Para Antonella.
Gilberto Freyre inicia um dos seus ensaios assinalando relações de afinidade histórico-cultural entre paulistas e pernambucanos (Ver “Modernidade e modernismo nas artes”, in Vida, forma e cor). O tema, frequente em muitas das suas páginas, é no ensaio retomado com o aparente propósito de acentuar pontos de convergência entre os dois estados. O foco é histórico-cultural, sempre deslizando para a fixação de um ethos descrito com base em fontes históricas livremente utilizadas pelo autor na composição das suas obras mais significativas. Transitando das generalidades históricas para a fase da nossa cultura moderna na qual se inscreve a sua obra, passa Gilberto Freyre a considerar especificamente o papel desempenhado pelo modernismo de São Paulo na constituição dessa cultura. Embora reconheça seu caráter renovador, critica-o por se mostrar no conjunto incapaz de converter o movimento, modernismo, num modo substantivo de ser, isto é, ser moderno. Esta a fraqueza fundamental do movimento paulista. Nas palavras do próprio Gilberto,
“...(o modernismo) envelheceu depressa pelo fato de se ter contraído e sistematizado numa quase seita de adoração do que fora apenas um momento ou um instante – instante libertador, revolucionário, violentamente antiacadêmico – na vida do brasileiro criado com muita gramática ou com excessivo respeito pelas academias”.O foco desta crítica se estreita especificando-se na figura de Mário de Andrade. Diferentemente de Oswald de Andrade, com quem é negativamente contrastado na distinção proposta por Gilberto entre moderno e modernista, Mário teria sido incapaz de transcender o momento puramente contestador dos códigos estéticos estabelecidos incorrendo assim em mimetismos vanguardistas indicativos de subserviência mental à cultura europeia. Em suma, a insuficiência de Mário de Andrade traduziria a própria insuficiência fundamental do movimento que liderou: um modernista incapaz de se fazer moderno.
É por demais sabida a resistência de Gilberto Freyre ao modernismo de São Paulo. Tal resistência é compreensível, talvez inevitável, se se considera a posição secundária atribuída ao regionalismo originário de Recife que nele encontrou a figura do líder e animador inconteste. Dada a hegemonia cultural exercida pelo eixo Rio-São Paulo, as forças culturais mais renovadoras desenvolvidas nas décadas de vinte e trinta foram no geral associadas à corrente triunfante do modernismo paulista. A própria crítica de corte modernista, assim como sua historiografia correspondente, tende a incorporar ao modernismo o impacto e a dimensão mais renovadora de obras como Casa-Grande & Senzala e o movimento de renovação da narrativa regionalista do Nordeste.
Consciente da importância da sua obra, ampliada em ação pessoal e continuada de liderança junto a numerosos artistas e intelectuais, Gilberto Freyre viu-se muitas vezes compelido a reivindicar em prefácios, artigos e ensaios um papel de absoluta autonomia para o movimento que comandou a partir de Recife. Ao fazê-lo, porém, incorreu por vezes em formulações polêmicas merecedoras de apreciação mais isenta do leitor e crítico da sua obra. Um dos propósitos deste artigo é, por conseguinte, fixar dentro de uma linha de necessária isenção crítica a imagem do modernismo fundada antes na apreciação das suas características culturais historicamente aferíveis do que em juízos polêmicos resultantes de lutas por hegemonia no campo cultural.
Outro motivo que por certo decisivamente concorreu para pontuar a resistência e hostilidade de Gilberto Freyre contra o modernismo paulista deriva da polêmica travada com Joaquim Inojosa. Entusiasta do movimento paulista, Inojosa logo se tornou no ambiente de Recife um propagandista do novo ideário. Sua ação militante coincide com o momento em que Gilberto retorna a Recife e gradualmente desenvolve nos limites da província um movimento de revalorização das tradições regionais. Esse movimento, como é sabido, se define melhor com a publicação do Livro do Nordeste e a realização do Congresso Regionalista e atinge sua expressão mais alta e definitiva em 1933, quando da publicação de Casa-Grande & Senzala. Ora, se já no início do processo ele compreensivelmente se distancia do movimento representado em Recife por um mero epígono, um propagandista incapaz de realizar obra de qualidade própria, a afirmação objetiva da sua importância, nacionalmente consolidada com a publicação de Casa-Grande & Senzala decerto contribuiu para legitimar suas justas reivindicações de autonomia perante o modernismo paulista. Ao fazê-lo, porém, Gilberto Freyre por vezes cedeu à tentação, sempre inspirada por circunstâncias de natureza polêmica, de confundir o modernismo e a obra de Mário de Andrade com a dos epígonos, sobretudo regionais. A isso seria necessário acrescentar fatores tais como a rivalidade regional estabelecida entre São Paulo e o Nordeste, agravada pela expansão socioeconômica daquele em contraste com a longa e lenta decadência deste, a crise de poder detonada pela Revolução de 30 e a institucionalização do modernismo nos anos que se seguem a 1930.
Num documento de publicação tardia, Mário de Andrade esclarece as circunstâncias que definitivamente o afastaram de Gilberto Freyre antes mesmo de qualquer aproximação efetiva. O que abaixo descrevo, importa frisar nesse terreno minado por apreciações parciais, é o seu ponto de vista. Em carta endereçada a Guilherme de Figueiredo poucos meses antes de morrer, Mário refere-se a Gilberto como alguém distante. Por um momento, em meados dos anos vinte, foi informado a respeito deste através de amigos comuns residentes no Rio de Janeiro: Manuel Bandeira, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Moraes, neto. Se estes de um lado já demonstravam admiração por Gilberto, de outro assinalavam seu espírito malicioso, sempre inclinado a troçar mesmo dos amigos mais íntimos. Mário atribui a isso o fato de nada haver feito no sentido de então encontrar Gilberto.
Mas eis que Prudente de Moraes, neto, co-editor de Estética, o periódico modernista sucessor de Klaxon, publica no no. 3 desta revista uma resenha sobre A Arte Moderna, de Joaquim Inojosa. Nesta obra, lançada no Recife em 1924, intenta o autor divulgar, em linguagem polêmica, o ideário modernista para o público de Recife. Embora distinguindo-o com comentários elogiosos - Inojosa era afinal o propagador do modernismo em Recife, onde também representava Estética por indicação expressa de Mário de Andrade e dos editores do periódico – observa o resenhista o quanto a derivação do modernismo na província andava em descompasso com o centro dinâmico do movimento:
“Mas Pernambuco, sem excetuar o sr. Inojosa, ainda está na primeira fase do modernismo. Fase de revolta, de violência destruidora, de desorientação, em que se cultiva o absurdo pelo absurdo, a esquisitice pela esquisitice, as máquinas, modas, invenções, toda essa parte exterior da vida contemporânea pela aparência de atualidade do aproveitamento delas como motivo artístico. Seria inútil negar que todos tivemos esse período, que o futurismo italiano não conseguiu ultrapassar. (...) Depois, uma compreensão melhor do modernismo nos ensina a estabelecer algumas diferenças; cada um vai encontrando seu caminho e a gente perde a preocupação com os últimos inventos e últimas modas”.Dado que a citação foi demasiado longa, refaço com palavras minhas outros pontos da resenha necessários à precisa caracterização do problema aqui discutido. Acrescenta Prudente de Moraes, neto, que a desorientação e a confusão de valores são defeitos evidentes na plaqueta assinada por Joaquim Inojosa. Como agravante, conhece imperfeitamente a história do modernismo. Seu relato da Semana de Arte Moderna, sempre de acordo com o resenhista, “só tem de exato a vaia”.
Pode-se aí nitidamente perceber como os modernistas mais consequentes tinham já revisto os excessos de contestação e até inconsequências que tingiram as lutas e tomadas de posição iniciais. E note-se que a resenha é assinada por um então militante do modernismo, editor, com Sérgio Buarque de Holanda, de um dos mais importantes periódicos do modernismo. Outra nota relevante prende-se ao fato de que ambos nesse momento se distanciam da suposta liderança intelectual de Graça Aranha ao mesmo tempo em que, movidos por razões de afinidade intelectual e ideológica, aproximam-se independentemente tanto de Mário de Andrade quanto de Gilberto Freyre.
Voltando à carta de Mário de Andrade, escreve ele a Prudente criticando-o por tratar Inojosa com tanta severidade na sua resenha. Dado que Mário era já o líder do movimento, atenua suas restrições a Inojosa cioso talvez de não melindrar o epígono combativo de Recife. Por artes do destino, ou mero acaso, Gilberto Freyre visita Prudente no momento em que este lia a carta enviada por Mário de Andrade. Como Gilberto era já inimigo de Inojosa, ao tomar conhecimento da carta de Mário decide-se a rejeitar este para sempre. A decisão de Gilberto perdura até 1928, quando Mário, viajando pelo Nordeste, é recebido por ele em Recife. Não o fez porém sem muita resistência, afinal vencida pela mediação de um grande amigo de ambos: Manuel Bandeira, também coincidentemente visitando sua cidade natal. A julgar pela curta anotação feita por Mário no seu diário de viagem, o encontro foi se não frio, com certeza apenas cordial e sem prolongamentos:
“... Tarde M. Bandeira me busca no hotel e me leva a Gilberto Freyre, que nos oferece um passeio de lancha pelo Capibaribe, maravilhoso, com vista da cidade...” (Mário de Andrade, O Turista Aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976, p. 347. Para confronto do meu texto com a carta de Mário de Andrade a Guilherme de Figueiredo, ver Mário de Andrade, A Lição do Guru. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989, pp. 136-7).
Embora não me ocorra reivindicar em qualquer sentido prioridade para o tratamento crítico que procuro conceder à matéria polêmica deste artigo, talvez me exponha ao puxão de orelha do leitor mais esclarecido. Assim, cuidando prevenir-me de apreciações infundadas, frisaria ter ciência de alguns precedentes ilustres na nossa historiografia crítica. Refiro-me restritamente a José Aderaldo Castello, cujo livro sobre José Lins do Rego e suas conexões com o regionalismo e o modernismo traduz um espírito de elevada disposição de compreender ambos os movimentos de forma integradora, e sobretudo Sérgio Buarque de Holanda, que aprecia com juízo certeiro as divergências polêmicas entre os dois movimentos numa série de artigos reunidos em volume de publicação recente (Ver Sérgio Buarque de Holanda, O Espírito e a Letra, vol. II, org., introdução e notas de Antonio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 331-345).
Aderaldo Castello foi o primeiro a desenvolver uma análise sistemática sobre o modernismo paulista e o regionalismo recifense num estudo de fôlego dedicado à obra de José Lins do Rego (Ver José Aderaldo Castello, José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo). Embora reconheça e documente a influência exercida pelo modernismo paulista no Nordeste, particularmente no Recife através do contato estabelecido por Joaquim Inojosa com o grupo paulista, Aderaldo Castello associa-se a Gilberto Freyre e Lins do Rego na defesa da autonomia do movimento regionalista. Observa ele corretamente que desde o começo – isto é, desde 1923, quando Gilberto Freyre regressa ao Recife e se aproxima de Lins do Rego – Gilberto distingue-se pelo papel decisivo que exerce na constituição de uma tendência independente dentro do processo nacional de renovação da cultura. Sem deixar de acentuar a oposição inicialmente verificável entre o movimento paulista e o pernambucano, a orientação crítica de Aderaldo Castello é pautada pela acentuação de traços convergentes entre ambos. Coerente com esse princípio, intenta unificar os aspectos mais positivos dos dois movimentos caracterizando-os como um movimento neo-romântico.
Frisava acima que a resistência de Gilberto ao modernismo é amplamente conhecida. Reiteraria, ademais, que se expressou muitas vezes em tom polêmico. Uma das suas manifestações mais remotas está contida na introdução que escreveu para Região e Tradição. Embora o livro tenha sido publicado em 1941, a introdução data de 1940. Nela, ecoando a depreciação polêmica do modernismo detonada por seu amigo e discípulo confesso José Lins do Rego no prefácio que consta deste mesmo livro, Gilberto Freyre caracteriza o modernismo como um movimento francamente hostil a qualquer forma de tradicionalismo e regionalismo. Polemizando num contexto em que intentava afirmar a autonomia e pioneirismo do regionalismo recifense, Gilberto identificou no modernismo já triunfante nos quadros da cultura brasileira o opositor que carecia de ser contestado. Assim, nas páginas polêmicas de Região e Tradição configura-se uma atitude e uma avaliação depreciativa que serão repostas em outros textos. A reiteração de uma crítica redutora, inspirada pelo espírito polêmico já aqui assinalado, tem infelizmente concorrido para que leitores mais apaixonados, quando não simplesmente ignorantes do nosso processo cultural objetivo, tendam a caracterizar o modernismo paulista como um movimento de inspiração estreitamente européia, como avesso à tradição, à cultura de extração regional e até antinacionalista. O equívoco é grave e com certeza não resiste à confrontação objetiva com os fatos culturais incorporados à linha da nossa tradição cultural.
Um outro motivo que justifica a tentativa de esclarecimento dos equívocos e mal-entendidos que cercam as relações entre modernistas de São Paulo e regionalistas de Recife radica no fato de que a tarefa mais alta da crítica e do leitor esclarecido consiste em precisar de maneira isenta a significação efetiva de ambos os movimentos e, mais restritamente, dos seus dois grandes líderes: Gilberto Freyre e Mário de Andrade. Insistir em opor um ao outro - sempre na intenção de louvar este em detrimento daquele; ou exaltar o segundo às expensas do obscurecimento do primeiro - é atitude que me parece incompatível com o exercício da crítica autêntica, que como tal carece de fundar-se em critérios e argumentos de natureza estética e intelectual, não em apreciações particularistas, sejam elas dirigidas por valores estreitamente regionais, ideológicos ou apenas pessoais.
Cabe, portanto, proceder ao exame dos argumentos fundamentais invocados na polêmica. Acusar o modernismo paulista de ser hostil à tradição é confundir o movimento tal como se configurou nas suas manifestações iniciais com a dinâmica de um processo que consistiu, em síntese, na conversão do modernismo internacionalista em modernismo nacionalista. É verdade que, à volta da Semana de Arte Moderna, era nítida a influência do ideário vanguardista procedente antes de tudo da França. Nesse momento, a grande aspiração dos modernistas era acertar o passo – ou o relógio, evocando aqui a metáfora empregada por Oswald de Andrade – do Brasil com o das vanguardas europeias.
Klaxon, órgão oficial do modernismo da primeira hora, exprime nas suas páginas, no gosto por vezes abusivo e inconsequente da experimentação formal, esse desejo de atualização das artes brasileiras. Mas esse quadro, de corte sem dúvida internacionalista, portanto avesso à corrente da tradição e do regionalismo, logo se modifica. O ano marco é sem dúvida 1924, embora algo da produção poética e da correspondência literária imediatamente anterior já indique o ponto de inflexão nacionalista em l923. Algumas evidências: poemas como Carnaval Carioca, de 1923, e O Poeta Come Amendoim, de 1924, ambos de Mário de Andrade, renovam a nossa poesia do ponto de vista temático e formal. No que se refere à correspondência de Mário, de imensa e já reconhecida importância documental para a história cultural brasileira, pode-se mencionar, entre outras, uma carta endereçada a Drummond em novembro de 1924. Nela é inequívoco o espírito de nacionalismo militante já plenamente adotado pelo líder do modernismo paulista. Criticando a formação francesa de Drummond, que o induzia a olhar o Brasil com um misto de indiferença e desprezo, assim argumenta Mário:
“Você é uma sólida inteligência e já muito bem mobiliada... à francesa. (...) devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. (...) Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime. (...) Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França e a Cochinchina. Mas é no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei” (A Lição do Amigo. Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, pp. 5-6).Como ler a citação acima sem automaticamente lembrar o célebre prefácio escrito por Gilberto Freyre para a primeira edição de Casa-Grande & Senzala? Nele Gilberto declara um espírito de missão similar àquele traduzido na profissão de fé nacionalista de Mário de Andrade. Comparando seu fervor nacionalista ao dos russos e românticos do século XIX, Gilberto declara sua convicção de que tudo parecia depender dele e dos seus companheiros de geração (Casa-Grande & Senzala. 25a ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1987, p. lvii).
O móvel que norteia a produção de Casa-Grande & Senzala é a necessidade vivida por Gilberto de se compreender, de definir sua identidade individual através da apreensão da própria identidade cultural do Brasil. Esse espírito de missão orientado para a transformação da nacionalidade é comum a ambos, ele e Mário de Andrade. Acrescentaria ser ele comum a todos que se empenharam na realização do nacionalismo literário, em sentido específico e, mais amplamente, no sentido do nacionalismo cultural. Deixando de parte rivalidades regionais e variações estético-ideológicas no fundo acomodáveis no leito promíscuo do nacionalismo cultural, como não reconhecer em Gilberto Freyre e Mário de Andrade os agentes seminais desse movimento que tantas contribuições trouxe para o enriquecimento da nossa cultura moderna?
Se o nacionalismo cultural de Gilberto Freyre se desenvolve fundamentalmente a partir da sua volta a Recife para alcançar sua expressão suprema cerca de 10 anos mais tarde, quando ultima e publica Casa-Grande & Senzala, o de Mário de Andrade evolui do internacionalismo de 1922 e aporta em Macunaíma, em 1928, depois de um processo de adensamento e decantação que compreende a temática de fundo nacionalista na poesia, os escritos críticos sobre música, artes plásticas e cultura popular e suas viagens etnográficas através do Norte e Nordeste do Brasil. O fato de acentuar neste artigo os pontos de convergência entre ambos, pontos tantas vezes obscurecidos por eles próprios e em seguida por seus discípulos mais entusiastas até o limite mesmo do ano em que se celebra o centenário de nascimento do primeiro, não supõe todavia sequer a sugestão de que a convergência se dissolva em equivalência. Embora ambos realizem uma obra de expressão nacionalista inspirada pelo ambição, em larga medida bem sucedida, de revalorizar a cultura brasileira na linha de tensão entre a tradição e a modernidade, entre o particular nacional, e também regional, e o universal de corte antes de tudo europeu, é fato que divergem na ênfase e mesmo no fundamento do horizonte que recortam no conjunto da obra produzida. Enquanto Gilberto de um lado se baseia na região para formular sua concepção de cultura nacional, Mário intenta chegar a uma síntese nacional de cultura fundindo livremente elementos das várias regiões culturais brasileiras. Esse traço marcante da sua concepção de cultura nacional é evidente na própria composição de Macunaíma. Integrando-o à forma e ao andamento da narrativa, Mário descreve os deslocamentos alucinantes do herói através do país, a fusão de regionalismos linguísticos, o choque fecundo entre as raízes primitivistas da nossa tradição e a modernidade expressa em ícones e códigos da nossa sociedade urbano-industrial.
Sei que comparo acima grosseiramente obras de estatuto epistemológico distinto. Se é verdade que Casa-Grande & Senzala destoa e mesmo colide com a obra de sociologia convencional, é também verdade que sua liberdade compositiva não autoriza confundi-la com uma obra literária, embora alguns críticos maldosos ou intelectualmente estreitos assim a tenham qualificado supondo com isso desmerecê-la. Obra ambígua no método e na andadura compositiva, é obra de ciência social e ao mesmo tempo literária no estilo, na ordenação expressiva do material e na lógica da argumentação na qual se fundem história social e autobiografia, documento histórico reinventado na forma de memória literária. Macunaíma, de outro lado, pode também ser compreendida como obra ambígua no sentido de que, sendo primariamente uma narrativa ficcional, supõe ou dissimula no tecido da composição uma massa heterogênea de documentos histórico-sociais criteriosamente acumulados pelo seu autor.
Se se reflete sobre a gênese destas duas obras, também aí sobressaem convergências significativas. Gilberto Freyre mais de uma vez declarou que na raiz da sua obra-prima pulsava a necessidade de esclarecer e definir sua identidade de brasileiro através da captação da nossa identidade coletiva constituída sobre fundamentos histórico-culturais. Mário de Andrade, de outra parte, persegue de modo obsessivo, na pesquisa intelectual infatigável tanto quanto na obra efetivamente realizada, sua identidade de brasileiro na identidade coletiva da nacionalidade.
Encerro esse paralelo genérico, e sabidamente insatisfatório, citando Antonio Candido. Inscreve ele no pórtico de “Literatura e Cultura de 1900 a 1945” uma tese que permeia o conjunto deste agudo ensaio de síntese de quase meio século da cultura brasileira. Sumariamente aqui traduzida, consiste tal tese no movimento dialético entre localismo e cosmopolitismo pontuando o desenvolvimento da vida espiritual brasileira em geral, assim como, em particular, a sua literatura (Literatura e Sociedade. 2a ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, pp. 109-111). Quando o primeiro pólo, localismo, dá o tom ao relacionamento dialético configurado na tese, as características nacionalistas comandam a cena cultural; no caso inverso, a aderência mimética e conformista aos padrões europeus assinala os momentos de exacerbação cosmopolita. Há entretanto momentos em que os dois pólos alcançam um ponto de equilíbrio harmonizando assim as influências europeias com valores propriamente brasileiros. Citando o próprio autor,
“Pode-se chamar dialético a este processo porque ele tem realmente consistido numa integração progressiva de experiência literária e espiritual por meio da tensão entre o dado local (que se apresenta como substância da expressão) e os moldes herdados da tradição européia (que se apresentam como formas da expressão)”.Frisa então que o melhor das nossas realizações intelectuais e artísticas tem sido uma combinação afortunada – como se pode observar na obra de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Drummond, assim como nas de Gilberto Freyre e Mário de Andrade – desse equilíbrio ideal verificável entre o pólo do particular e o do universal. Se consideramos o conjunto da produção intelectual brasileira do século vinte, não restritamente a produção literária, penso que Mário de Andrade e Gilberto Freyre constituem a mais acabada expressão desse equilíbrio ideal entre o particular e o universal, entre a linha da tradição e a da modernidade.
Nota: Este artigo foi publicado em dois periódicos: Cadernos de Estudos Sociais, vol. 16, no. 2, Recife, julho/dez. 2000 e Quadrant, nos. 19-20, Montpellier, 2002-2003.
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