terça-feira, 29 de março de 2011

Capitalismo à Brasileira




Declaro que este artigo é antes de tudo um desabafo, um testemunho de indignação. Portanto, advirto de saída o leitor acerca da disposição subjetiva com que o escrevo. Isso evidentemente não me autoriza a fechar os olhos para fatos imperativos da realidade. Sendo assim, começo reconhecendo algumas verdades óbvias: os avanços econômicos decorrentes dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva. O Brasil avançou em muita coisa e a massa sofrida e oprimida tem raspado no prato raso os despojos dos banquetes da nossa impiedosa camada privilegiada da qual, aliás, sou beneficiário menor. Indo além do prato raso, o povão passou a ter acesso a outro patamar de consumo. Longe de mim, portanto, negar estes e outros fatos positivos que pontuam o melhor do Brasil no decorrer dos últimos 16 anos.

Meu assunto é outro. Apesar dos avanços acima grosseiramente pincelados, nossas instituições fundamentais continuam muito distantes do padrão de civilidade, de respeito à cidadania que prezaria reconhecer como parte substancial da nossa sociedade. Escrevo este artigo em tom de desabafo indignado porque sou todos os dias de modos variáveis agredido no exercício dos meus direitos. As operadoras de telefonia, poderosas corporações econômicas que acumulam lucros fabulosos no Brasil, abusam dos meus direitos mais elementares. É inútil brigar com elas ou recorrer à Anatel, instituição cujo dever é fiscalizar as operadoras. Nos aeroportos sou igualmente vítima de abusos inconcebíveis numa sociedade efetivamente democrática. Também aqui é inútil recorrer às instituições encarregadas de fiscalizar a qualidade dos serviços prestados ao usuário.

Já que empreguei o termo qualidade, convém frisar o sentido correntemente atribuído à expressão “qualidade de vida”. Para começar, isso é antes um slogan publicitário do que uma realidade social. Quando de ordinário falamos de qualidade de vida, na mídia e além dela, estamos falando de acesso a bens de consumo conspícuo. Tudo no capitalismo real instituído neste país parece resumir-se a operações de guichê e cartão de consumo. Como falar de qualidade de vida num país onde as instituições socializadoras fundamentais não funcionam? Trocando em miúdos, quem de fato acredita na qualidade real das nossas escolas, não excluo a maioria das privadas, nas instituições religiosas, na polícia, nas instituições estatais responsáveis pelas políticas públicas, nos órgãos estatais que supostamente existem para controlar e conter os abusos impostos pelos poderosos à maioria de mãos atadas?

Por volta de 1880 Joaquim Nabuco escreveu que a escravidão permaneceria viva durante muito tempo nas nossas relações sociais. De fato, logo depois veio a abolição formal da escravidão, já que a massa dos escravos foi mantida nos termos da sua condição precedente, e desde então muita água rolou sob as pontes – também sobre, como estamos cansados de ver e sofrer nas nossas cidades grandes e pequenas depois de uma hora de chuva. Bem mais de um século mais tarde, a previsão lúcida de Joaquim Nabuco está ainda viva no cotidiano da nossa realidade social. O Brasil tornou-se bem mais complexo, tão complexo que definitivamente escorre entre as frestas da rede na qual amadores e explicadores profissionais tentam retê-lo e decifrá-lo. Temos muito do que de tecnologicamente mais avançado existe nos países do capitalismo central, mas tudo isso convive ombro a ombro com os veios profundos das nossas piores tradições.

Desviando o olhar deste artigo que digito ao pé de minha janela, vislumbro lá fora a paisagem potente dos arranha-céus que se elevam cada vez mais aceleradamente tangidos pela vitalidade da economia brasileira. Mas o operário da construção civil continua caindo dos andaimes pingentes, como diz a canção de Chico Buarque, mourejando como um servo e morando provisoriamente nos prédios que constrói para usufruto da classe média. Quando o prédio fica pronto, ele põe a trouxa nas costas como um cigano espoliado na linha de produção do capitalismo à brasileira.

O Estado é o maior vilão do capitalismo à brasileira. Desde suas origens já bem remotas, ele existe como Estado patrimonial, isto é, como um Estado a serviço de uma casta privilegiada. Vem governo e sai governo, não importa de que tendência ideológica, e no entanto nossos vícios profundos persistem. O Estado funciona antes de tudo para assegurar a manutenção de privilégios, a política da corrupção endêmica, a impunidade cinicamente praticada e encobertada, quando não justificada num tom somente concebível num país onde a lei é coisa para inglês ver, como reza a vetusta e bem viva tradição farsesca da democracia à brasileira. A era PSDB-PT, que governou o país durante os últimos 16 anos, não alterou nem ousou alterar a substância dessa realidade. As reformas fundamentais necessárias à instituição de um Estado efetivamente democrático continuam existindo apenas como conversa da boca pra fora, como foguetório de campanha eleitoral.

Como o povo no Brasil é no geral politicamente desorganizado ou apático, não faltou quem ao longo da nossa história apostasse no Estado como instrumento fundamental de reforma, quando não de revolução social. Apesar das tentativas e abalos observáveis na nossa história política, a essência do Estado patrimonial se mantém. Raimundo Faoro, melhor que qualquer outro, estudou seus mecanismos de enraizamento e manutenção. Quanto ao pensamento de esquerda, deu muitas vezes com os burros n´água quando tentou realizar revoluções e mesmo reformas profundas a partir dele.

E o que dizer do povo, esse nosso povo sofrido que tanto ama futebol, carnaval e samba? Pelo visto, sua capacidade de organização respeitada e até temível se esgota nos itens que acabo de enumerar. Ai do Corinthians se for cuspido da Libertadores ou rebaixado para a segunda divisão do campeonato brasileiro. Ai da nossa capenga estabilidade social sem a energia caótica e anômica do carnaval, que agora espicha o calendário convencional a seu gosto e capricho. Ai do samba se não levar o povão para as ruas e não balançar as cadeiras sensuais e suadas da mulata assanhada.

Quanto à política... bem, esta o povo continua deixando-a nas mãos dos políticos, que compreensivelmente esfregam as mãos de contentamento. Portanto, longe de mim o romantismo populista de Darcy Ribeiro, que com uma mão debitava toda nossa fabulosa dívida histórica às elites canalhas, enquanto com a outra inocentava o povão vítima, tão lindo e sensual no paraíso da sua mestiçagem. Dizem os otimistas que a longo prazo tudo isso mudará. Suponho que, além de otimistas, sejam eternos. Os mortais como eu têm perfeita consciência de que a longo prazo todos estaremos mortos.
Recife, 24 de fevereiro de 2011.

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