa-Grande & Senzala, o de Mário de Andrade evolui do internacionalismo de 1922 e aporta em Macunaíma, em 1928, depois de um processo de adensamento e decantação que compreende a temática de fundo nacionalista na poesia, os escritos críticos sobre música, artes plásticas e cultura popular e suas viagens etnográficas através do Norte e Nordeste do Brasil. O fato de acentuar neste artigo os pontos de convergência entre ambos, pontos tantas vezes obscurecidos por eles próprios e em seguida por seus discípulos mais entusiastas até o limite mesmo do ano em que se celebra o centenário de nascimento do primeiro, não supõe todavia sequer a sugestão de que a convergência se dissolva em equivalência. Embora ambos realizem uma obra de expressão nacionalista inspirada pelo ambição, em larga medida bem sucedida, de revalorizar a cultura brasileira na linha de tensão entre a tradição e a modernidade, entre o particular nacional, e também regional, e o universal de corte antes de tudo europeu, é fato que divergem na ênfase e mesmo no fundamento do horizonte que recortam no conjunto da obra produzida. Enquanto Gilberto de um lado se baseia na região para formular sua concepção de cultura nacional, Mário intenta chegar a uma síntese nacional de cultura fundindo livremente elementos das várias regiões culturais brasileiras. Esse traço marcante da sua concepção de cultura nacional é evidente na própria composição de Macunaíma. Integrando-o à forma e ao andamento da narrativa, Mário descreve os deslocamentos alucinantes do herói através do país, a fusão de regionalismos linguísticos, o choque fecundo entre as raízes primitivistas da nossa tradição e a modernidade expressa em ícones e códigos da nossa sociedade urbano-industrial.

Sei que comparo acima grosseiramente obras de estatuto epistemológico distinto. Se é verdade que Casa-Grande & Senzala destoa e mesmo colide com a obra de sociologia convencional, é também verdade que sua liberdade compositiva não autoriza confundi-la com uma obra literária, embora alguns críticos maldosos ou intelectualmente estreitos assim a tenham qualificado supondo com isso desmerecê-la. Obra ambígua no método e na andadura compositiva, é obra de ciência social e ao mesmo tempo literária no estilo, na ordenação expressiva do material e na lógica da argumentação na qual se fundem história social e autobiografia, documento histórico reinventado na forma de memória literária. Macunaíma, de outro lado, pode também ser compreendida como obra ambígua no sentido de que, sendo primariamente uma narrativa ficcional, supõe ou dissimula no tecido da composição uma massa heterogênea de documentos histórico-sociais criteriosamente acumulados pelo seu autor.
Se se reflete sobre a gênese destas duas obras, também aí sobressaem convergências significativas. Gilberto Freyre mais de uma vez declarou que na raiz da sua obra-prima pulsava a necessidade de esclarecer e definir sua identidade de brasileiro através da captação da nossa identidade coletiva constituída sobre fundamentos histórico-culturais. Mário de Andrade, de outra parte, persegue de modo obsessivo, na pesquisa intelectual infatigável tanto quanto na obra efetivamente realizada, sua identidade de brasileiro na identidade coletiva da nacionalidade.

Encerro esse paralelo genérico, e sabidamente insatisfatório, citando Antonio Candido. Inscreve ele no pórtico de “Literatura e Cultura de 1900 a 1945” uma tese que permeia o conjunto deste agudo ensaio de síntese de quase meio século da cultura brasileira. Sumariamente aqui traduzida, consiste tal tese no movimento dialético entre localismo e cosmopolitismo pontuando o desenvolvimento da vida espiritual brasileira em geral, assim como, em particular, a sua literatura (Literatura e Sociedade. 2a ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, pp. 109-111). Quando o primeiro pólo, localismo, dá o tom ao relacionamento dialético configurado na tese, as características nacionalistas comandam a cena cultural; no caso inverso, a aderência mimética e conformista aos padrões europeus assinala os momentos de exacerbação cosmopolita. Há entretanto momentos em que os dois pólos alcançam um ponto de equilíbrio harmonizando assim as influências europeias com valores propriamente brasileiros. Citando o próprio autor,
“Pode-se chamar dialético a este processo porque ele tem realmente consistido numa integração progressiva de experiência literária e espiritual por meio da tensão entre o dado local (que se apresenta como substância da expressão) e os moldes herdados da tradição européia (que se apresentam como formas da expressão)”.
Frisa então que o melhor das nossas realizações intelectuais e artísticas tem sido uma combinação afortunada – como se pode observar na obra de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Drummond, assim como nas de Gilberto Freyre e Mário de Andrade – desse equilíbrio ideal verificável entre o pólo do particular e o do universal. Se consideramos o conjunto da produção intelectual brasileira do século vinte, não restritamente a produção literária, penso que Mário de Andrade e Gilberto Freyre constituem a mais acabada expressão desse equilíbrio ideal entre o particular e o universal, entre a linha da tradição e a da modernidade.
Nota: Este artigo foi publicado em dois periódicos: Cadernos de Estudos Sociais, vol. 16, no. 2, Recife, julho/dez. 2000 e Quadrant, nos. 19-20, Montpellier, 2002-2003.

domingo, 6 de março de 2011

A Cultura Brasileira e suas Matrizes



O cerne da cultura brasileira é composto pela interpenetração de três matrizes: a indígena, a portuguesa e a africana. Noutras palavras, o que há de mais definidor e característico na nossa cultura é fruto do encontro, do entrechoque e do caldeamento dessas três culturas. Disso resultou uma cultura nitidamente híbrida ou mestiça, como é aliás a regra na história das culturas. Importa todavia ressaltar que esse processo de caldeamento, de integração entre grupos culturais tão diferentes e até antagônicos não se realizou de forma harmônica. Essa é a representação que correntemente percebemos na nossa tradição conservadora, sobretudo nas representações oficiais da cultura brasileira. Bastaria lembrarmos as imagens e sons difundidos triunfantemente pela mídia durante o carnaval, expressão suprema dessa nossa cultura híbrida, multicultural, como reza o slogan publicitário oficial, e tão ruidosamente festeira.

O processo de caldeamento e mistura do qual resultou a cultura brasileira foi muito mais complexo do que nos faz crer a ideologia oficial do Brasil. Ele é resultado da colonização imposta por uma minoria de origem portuguesa inicialmente ao elemento indígena, habitante primitivo do que viria a tornar-se o Brasil. Num momento posterior ele inclui o africano trazido como escravo para formar a força de trabalho que construiu a nossa sociedade. Portanto, o processo de formação da nossa cultura nada teve de harmônico, nada de pacificamente integrador. Por outro lado, ele foi ainda mais complexo porque de fato concorreu para aproximar e integrar esses grupos antagônicos através do intercurso sexual, dominante na relação entre o elemento europeu e o indígena, depois entre o europeu e o africano. Daí resultou a extraordinária diversidade mestiça do nosso povo.

Mais que um processo de simples mestiçagem racial, nossa mestiçagem foi também cultural, já que integrou as três matrizes formadoras em processos sociais complexos que envolvem religião, linguagem, culinária, festas e muitas outras expressões humanas compreendidas pela cultura. O fato é que essa interação complexa e profunda entre o índio, o português e o africano formou as bases do que hoje é a cultura brasileira. Bem mais tarde, sobretudo a partir de fins do século 19, grupos culturais de outras procedências somaram-se à nossa cultura. É o caso do imigrante italiano, do japonês, do sirio-libanês, do alemão etc. No entanto, além de se concentrarem no Sul do Brasil, chegaram a um país cuja cultura básica estava já bem consolidada. Sendo assim, ingressaram na nova cultura muito mais integrando-se a ela do que modificando-a.

Nas páginas de Casa-Grande & Senzala, obra consagrada como a mais importante sobre a formação da nossa cultura, Gilberto Freyre descreve e interpreta o processo de choque e integração entre as três matrizes formadoras do Brasil. Ele demonstra, por exemplo, como as relações de antagonismo econômico e social foram contrabalançadas pelas relações sexuais que se estabeleceram entre os grupos. Dada a sua condição de povo dividido entre dois continentes, o português trouxe para o Brasil uma experiência de mestiçagem já bem sedimentada que se ampliou muito mais ao contato com o indígena. Mais exatamente, com a índia. Mais tarde a mestiçagem se aprofunda ainda mais com a chegada dos diferentes grupos de origem africana. Gilberto Freyre estuda não apenas esses processos de acasalamento, mas também suas consequências socioculturais.

Também Darcy Ribeiro, assim como muitos outros estudiosos, escreveu um livro importante sobre o assunto do qual me ocupo neste artigo. Refiro-me a O Povo Brasileiro. Existe no mercado um ótimo documentário homônimo, dividido em dez capítulos e baseado no livro. Dirigido e idealizado por Isa Grinspum Ferraz, constitui fonte muito importante para o estudo da formação da cultura brasileira. Além do texto, fornecido pelo próprio autor e por outras fontes fundamentais citadas no documentário, o filme é plasticamente muito bonito e enriquece através dos meios visuais a percepção e a diversidade das nossas matrizes formadoras.

O documentário ilustra muito bem o que antes estudamos como o conceito sócio-antropológico da cultura. Observando as imagens que retratam a cultura indígena, percebemos não somente sua riqueza, mas também sua autossuficiência. Dizendo melhor, a cultura indígena, fruto das necessidades decorrentes da relação que o índio estabeleceu com o ambiente em que vivia, compreende todos os aspectos primários e complexos observáveis em qualquer cultura. Além de prover seus meios de subsistência através da caça, da pesca, da domesticação de plantas adotadas para fins nutritivos, como é o caso da mandioca, ele criou no ambiente da floresta, nos trópicos de difícil sobrevivência, todos os meios necessários à existência de um grupo humano.

Quando aqui aporta, o português, limitado por sua visão etnocêntrica, como de resto ocorre em toda cultura - já antes observei este ponto num artigo intitulado Etnocentrismo, Universalismo e Relativismo - foi incapaz de reconhecer a riqueza e autonomia da cultura com a qual entrou em contato. Sendo assim, impôs ao índio os valores e práticas de sua cultura. A catequese imposta pelos jesuítas ao elemento indígena constitui talvez o melhor exemplo do contato entre culturas que resulta em choque e imposição. O que ocorreu, de fato, foi um verdadeiro processo de etnocídio, isto é, um processo de destruição das bases culturais do indígena pela imposição da cultura dominante, a portuguesa.

O português viu no índio, antes de tudo, um objeto de exploração econômica, já que sua ambição ao colonizar os trópicos era acumular riqueza. Daí a imposição do trabalho forçado ao índio. Como este resistiu tenazmente à escravidão, o português recorreu por fim ao africano, que aqui chegou já escravizado para garantir a reprodução da força de trabalho e da riqueza acumulada pelo português dominador.
Apesar da sua condição de escravo, o elemento africano foi tão decisivo na nossa formação cultural que Gilberto Freyre a ele se refere em Casa-Grande & Senzala como um autêntico agente civilizador do Brasil. De fato, é extraordinária a forma como o elemento negro marcou de forma tão profunda, tão indelével, uma cultura na qual ingressou como escravo, sofrendo, portanto, todos os horrores da escravidão durante séculos. Sua contribuição é nitidamente reconhecível em todos os aspectos significativos da nossa cultura. Apesar da sua condição subordinada, mesmo depois da abolição formal da escravidão, já que a abolição foi na verdade mais formal do que real, o negro formou e transformou a composição da nossa cultura através do trabalho, dos hábitos alimentares, das práticas religiosas, da linguagem, da sua espantosa energia de vida tão patente nas festas, jogos, nas expressões dionisíacas e mágicas de sua cultura.

Como antes observei, o processo de caldeamento das nossas matrizes culturais foi complexo e original. Através de meios tanto violentos quanto integradores, os grupos nele envolvidos criaram um país e uma cultura de características singulares. Um exemplo que ressalta nessa singularidade é o que diz respeito à nossa mestiçagem e à forma como se processam nossas relações raciais. Diferentemente dos Estados Unidos, onde as relações entre brancos e negros foi marcada pela segregação racial e linhas de separação bem nítidas, aqui no Brasil a escravidão misturou os polos antagônicos. Há uma expressão muito feliz que sintetiza a diferença entre Brasil e Estados Unidos com relação a esse problema. Enquanto eles, os americanos, são iguais, mas separados, nós somos desiguais, mas juntos. Explicando melhor essa distinção, lá os americanos criaram leis que asseguram a igualdade legal, mas mantém separados os brancos e os negros. Aqui não fomos capazes de instituir a igualdade de fato perante a lei, mas vivemos juntos, misturamos de muitos modos as nossas diferenças e antagonismos sociais.

Concluiria frisando que a forma como criamos meios culturais de expressão da nossa mestiçagem tem muito de positivo. Mas importa prevenir, mais uma vez, contra a representação integradora da nossa mistura na visão oficial ou dominante no Brasil. Ela nos representa como um povo portador de uma cultura mestiça ou híbrida cuja virtude maior reside na integração harmoniosa da nacionalidade. Essa imagem é difundida principalmente pela mídia e a propaganda oficial. Como acima salientei, ela é bem visível durante nossas grandes festas, notadamente no carnaval, na música e no futebol. Mas essa imagem idealizadora do país contém um avesso sombrio e violento suprimido pelos meios de comunicação de massa. Ela suprime as brutais condições de exploração do trabalho no Brasil, ainda herdeiras do nosso passado escravista. Ela suprime nossas formas dissimuladas de racismo e outras formas de opressão incompatíveis com um regime autenticamente democrático.

Importa ter em mente essa face dupla da nossa cultura, dividida entre a integração e o conflito cultural, para evitarmos uma visão parcial e idealizada da nossa cultura. Precisamos assimilar essa compreensão mais realista e complexa da cultura brasileira para, de um lado, melhor valorizarmos o que temos de bom, o que merece ser louvado e preservado; de outro lado, lutarmos para modificar condições de opressão e desigualdade que continuam mantendo o Brasil numa posição incompatível com uma sociedade verdadeiramente democrática, incompatível ainda com um país cuja economia passou a figurar entre as dez maiores do mundo. Portanto, nosso problema maior já não é o do subdesenvolvimento econômico que nos castigou por tanto tempo, mas o de uma mais justa distribuição da riqueza, o problema de uma autêntica democracia econômica e social. Enquanto não realizarmos esse ideal, continuaremos longe de ter motivos realistas para celebrarmos o país que somos.
Fontes complementares:
Além dos dois livros citados, Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, recomendo também o documentário baseado no livro de Darcy Ribeiro e também citado no texto.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Etnocentrismo, Universalismo e Relativismo




Este artigo compõe ainda a moldura teórico-conceitual necessária para a adequada exposição e desenvolvimento da substância da disciplina cultura brasileira que tem ocupado fração significativa da minha atividade docente. Dentre os três conceitos acima, o primeiro é mais simples e fundamental. Tão fundamental que constitui um dos princípios metodológicos indispensáveis para quem de fato queira compreender sociologicamente qualquer sociedade e sua cultura. Os dois restantes, universalismo e relativismo cultural, são bem mais complexos e polêmicos. Embora tenha isso em mente, preciso abordá-los de algum modo no contexto deste artigo.

Comecemos, portanto, pelo sentido do termo etnocentrismo. Como a composição da palavra já o indica, ser etnocêntrico é adotar como centro sua própria etnia. Dizendo isso de um outro modo, é tomar a nossa cultura, no sentido antes explicitado, como o centro de normalidade e sentido do mundo. Uma pessoa etnocêntrica comporta-se como se a sua cultura, os valores fundamentais da sua cultura, fossem o centro e o critério do que é certo, normal, verdadeiro e portanto melhor. O mais grave é que procedemos desse modo de forma espontânea. Mesmo o sociólogo, o antropólogo treinado pela sua ciência para reconhecer que existe no mundo uma extraordinária diversidade de culturas, algumas dotadas de valores, práticas e sentidos completamente incompatíveis entre si, mesmo este profissional das ciências sociais incorre inconscientemente em atitudes etnocêntricas.

Exponho um exemplo histórico que ilustra essa questão melhor do que qualquer exposição puramente conceitual e teórica. Quando o colonizador português e o jesuíta aportaram na costa brasileira, defrontaram-se com um povo e uma cultura radicalmente diferentes da sua. O que fizeram eles, com sua cultura técnica e sua religião mais poderosas? Impuseram ao indígena uma cultura que representou para este um verdadeiro processo de extermínio e supressão da sua identidade. Foi o que hoje chamaríamos de lavagem cerebral. Além de vestirem o índio e lhe imporem uma religião completamente incompatível com a sua, impuseram-lhe valores econômicos e culturais baseados numa noção de individualismo e propriedade privada que eram o avesso da cultura tribal ou comunitária dos grupos indígenas.

Como hoje perfeitamente sabemos, valores psicossociais típicos de uma pessoa moldada pela economia capitalista, como aqueles associados à economia privada, ao lucro, à exploração econômica do outro, ao espírito de acumulação material etc, eram totalmente estranhos às culturas indígenas. Também a noção de individualismo, inscrita no cerne dos valores psicossociais acima referidos era totalmente alheia ao mundo primitivo que o português ocupou e depois passou a colonizar no início do século XVI. Raciocício semelhante aplica-se aos valores religiosos e outros que são fundamentais para a articulação do que entendemos como identidade cultural.
Devido aos motivos acima esboçados, o etnocentrismo é mais que um conceito; ele é, na verdade, um dos fundamentos metodológicos da investigação da realidade cultural. Sabemos que o termo método quer simplesmente dizer caminho ou conjunto de meios que o estudioso adota para chegar ao alvo do seu estudo ou investigação. Portanto, o etnocentrismo é um obstáculo tão grave que na prática anula qualquer possibilidade de conhecermos efetivamente a realidade que estudamos.

Como já observei, somos espontaneamente etnocêntricos. Por que isso acontece? A razão provável reside no fato de que assimilamos ou internalizamos a cultura na qual nascemos e nos formamos, através do que antes designei como processo de socialização, como se ela fosse o centro do mundo, a expressão do que há de certo, aceitável e verdadeiro em termos culturais. A cultura torna-se para nós algo que nos molda, que se converte numa espécie de segunda natureza para nossa vida. É por isso que pensamos com a nossa língua, expressamo-nos com a nossa língua de modo tão espontâneo que ela passa a funcionar na gente como se fosse algo de natureza inconsciente. É por isso que não conseguimos compreender verdadeiramente outra cultura, sobretudo quando é profundamente diferente da nossa, se não pusermos nossa cultura entre parênteses. É também por isso que se pode com certeza afirmar que essa disposição espontaneamente etnocêntrica é um dado universal, isto é, manifesta-se em todo e qualquer grupo humano, em toda e qualquer cultura.

Acredito que essa operação mental necessária à superação do etnocentrismo não é totalmente possível, mas é possível o suficiente para que a gente se coloque na perspectiva do outro, na cultura do outro. Este é o único meio possível de compreendermos a realidade de uma outra cultura. É também por isso, e por ter consciência do quanto sua percepção da realidade é etnocêntrica, que o antropólogo pratica pesquisa de campo, vai viver no meio de uma tribo durante tempo suficiente para ser aceito e assimilar os valores e percepções daquela cultura até sentir-se em condições de traduzi-la de algum modo para os códigos da sua cultura de origem.

Gilberto Freyre designou o processo mental e metodológico acima descrito com o termo empatia. Mas do que um esforço espontâneo ou deliberado de identificação com o outro, o estranho, o que não é parte da nossa cultura e dos nossos valores fundamentais, a empatia significa tornar-se o outro. Gilberto Freyre procurou exemplificar esse fenômeno indicando seu próprio exemplo, a maneira como procurou compreender sociológica e antropologicamente o processo de formação da cultural brasileira baseado nas três matrizes que adiante estudaremos: a indígena, a lusa e a africana. Ele observa então que para escrever Casa-Grande & Senzala tornou-se empaticamente o índio, o colonizador luso, o escravo africano, o homem patriarcal, a mulher, a escrava, o menino da casa-grande e toda a galeria impressionante de tipos sociais que desfilam nas páginas da sua obra-prima.

É no sentido acima que é justo dizermos que, como método de investigação, o relativismo cultural é uma necessidade. É preciso, noutras palavras, partirmos do pressuposto da infinita variedade das culturas e da singularidade de cada uma delas. O problema com o conceito de relativismo, sobretudo no seu uso corrente, é que muita gente salta deste fato metodologicamente adotado pelas ciências sociais para afirmar que cada cultura é única e portanto intraduzível numa outra. Afirmam ainda que não podemos julgar nenhuma cultura, pois cada uma, sendo única, é intraduzível fora de si própria.

Se levamos o relativismo a esse extremo – algo traduzível no lugar comum: cada cabeça, cada sentença, pensemos ainda no célebre postulado do filósofo grego Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas” – então ficamos de mãos atadas para julgar qualquer valor, costume ou prática de outra cultura. Propondo um exemplo concreto: dentro dessa moldura não temos como julgar horrores como o nazismo ou culturas onde a mulher é sujeita a formas brutais de opressão. Neste último caso, bastaria lembrarmos o caso recente, de repercussão mundial, da iraniana Sakineh, acusada de adultério e portanto condenada, segundo as leis e práticas culturais do seu país, à morte por apedrejamento público.

Mas eis que aqui entra em cena o outro conceito chave, o conceito de universalismo cultural. Ele constitui o oposto ou avesso do relativismo. A primeira vista, parece insensato falar de universalismo quando observamos a extraordinária diversidade e até antagonismo das culturas humanas. Além disso, estamos vivendo numa atmosfera cultural baseada na defesa intransigente do relativismo e da infinita variedade de particularismos culturais. Cada cultura, sentindo-se ameaçada pela presença dominadora dos processos econômicos e culturais da globalização, reivindica sua singularidade, sua autonomia ilusoriamente separada da rede de intercâmbios de todo tipo que atravessa nossa realidade cotidiana. Os movimentos das minorias (aqui incluído o da mulher, que estatisticamente não é minoria), também clamam pela singularidade da sua cultura ou subcultura.

Diante do quadro acima, que poderia descrever com maior amplitude de exemplos, qualquer defesa de uma perspectiva universalista é não raro desqualificada como dominação mascarada do Ocidente ou das forças culturais dominantes. Isso sem dúvida ocorre em muitos casos. Mas importa lembrar que, privados de critérios universalistas, ficamos de mãos atadas para tomar posição, para julgar situações de opressão ou horror concretos, como é o caso da iraniana Sakineh, acima mencionado. Que posição tomar diante de ditaduras brutais que desprezam os direitos humanos mais elementares? Denunciar essas violações é simplesmente fazer o jogo do imperialismo ocidental, que inventou o código dos direitos humanos?

Outra questão. Ou melhor, falo agora de uma evidência. Todos nós, seres humanos, compartilhamos certas características fundamentais, não obstante a diversidade de costumes e valores culturais que nos separam. Nosso aparelho biológico, nossas emoções fundamentais, nossas necessidades primárias apontam para um sentido de universalidade que me parecem transcender as inegáveis e desconcertantes diferenças constatáveis na face dos hábitos, práticas e valores culturais. É isso, de resto, o que nos autoriza a falar de uma espécie humana comum, apesar da sua pluralidade espantosa.

O crítico relativista pode objetar às ponderações universalistas acima afirmando que o conceito universalista não passa de uma abstração, no caso generosa, desmentida pela observação mais elementar da clamorosa variedade das culturas humanas. Essa variedade é um fato, como já assinalei. Quanto ao caráter abstrato do conceito de universal, ela é também constatável nos conceitos que a ele se opõem, como os de identidade, singularidade cultural etc. Aliás, qualquer operação conceitual supõe um processo de abstração constitutivo da própria atividade cognitiva. Além disso, conceitos dessa natureza implicam construções mentais e imaginárias características da representação mítica da realidade. Quero dizer, não só o conceito de universal encerra componentes míticos, mas também os de cultura e seus qualificativos. Nada de mais mítico, por exemplo, do que a noção corrente de cultura brasileira, assim como a de identidade cultural.

Por isso concluo que, mito por mito, antes o universal que fornece parâmetros éticos passíveis de transcenderem os limites da singularidade cultural por definição fechados sobre si próprios. Se queremos e precisamos estabelecer comparações éticas, comparações entre valores culturais, não há como assim proceder sem explícita ou implicitamente adotar valores transcendentes aos fatores comparativos em questão. Mesmo o crítico ou estudioso relativista incorre nesse tipo de precedente, quer o admita limpidamente ou não. Todos os nossos grandes nacionalistas culturais, portanto relativistas em maior ou menor grau, adotaram procedimento semelhante e traçaram nas suas obras relações de comparação entre culturas. É fácil verificar esse procedimento comparativo nas obras de Gilberto Freyre, Mário de Andrade, Darcy Ribeiro...

Essas ponderações finais constituem antes pontos necessários de reflexão e debate do que verdades objetivamente sustentáveis. Como antes observei, estas questões da cultura são objeto de debates acalorados e polêmicas aparentemente insolúveis. Sugiro para quem queira apreciar mais amplamente estas questões dois livros muito importantes de Sérgio Paulo Rouanet. Sua abordagem é apaixonadamente universalista e portanto seu tom é às vezes muito polêmico. Mas a leitura dos dois livros que abaixo indico é muito proveitosa, seja você um adepto da perspectiva universalista, seja relativista.
Sérgio Paulo Rouanet – As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Idem – Mal-estar na Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Ver também:
http://fmlima.blogspot.com/2010/09/robinson-crusoe.html
http://fmlima.blogspot.com/2010/11/o-preconceito-do-preconceito.html
http://fmlima.blogspot.com/2010/09/robinson-crusoe.html
Recife, 1 de março de 2011.