sexta-feira, 25 de março de 2011

A Utopia Existe




Sabem os leitores cultos, ou meros ratos de dicionário etimológico, que utopia quer dizer lugar nenhum ou lugar inexistente. A maior evidência da nossa natureza entranhadamente descontente, ou possuída pela miragem do irrealizável, consiste no fato de havermos convertido a utopia no mais extraordinário, insaciável e despótico capítulo da história das ideias. Nela inspirados, por ela cegamente movidos, milhões de seres humanos converteram um sonho, o lugar inexistente ou a sociedade utópica, numa assombrosa corrente de ideias, projeções imaginárias e fantasias infrenes. Mais poderoso e inquietante do que tudo isso é o fato de que essas maquinações humanas se desataram do reino das ideias e da imaginação para se converterem numa outra ordem de realidade ou expressão histórica. Quero dizer, passaram da ordem das ideias e da imaginação para a dos fatos.

O primeiro marco dessa epopeia que viso erraticamente esboçar é a Utopia de Thomas Morus, que aliás perdeu literalmente a cabeça. Não por conceber a sua utopia, marco nominal desse fantasma perene que assombra nossa passagem pelo mundo, mas por se opor, como autoridade suprema da religião na Inglaterra do seu tempo, às maquinações políticas e amorosas do soberano Henrique VIII. Aliás, corrigindo a tempo minha ignorância, antes de Thomas Morus houve Platão, Santo Agostinho e outros utópicos e utopistas.

Sendo antes de tudo uma projeção imaginária, a utopia encerra duas características fundamentais. Em primeiro lugar, constitui uma crítica do presente, não raro de forma críptica ou velada, um libelo contra as injustiças da sociedade enquanto tal. Impedida de realizar-se como crítica nua e crua da tirania inscrita na face do presente, ela se dissimula sob as vestes imaginárias da ficção projetando em um lugar inexistente, a utopia, o mundo que sonhamos e por isso constitui a negação do mundo real que combatemos. Dando provas de que no século 20 o mar não estava mesmo para peixe, muito menos para miragens paradisíacas, nele emergiram, na contracorrente do totalitarismo, várias obras que inverteram o gênero utópico fundando na literatura a distopia ou antiutopia. Bastaria lembrar Zamiatin, Arthur Koestler, Aldous Huxley e George Orwell.

O mundo que sonhamos, esse produzido pela imaginação utópica, constitui, noutras palavras, a segunda característica fundamental do pensamento utópico. Assim, a crítica do presente, ou do real enquanto dado opressivo e empírico, se enlaça à projeção do mundo impossível ou inexistente. Sucede que nossa natureza, cindida entre a realidade e a imaginação, que são de resto indissociáveis, daí distingui-las antes de tudo por razões de conveniência argumentativa, nossa natureza, dizia eu, é possuída pelo desejo de converter a utopia em realidade.

Quando descamba para o reino da política a utopia finda convertendo-se em tirania sanguinária. Em nome dos mais belos e impossíveis ideais, ela se instala como utopia e acaba como terror instituído sob as vestes dos mais belos ideais concebidos pela imaginação humana. Basta lembrar a Revolução Francesa, inspirada pela trindade Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Quantas cabeças não rolaram em nome desses bens inatingíveis, quanto sangue a guilhotina não verteu no reino do terror que se dizia libertário e fundador da utopia? Mutatis mutandis, o enredo se repete na Revolução Russa de 1917. O mais impressionante é constatar o quanto nosso desejo da utopia é sempre mais poderoso do que a realidade, cujos fatos logo comprovam o quanto a política inspirada por ideais utópicos logo se corrompe em tirania e terror. Os próprios intelectuais, suposta consciência crítica da sociedade, embarcam servilmente na defesa da tirania exercida em nome da utopia. Quantos durante décadas não prosseguiram louvando e lutando pela Revolução Russa, Stálin e outros “benfeitores” marxistas da humanidade? Utopia, quantas mentiras não inspiraste?

Catástrofes semelhantes ocorreram quando a utopia nutrida pela religião contaminou-se da política, isto é, aliou-se ao Estado para realizar neste mundo, ou reino da imanência, ideais utópicos que antes convêm ao reino da transcendência. Trocando em miúdos, ao céu ou nossas delirantes projeções do céu. Aliás, bem que podemos nesse sentido dizer que o marxismo não passou de religião secularizada. Como bem observou Chesterton, quando paramos de acreditar em Deus, passamos a acreditar em qualquer coisa.

Há quem acredite em Papai Noel e Xuxa; há quem acredite numa revolução existencial a cada passagem de ano, embora nossas vidas individuais continuem as mesmas, quando não piores. O processo de acelerada secularização da cultura e da religião decisivamente concorreu para que as pessoas passassem a acreditar em Deus apenas como uma mercadoria rentável. Outra consequência da secularização ou racionalização da cultura se espelha na deificação do artista pop e do jogador de futebol. Diante de tudo isso, parece-me insensato, ou pura perda de tempo, querer persuadir as pessoas de que a utopia não existe, de que suas maquinações imaginárias, que vão de Deus ao Shopping Center como expressão do paraíso mercadológico, não passam de delírio facilmente desmontável pela evidência objetiva da realidade, ou pelo discurso racionalista.

É evidente que aludo agora à utopia num sentido bem amplo, confundindo-a assim com qualquer tipo de invenção imaginária carente de comprovação empírica. Tomando-a nestes termos, reitero minha afirmação: a utopia existe. Parece-me pura perda de tempo tentar convencer os carentes de mito e fantasia, de ilusão e esperança, de que a realidade se esgota nos limites do comprovável, do aferível, do que se pode objetivamente assinalar no âmbito da nossa experiência.

A utopia existe e muita gente decerto seria incapaz de suportar a realidade privada desse tipo de projeção imaginária. O que pragmaticamente procuro imaginar é uma expressão de ordem utópica dissociada de qualquer poder político. Nesse sentido, é fundamental preservar a distinção entre Estado e Igreja, conquista da modernidade que felizmente nos põe a salvo da insanidade que, invocando a utopia, aspira a fundar no século a sociedade ideal. A experiência histórica comprova que esse foi o caminho mais curto para a realização do inferno neste mundo. Aliás, não sei de outro.
Encerro o artigo com a transcrição parcial de um diálogo travado pelos dois personagens de um conto meu cujo título é “A nudez do escritor tímido”:
“É possível tolerar nossa vida individual regida pela dúvida?
Penso que sim. A aprendizagem é longa e tormentosa, mas alguns se libertam da rede de crenças ilusórias que escoram nosso medo e o vazio flutuando à borda do abismo. Não esqueça de que as mais terríveis atrocidades produzidas pela história humana são fruto de alguma crença, alguma convicção cega e poderosa, algum sistema de fé. A crença, transformadora ou reativa, convertida em energia de ação social, tem sido a grande geradora de devastação da humanidade e do mundo natural. O mal que causei a este mundo derivou quase sempre do impulso vindo de alguma fé consciente ou obscura. Seríamos mais livres e menos destrutivos se aprendêssemos o dom da dúvida liberadora”.
Recife, 1 de janeiro de 2011.

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