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quinta-feira, 1 de maio de 2014

Gabo no céu


A morte de Gabriel García Márquez simboliza o silêncio definitivo da voz ficcional que elevou ao mais alto nível uma inusitada explosão literária cuja repercussão internacional ficou conhecida como o boom da América Latina, também como o realismo mágico, conhecido ainda como o realismo fantástico, que integrou a literatura latino-americana, notadamente a hispano-americana, aos circuitos hegemônicos da cultura ocidental. De repente, um grupo de jovens escritores de variada procedência, todos residindo fora dos seus países de origem, irrompeu na cena literária internacional saudado com entusiasmo pela crítica e por um público amplo e deslumbrado pela descoberta de uma realidade remota, não raro exótica, mas transfigurada pela força imaginativa de tantos talentos novos. Na primeira linha deste grupo distinguem-se Julio Cortázar (argentino), Carlos Fuentes (mexicano), Mario Vargas Llosa (peruano) e Gabriel García Márquez (colombiano). Todos lançaram no decorrer dos anos 1960 obras marcantes que inscreveram a América de língua espanhola no mapa da literatura internacional. Mas foi o último, ao lançar na Argentina em 1967 Cem anos de solidão, quem alcançou a mais rumorosa consagração consolidando em definitivo o prestígio da literatura hispano-americana.
A primeira geração de leitores de García Márquez configurou-se nos anos 1960 e 1970 associando intimamente política e literatura. Diria que a primeira foi determinante para a adesão apaixonada do leitor brasileiro à literatura hispano-americana. De repente, duas metades cindidas – a América de língua espanhola e a de língua portuguesa – começaram a se corresponder movidas por ideais políticos comuns e inspiradas por um mito revolucionário passível de sacudir as estruturas arcaicas e autoritárias do continente. O mito que virou pelo avesso a trajetória de tantos militantes, sobretudo os jovens incendiados pela febre da utopia política, identificou na Revolução Cubana sua fonte inspiradora e marco irradiador. Os escritores acima mencionados também traduziram na obra e na prática política, em graus variáveis, sua adesão a esses ideais. Embora integrado a essa atmosfera ideológica e literária, o Brasil fica um tanto à margem da repercussão internacional do romance latino-americano. Há quem atribua isso a artimanhas do mercado literário internacional, também à inegável difusão da língua espanhola, incomparavelmente maior do que a portuguesa. O fato é que, apesar de ostentar valores literários comparáveis aos melhores hispano-americanos beneficiados pelo boom, quase nenhum brasileiro ingressou nesse grupo de eleitos. Ocasionalmente incluía-se Guimarães Rosa, mas sua posição foi sempre marginal. É claro que Jorge Amado e Érico Veríssimo, líderes indisputáveis no mercado literário brasileiro, tinham já um público amplo no estrangeiro. Mas esse é um fenômeno independente do que considero neste artigo.
Vivendo fora da Colômbia desde o início dos anos 1950, García Márquez tinha já publicado vários romances antes da consagração imediata e definitiva decorrente da publicação de Cem anos de solidão. As obras que precedem esta são já ambientadas em Macondo, que se tornou um lugar mítico tão extraordinário como o condado imaginário de Wessex, de Thomas Hardy e o de Yoknapatawpha de William Faulkner, cuja influência sobre a obra de García Márquez e Vargas Llosa é reconhecida por ambos. No entanto, cotejada com tudo que a precedeu, Cem anos de solidão constitui um salto de delirante invenção imaginativa. Por isso sua consagração como obra-prima indisputável foi imediata.
Um fato merecedor de relevo em Cem anos de solidão, assim como no conjunto das grandes obras integradas à irrupção do romance hispano-americano na cena internacional, consiste no reconhecimento não apenas da crítica, mas também do grande público. Embora García Márquez seja um engenhoso artesão das formas literárias, capaz de integrar na sua atividade criadora fontes locais e universais, ou mais propriamente europeias, sua obra é perfeitamente acessível ao grande público, que por isso logo a acolheu com vivo entusiasmo. O mesmo se observa com relação à obra dos demais integrantes do grupo ao qual me refiro desde as primeiras linhas deste artigo. Evidentemente nunca constituíram uma unidade em qualquer sentido, nem mesmo no ideológico, ou estritamente político. Seria possível dizer que da Revolução Cubana ao final dos anos 1960 havia uma unidade ideológica substancial entre eles. No entanto, acontecimentos como a Primavera de Praga, esmagada pelas forças armadas da União Soviética, e a questão dos direitos civis em Cuba romperam essa provisória unidade.
A dissensão é mais evidente na trajetória de García Márquez contraposta à de Mário Vargas Llosa. Além de grandes amigos, foram até vizinhos quando moraram em Barcelona, Vargas Llosa publicou em 1971 uma volumosa obra dedicada ao conjunto da obra de García Márquez até Cem anos de solidão. Fruto de uma tese de doutorado, a obra intitula-se História de um deicídio, título que sugere o sentido fundamental da interpretação proposta pelo autor. O deicida, como sabemos, é aquele que mata Deus. Segundo Vargas Llosa, é isso o que García Márquez faz ao reinventar literariamente a realidade. Por isso o criador literário é um rebelde que se volta contra Deus e sua criação, o mundo real como empiricamente o apreendemos. Noutras palavras, prendendo-me ao caso que considero, o rebelde García Márquez mata Deus ao reinventar Aracataca, seu lugar de origem. Daí procede Macondo, universo imaginário criado pela imaginação delirante de García Márquez, deicida e competidor de Deus. Macondo se entranhou de forma tão profunda na imaginação do leitor, sobretudo do colombiano, que a população de Aracataca chegou a promover uma eleição para mudar o nome do lugar. Por pouco Aracataca não se tornou Macondo. Essa vitória da realidade é contudo aparente, pois Macondo vive e continuará vivendo na geografia imaginária de cada leitor a cada leitura que faça do livro. Por isso não é preciso ser profeta para prever que Macondo e Cem anos de solidão, assim como outras das obras de García Márquez que não me aventuro a citar com a sólida convicção do profeta, sobreviverão enquanto houver leitor de obra literária. Portanto, não seria exagero afirmar que a imortalidade de García Márquez está assegurada.
Na intimidade García Márquez era conhecido apenas como Gabo. Se podia gabar-se de matar Deus, segundo a interpretação de Vargas Llosa, conosco compartilhava a mortalidade que tanto nos assombra. A prodigiosa imaginação mítica da fração americana entranhada na sua obra maquinou muitas formas de vencer a morte. A resistência contra nossa mortalidade se traduz nitidamente na religiosidade exuberante, na tradição da literatura oral do povo secularmente imune às formas letradas da cultura, nas mitologias indígena e africana, na linguagem ricamente imaginativa do povo que se vale de eufemismos e metáforas em narrativas tão delirantes quanto as que lemos no repositório mítico de Macondo para anular a morte. Embora ateu e deicida, Gabo impregnou-se de forma tão profunda desse manancial mítico que por certo tramou para si próprio uma imortalidade para além da que lhe assegura sua obra literária. Quero noutras palavras dizer que não me espantaria saber que tramou algum pacto com Deus ou com as forças míticas de Macondo para migrar para o céu dos ateus.
Macunaíma, uma das mais luminosas matrizes dessa tradição mágica e realista na qual se inscreve a obra de Gabo, subiu ao céu conduzido por um cipó plantado no fundo da mata virgem. Lá chegando para repousar na imortalidade estelar, foi providencialmente protegido por Pauí-Pódole, que conhecemos como o Cruzeiro do Sul. Reza a lenda magistralmente narrada por Mário de Andrade que Pauí-Pódole transformou Macunaíma na constelação da Ursa Maior depois de jogar três pauzinhos para o alto e fazer encruzilhada. Não duvidem de que algum mago da estirpe dos Buendía inventada por Gabo tramou algo semelhante e dele fez uma estrela que doravante brilhará na eternidade inútil do céu, com certeza o céu dos ateus. Que deus o acolha e continuem competindo para reinventar nossa confusa humanidade.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Memórias de um Leitor V


A áspera realidade da pobreza, não raro resvalando para a miséria, é prodigamente descrita na tradição literária nordestina, também no cinema, nas artes plásticas, na história social e saberes conexos. Vivendo nas ruas e bairros do Recife num tempo em que as fronteiras de classe eram bem menos nítidas, li com familiaridade inconsciente romances como O Moleque Ricardo, de José Lins do Rego e a tetralogia Um cavalheiro da segunda decadência, de Hermilo Borba Filho. Daí passei para a obra de Josué de Castro, notadamente Sete palmos de terra e um caixão. Também João Cabral de Melo Neto, com Morte e vida Severina, marcou de forma profunda minha consciência das condições iníquas que ainda hoje caracterizam nossa realidade social.
Corrigindo-me a tempo, ou sendo mais preciso, o que designo por “familiaridade inconsciente” é meramente a pobreza e a miséria enquanto fatos ou dados objetivos integrados desde a infância à minha experiência social. Reencontrar essa realidade transposta para o registro da invenção ficcional e da análise histórica e sociológica foi passar a encarar com estranhamento crítico algo decisivo para imprimir consciência política à minha percepção de leitor. Foi por essas vias e fontes que politizei minha relação com o mundo próximo e imediato do subdesenvolvimento nordestino, assim como também com o mundo social mais amplo. Noutras palavras, fui gradualmente captando em algumas das leituras que agora registro os determinantes externos do subdesenvolvimento do Nordeste e, por extensão, do Brasil. A isso acrescentei outra ordem de determinação: a das relações de poder interregional. Para integrar esses fatores complexos numa figura dotada de alguma coerência, inserindo o particular imediato, aderente à minha experiência social espontânea, no contexto político global, concorreram de forma decisiva minha leitura de Crimes de guerra no Vietnam, de Bertrand Russell, e a leitura de articulistas políticos como Otto Maria Carpeaux, Paulo Francis, Alceu Amoroso Lima, que na velhice rejuvenesceu politicamente passando a ser um dos críticos mais intransigentes e corajosos da ditadura militar, Antonio Callado, Carlos Heitor Cony e muitos outros que concorreram para politizar minha noção até então inocente da realidade do mundo. Como escreveu Graham Greene em The quiet American, “Innocence is a kind of insanity”. Muitas outras circunstâncias, algumas puramente acidentais, importaram para adensar minha consciência crítica conduzindo-me para a vertente das ideologias de esquerda. Não me detenho na reconstituição desse processo para não me desviar em demasia da rota retorcida dessas minhas memórias primariamente subordinadas à minha experiência de leitor.
Crimes de guerra no Vietnam, de Bertrand Russell, me caiu nas mãos por mero acaso. Alguém emprestou-o a minha irmã Zuleide, que vivia numa outra esfera de realidade e interesse, e assim ele acabou nas minhas mãos. A essa altura, entre 1969 e 1971, tendi progressivamente a envolver-me com a realidade política através da leitura de obras de ciências sociais, da própria literatura e do cinema. Outro fato que decisivamente me despertou para a política foi minha amizade com algumas pessoas de esquerda, no geral confessadamente comunistas. A primeira delas foi Urariano Mota. Conheci-o quando nos candidatamos a um emprego na empresa que editava o guia telefônico do Recife. Perdi um emprego, mas ganhei uma amizade. Nossa conversa revelou-nos de imediato afinidades literárias, políticas e musicais. Daí para a amizade estreita e constante a passada foi curta. Através dele, fiz também amizade com José Antônio Spinelli. Considerado o meio em que eu vivia, a aridez mental e a alienação política nele dominantes, Spinelli impressionou-me intelectualmente. Foi a primeira pessoa que me falou de Sartre, de vários intelectuais comunistas influentes e tudo isso aprofundou meu interesse pelas questões políticas da época. Meu ingresso na Faculdade de Direito, em 1971, consolidou e ampliou meus vínculos políticos com a realidade precisamente nas circunstâncias mais perigosas para quem ousasse envolver-se com essas coisas, já que foi precisamente durante esses anos que a ditadura se extremou na repressão implacável contra a minoria numericamente insignificante que se atreveu a desafiá-la, seja através da luta armada, seja através da oposição pública e ativa. Mas corto caminho para novamente não enveredar por digressões impertinentes.
Viver no Recife, então quanto agora, era esbarrar na pobreza e na miséria a cada esquina da cidade. A diferença que importa neste passo salientar é que então havia menos violência nas ruas, que ainda eram do povo, contanto que não se atrevesse a contestar a ditadura. O centro do Recife, também à diferença de hoje, era o centro da vida social da cidade. Havia os cinemas, as livrarias, os bares e sobretudo uma atmosfera de livre convívio nas ruas isenta das zonas de segregação hoje correntes. Além de freqüentar os cinemas do centro (o São Luiz, o Moderno, o Trianon e o Art Palácio), sem contar as salas de subúrbio já em vias de desaparecimento imposto pela crescente difusão da cultura televisiva, vivia nos bares do centro da cidade com os amigos, todos de esquerda.
Gilberto Freyre enfatiza em Sobrados e Mucambos os processos de mudança social descritos na dimensão da longue durée, como escrevem os historiadores franceses, que modificaram de forma profunda e irreversível os vínculos de confraternização atenuantes dos antagonismos implicados nos extremos senhor e escravo, casa-grande e senzala. O fenômeno da urbanização, desatado ao longo do século 19, alterou radicalmente as zonas de confraternização típicas da nossa sociedade colonial lastreada no patriarcalismo fixado no latifúndio monocultor e na escravidão. A transposição gradual dessa forma de organização social e cultural para a cidade rompeu os elos de confraternização tradicionais. Na interpretação otimista de Freyre, no entanto, eles se refazem no espaço da cidade através das procissões, das festas religiosas, do carnaval e de toda essa agregação festeira que pipoca a cada esquina ou espaço público ainda não privatizado pela sanha predatória das empreiteiras e seus prepostos, os políticos corruptos ou apenas inconscientes do caos urbano e das consequências desastrosas da política insana que praticam.
Se hoje as zonas de segregação tendem a acentuar-se, não obstante toda a ideologia “multiculturalista” e os mitos persistentes da nossa cultura integradora, naquele momento o centro da cidade, como já frisei, era ainda o espaço fundamental de vida associativa do Recife. Apesar da repressão política impiedosa, disseminada na universidade, notadamente na Faculdade de Direito, e nos pontos de maior agregação dos grupos politizados, vivíamos nos bares mais badalados, como o Mustang, na Avenida Conde da Boa Vista, nos cinemas, livrarias e sobretudo nas ruas. Lembro-me ainda dos papos sobre política e literatura, das nossas conspirações inviáveis e românticas às margens do Capibaribe e nas ruas onde circulávamos a qualquer hora do dia e da noite. O perigo que temíamos rondava na sombra e nada tinha a ver com a bandidagem marginal hoje corrente, bandidagem da qual nos protegemos fechados dentro da fortaleza do shopping, do condomínio policiado por câmeras, portões lacrados, alarmes eletrônicos e muros intransponíveis, não raro eletrificados. O Recife era outro. Não muito melhor, talvez pior, mas desse ponto de vista sem dúvida melhor. Em suma, havia ditadura, politização da juventude sem vias de acesso à militância institucionalizada, repressão política feroz. No mais, as ruas e o espaço público, embora sempre precário, eram ainda do povo.
Foi quando esse clima ideológico estava ainda se esboçando na minha vida pessoal que li Crimes de guerra no Vietnam. Diria simplesmente que representou um choque mental e ideológico na minha vida. Até então, minha consciência da cultura americana, assim como do que representava no mundo, era moldada sobretudo pelos filmes made in Hollywood. Noutras palavras, era um inocente do Leblon, lembrando o poema de Drummond. Cultuava os mitos do cinema americano, admirava a democracia americana, a música americana difundida pela cultura radiofônica e fonográfica da época e evidentemente vivia com minha imaginação erótica atormentada por Marilyn Monroe, Ava Gardner, Gina Lollobrigida, Elizabeth Taylor, Natalie Wood, Kim Novak, Doris Day e outras figuras mitológicas. Bertrand Russell revelou-me algo das entranhas da dominação imperialista imposta pelos Estados Unidos não apenas ao Vietnam, onde explodia a primeira guerra totalmente coberta pela mídia mundial, mas também ao Brasil e ao conjunto da América Latina. Foi um choque que suprimiu de vez minha inocência ideológica.
Outro sintoma das turbulências ideológicas da época associadas à minha experiência de leitor foi a emergência do boom da literatura hispano-americana. A difusão internacional desta literatura foi fruto antes de tudo de fatores políticos como o combate às ditaduras impostas praticamente a toda a América Latina, as lutas pela descolonização dentro do clima da guerra fria e o antiamericanismo reativo, fruto da política imperialista desencadeada pelos Estados Unidos em todo o mundo não-comunista. É claro que esse clima ideológico foi decisivo para que muitos jovens se bandeassem para o comunismo. Os de tendência mais moderada, abrangendo um leque que ia do catolicismo socialista ao liberalismo de esquerda, como era o meu caso, tornavam-se companheiros de viagem dos radicais. O clima de antagonismo ideológico, no entanto, reduzia todos esses matizes em termos práticos a dois pólos: direita versus esquerda, capitalismo versus comunismo. Na hora do pega pra capar, as forças repressivas nunca distinguiram quem do outro lado era comunista, simpatizante, companheiro de viagem, nem mesmo o inocente útil ou azarado, pego no “local do crime” na hora em que todos os gatos eram vermelhos.
Apesar da atmosfera ideológica acima grosseiramente pincelada, fui sempre um politizado malgré moi. Fosse outro o tempo, outras as circunstâncias, outra a geração dentro da qual me formei, jamais teria me metido com política, jamais teria feito o pouco que fiz dentro das possibilidades objetivas e subjetivas do tempo. O pouco que fiz foi feito contra o meu medo, minha aversão temperamental à política, minha consciência de que não podia ser indiferente, também um sentimento de solidariedade e compaixão inculcado por anos de leitura e convívio lastreados por valores humanistas cuja abrangência ia do catolicismo ao marxismo. Não preciso declarar que a política constitui um componente fundamental da consciência de todo intelectual digno deste termo, ainda quando se recuse à militância ou seja avesso à ação prática característica das formas e processos implicados no exercício do poder, nos modos de ordenação política da realidade. Sei de tudo isso, incorporo tudo isso à minha representação mental da realidade, mas confesso e reitero minha aversão à política compreendida no sentido prático e dominante do termo.
Voltei a derivar para as considerações político-ideológicas porque, no momento que considero dentro destas memórias de leitor que vou canhestramente compondo à deriva da memória, não há como dissociar minha experiência de leitor desse contexto que teima em enfiar-se nas linhas que vou cosendo tendo os livros como alvo prioritário. Isso explica o desvio que tomei em direção aos autores americanos de língua espanhola. Acho que o primeiro que li foi Gabriel García Márquez. Dele saltei para Juan Rulfo, Alejo Carpentier e Mario Vargas Llosa. Borges, hoje pairando por consenso crítico acima de todos, era então no mínimo silenciado. Li-o bem mais tarde. Um pouco antes conheci a obra de Ernesto Sabato e Manuel Puig. Minha leitura definitiva, direi mesmo suprema e insuperável dentro dessa linhagem procedente da língua espanhola, foi Dom Quixote, de Cervantes, que evidentemente nada tem a ver com os condicionantes ideológicos implicados nessa etapa da minha vida de leitor. Hoje os que mais leio e portanto elejo como preferidos são Borges, Octavio Paz, Mario Vargas Llosa e Ernesto Sabato.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O leitor e a integridade da obra


Durante anos tentei – sem muito empenho, admito – adquirir uma edição decente do Dom Quixote. Ainda que não a relesse, sonhava possuir uma edição espanhola do livro cuja leitura mais profundamente me tocou despertando-me emoções e estados de transfiguração sem precedente. A que li foi a famosa edição em cinco volumes publicada por José Olympio na qual são reproduzidas as gravuras assinadas por Gustave Doré. Esse momento inapagável na minha experiência de leitor deveu-se à doença cardíaca que me sobressaltou a vida já de si oprimida no início dos anos 1970.
Eram tempos sombrios, de vida dificultosa e obscura. Privado de emprego estável, portanto de uma margem mínima de segurança econômica, crivado de angústias existenciais e ideológicas, agravadas pelo clima de repressão política dominante, dispunha de pouco solo seguro sob os pés vacilantes. Afora o amor de Rejane, as bebedeiras catárticas, mas por vezes opressivas, na companhia de amigos mais atormentados que eu, o resto era insegurança e amanhãs sem perspectivas animadoras. Foi em meio a isso que sobre mim caiu o diagnóstico de uma doença cujo efeito imediato, mais psíquico e moral do que propriamente orgânico, foi devastador.
Acalmado o primeiro assombro, já preso a uma cama em regime de repouso absoluto, tive a luminosa idéia de pedir a Rejane, amada e enfermeira dedicada, que tomasse de empréstimo à biblioteca pública de Afogados a edição José Olympio do Dom Quixote. Tão logo embrenhei-me por terras de Espanha na companhia daquele visionário genial, minha vida sofreu uma completa e automática transfiguração. Ao anotar que foi um momento sem precedente na minha experiência de leitor, vindo das mais intensas e erráticas leituras, quis mais exatamente sugerir que nenhum outro livro teve, como ele, o poder de mobilizar todas as minhas energias, notadamente as do leitor apaixonado e sensível cuja imaginação com frequência esbarrava nos limites estreitos da realidade ordinária.
Recordo ainda com plena nitidez o estado de sobressalto emocional que me tomou, tão exigente e constante que simplesmente perdi o sono. Varava a noite imerso na leitura, indiferente às inquietações suscitadas por meu estado de saúde, associado a outros igualmente inquietantes. A transfiguração advinda da leitura foi tal que Rejane começou a ficar preocupada, seriamente acreditando que o livro me afetara a razão. Pois o fato é que desandei a rir dentro da noite, a tagarelar animado às voltas com diálogos imaginários entretidos com meus heróis sem dúvida bem mais insensatos que eu. Ao cabo da leitura, prometi-me reler sempre que possível a obra-prima de Cervantes. Aliás, se bem me lembro, prometi-me reler Dom Quixote anualmente. É claro que não cumpri minha promessa. Para não dizer que faltei completamente com a palavra a mim próprio empenhada, reli-o uma única vez, valendo-me da única edição que até recentemente possuí: a que circulou periodicamente nas bancas de revista editada pela Abril Cultural.
Miro agora amorosamente as duas edições que comprei à Livraria Cultura. Tão amorosamente que fui à prateleira e trouxe ambas para perto de mim. Enquanto digito esta entrada, miro-as com olhar de bibliófilo enamorado: a do IV Centenário, editada pela Real Academia Española e a Asociación de Academias de la Lengua Española, e a segunda, ainda mais bela e vistosa, da Anaya. Esta, além de ser um primor de concepção gráfica, é admirável e fartamente ilustrada por José Ramón Sánchez. Além de uma longa e erudita introdução assinada por Angel Basanta, é anotada com zelo e minúcia filológica exemplares. A primeira, em compensação, vem enriquecida de um glossário e precedida por ensaios de Mario Vargas Llosa, Francisco Ayala e Martín de Riquer. Não bastasse tanto, agrega ensaios complementares assinados por José Manuel Blecua, Guillermo Rojo, José Antonio Pascual, Margit Frenk e Cláudio Guillén.
Mas o que mais importa é a leitura, ou releitura, da obra propriamente dita. Noutras palavras, que é feito de minha velha e esquecida promessa? O que dela agora fazer, já que tenho diante dos olhos duas edições primorosas da obra na sua língua original? Introduzo tais indagações inspiradas por certo cálculo retórico porque intento retomar aqui elementos de uma conversa mantida com Brenno Kenji. Discutíamos a legitimidade editorial fundada na adaptação e condensação de grandes obras da tradição literária como um expediente viabilizador de leituras atuais dependentes de um leitor cada vez mais apressado, cada vez mais solicitado por estímulos e fontes de informação e cultura incompatíveis com a realidade cultural em que obras como Dom Quixote foram escritas e lidas.
Brenno, leitor radical e definitivamente atípico, fiel aos mais altos valores da tradição letrada, argumenta em defesa da integridade da obra. Para ele, a obra deveria ser lida e retraduzida através dos tempos em conformidade com o texto integral do autor. Esta seria, admito, a relação ideal imaginável entre os textos canônicos e o leitor que, sucedendo-se na corrente do tempo, já não é, assinemos esta banalidade, o mesmo do século em que Dom Quixote veio a lume, ou o contemporâneo de Balzac e Flaubert. As condições mutáveis do mundo, mais ainda neste assombrado por ritmos de aceleração sociocultural sem precedente, suprimiram do horizonte do receptor os lazeres concebíveis noutras épocas.
O leitor hodierno, mesmo quando antes e acima de tudo leitor, está agora imantado a uma complexa rede de difusão cultural que não apenas compete com os meios tradicionais da literatura, mas lhe faz concorrência desigual e sem dúvida bem mais atraente. Como pretender que o jovem de hoje leia ainda edições integrais de Great Expectations ou Nicholas Nickleby, de Mansfield Park ou Sense and Sensibility, de Madame Bovary e Doutor Jivago, Anna Karenina e Crime e Castigo (cito alguns títulos que me vêm de imediato à memória), se o cinema lhe franqueia adaptações providas de todas estas vantagens: apelo audiovisual, concentração de tramas longas e complexas em duas horas de entretenimento e eventual enriquecimento cultural, adequação da tradição histórica às convenções dominantes no presente?
Evidentemente, não me passa pela cabeça afirmar que o espectador de Anna Karenina, adaptada e comprimida em versão corrente, exibida até em sessões noturnas da rede Globo, está em contato efetivo com a obra, com Tolstoi, para não falar da rica floração literária da tradição em que ambos se inserem, com os valores intrinsecamente literários do grande romance russo. O ideal, como Brenno apaixonadamente o reivindica, seria ficarmos com a integridade literária da obra, ou ainda, para quem queira acomodar-se ao melhor de dois mundos, com a obra e sua adaptação que não pode ser apreciada com o mesmo metro e rigor de recepção. Mas como pretender, dadas as complexas condições do presente que não posso adequadamente caracterizar numa mera entrada de diário, que tal modalidade de prática cultural prevaleça num mundo que impõe à literatura um lugar cada vez mais marginal, privilégio, para não dizer idiossincrasia, de uma casta de letrados?
O próprio exemplo de que trato nesta entrada – o meu, noutros termos – constitui evidência suficiente, melhor do que toda a argumentação verbal que acaso me empenhe em desfiar páginas afora. Embora leitor constante, agraciado pelo privilégio de dispor de ampla margem de tempo livre, isento dos embaraços e solicitações penosas de uma rede familiar e coisas similares a que está atada a maioria dos leitores, fui incapaz de cumprir minha promessa de seguir relendo Dom Quixote através de minha vida. As duas edições que agora enriquecem minha biblioteca me solicitam e desafiam mirando-me sobre a mesa em que quedam paralisadas. De meu lado, um tanto oprimido pela dívida que me devo e não me pago, resta-me o recurso da contemporização vacilante, o adiamento de mais uma viagem imaginária por aquelas terras de Espanha que Cervantes para sempre transfigurou e imortalizou na história da literatura. Um dia, quem sabe, eu voltarei de um modo como nunca mais voltei, não obstante o quisesse, para minha Isabel, minha Isabel de Valencia.

Diário, Recife 2005.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Viagem a Buenos Aires II



Buenos Aires, 17 de fevereiro de 1995

Depois de percorrer tantas lojas de música em Buenos Aires, chego à conclusão inquestionável de que a Argentina está musicalmente mais próxima do Brasil do que o Brasil da Argentina. Quem Perde? Sei que a Argentina ganharia ainda mais se em lugar ou para além de Xuxa, Daniela Mercury e os roqueiros ouvisse mais Tom Jobim, Chico Buarque, João Gilberto, Villa-Lobos, Noel Rosa, Pixinguinha, etc. De outro lado, estou certo de que a música argentina não é apenas Piazzolla. Portanto, também nós saímos perdendo nesse comércio de relações musicais.
Mas que dizer de Fito Paez, autor da belíssima canção "Un vestido y un amor", revelada no Brasil por Caetano Veloso no seu último cd? Dizem-me os argentinos com quem conversei que Paez vale por tudo que criou, tudo que ainda ignoro. Vi sem no entanto ouvir os seus cds em várias lojas de Buenos Aires. Embora tanto tenha pensado em adquiri-los, findei sempre por concluir que mais prudente será antes conhecê-los através do argentino José Luís quando retornar a Recife.

Compro livros de Ernesto Sabato. Entre outros, entre la letra y la sangre, livro que reúne uma série de conversas com Carlos Catania. Sabato fala de tudo, ou quase, inclusive da metafísica do tango. Isentando-se de especulações pedantes acaso sugeridas pela metafísica que associa ao tango, assinala as raízes históricas desse gênero de música popular difundido pelo mundo inteiro como o jazz, a bossa nova e o rock. Lembra que, à semelhança do jazz, o tango brotou do mundo da pobreza e da marginalidade social. Música parida nos bordéis, onde migrantes pobres e privados de amor recorriam ao simulacro deste, que é a prostituição, o tango acabou ascendendo a extratos sociais inteiramente dissociados da sua origem. Sabato comprime a nota da tristeza e da solidão nitidamente desenhadas nesse gênero de música tão passional e violento. Enquanto gênero, o tango é a expressão musical mais dilacerante e sensual que conheço. Lendo essas passagens do seu livro, lembrei-me da definição proposta por Astor Piazzolla, o Tom Jobim do tango. Entrevistado por um jornalista inglês que lhe perguntou o que era o tango, replicou em tom curto e grosso, mas absolutamente certeiro: “it´s a vertical rape”.

Porque a condição humana se funda sobre uma cisão de raiz entre desejo e satisfação, entre ser e querer, haverá arte enquanto houver código, imaginação, poeira humana vivente nesse universo de indecifráveis enigmas. Criar arte é um dos modos humanos, ambição sempre falhada, de compensar e transcender nossa cisão de origem.
Um dos mais recentes delírios utópicos nutrido por intelectuais revolucionários consistiu na tola presunção de acreditar que o mundo sem classes produzido pela revolução proletária suprimiria essa ferida aberta entre ser e querer. Tomando como historicamente determinada, e portanto superável pela práxis humana, a cisão que é de natureza metafísica, apostaram nessa tolice que chamei de delírio utópico. Lembro-me de Kostas Axelos, por exemplo, antevendo em escritos dos anos sessenta essa atualização secular do mito do paraíso que é a utopia marxista projetada num tempo sem opressão e sem classes sociais.
Evidentemente, a utopia não foi formulada por Marx e seguidores ilustres, para não mencionar os diluidores mais grosseiros, nos termos em que aqui a interpreto. Seu fundamento imediato ou aparente é, sabemos, a análise materialista objetiva das condições históricas determinantes da opressão e infelicidade humanas. Compreendida entretanto na sua dimensão mais profunda, não passa a utopia de uma teorização sofisticada da nossa cisão de origem. E se aqui a formulo em termos metafísicos, ou meta-históricos, é porque me move a convicção de que esta é sua real natureza.

Quando vivi na Inglaterra, tendo pela primeira vez a oportunidade de conviver com estudantes latino-americanos, dei-me conta do quanto reciprocamente nos ignorávamos. Pois se é verdade que em princípio tantas coisas tendem a nos aproximar, geografia e história marcadas por condições de permanente dependência frente ao colonizador europeu, sucedido pelo americano do norte, imensas barreiras nos têm secularmente dividido. Talvez uma das possíveis explicações para essas barreiras derive do caráter de dependência cultural que de um lado sempre nos vinculou, seja à Europa, seja mais proximamente aos Estados Unidos, enquanto do outro conduziu à profunda ignorância mútua a que me refiro.

No se puede vivir sin amar. Li esta frase desolado, assim em espanhol tal como a transcrevo, em Under the Volcano, de Malcolm Lowry, o atormentado e extraordinário Lowry que lenta e inexoravelmente se destruiu errante nesse mundo tanto carecido de amor. A frase me penetrou um certo dia em Recife, de imediato através do filme adaptado por John Huston, revisitou-me frequentes vezes em momentos de solidão purgada na Inglaterra e afinal em mim se enraizou com o mesmo tom desolado que percorre a carência e a embriaguês literal de Geoffrey Firmin, o protagonista de Under the Volcano. A obra e vida de Lowry, tanto quanto a estragosa e inconfessável privação que me fere, impelem-me a repetir através da Plaza de Mayo: No se puede vivir sin amar.

Quanto mais percorro e descubro Buenos Aires, mais me apaixono por sua beleza, suas formas arquitetônicas de corte nitidamente europeu. Como é bela esta ciudad. "Y quando me pierdo en la ciudad / Vos ya sabés comprender / Es solo un rato no más / Tendría que llorar o salir a matar / Te vi, te vi, te vi / Yo no buscaba a nadie y te vi".

Se de minha parte posso dizer que intensamente amei quatro mulheres na minha vida, com todas tendo compartilhado momentos intraduzíveis de felicidade e prazer, não posso entretanto sustentar que nos limites da experiência repartida logrei alcançar essa ventura expressa em um sutil e inefável acordo entre duas almas apaixonadas. Como Isak Dinesen evocando Denys Finch Hatton (ver o filme Entre dois amores), muitas vezes na Inglaterra adaptei para meu uso pessoal a frase que condensa o grande e belo amor que viveu na África: “I had a love in Africa”. Evocando e em mim sofrendo a dor sem remédio de ter perdido C. no Brasil, no fundo da minha solidão e carência padecidas na Inglaterra assim disse e dizia de mim para mim: I had a love in Brazil. Mas esse amor, não importando quanto grande foi e seja ainda no que dele sobrevive como matéria da memória, este amor apenas excepcionalmente alcançou consumar-se tanto quanto conjugação erótica quanto acordo entre as duas almas amantes. Tal como quase todos que amaram, meus amores foram sobretudo vividos fruídos e gozados na sua dimensão dominantemente erótica. Direi melhor: carnal.
É assim por esse motivo, em alguns consciente, noutros obscuro, que tendemos a invejar, no bom quanto no mau sentido, os amantes venturosos. Terei eu um dia a felicidade de viver esse modo de plenitude? Refletindo em escala pouco mais modesta, viverei eu um dia com uma mulher a completude assentada sobre o domínio das almas, já que é tão rara a conjugação acima descrita? Well, well... Dizem que somente a partir dos 65 anos T. S. Eliot alcançou a felicidade à qual ao longo da vida tanto aspirara. Veio ela com Valerie Fletcher, sua secretária na editora Faber & Faber. Foi aparentemente tão feliz que nada mais de importante conseguiu literariamente criar. Well, well, se Eliot somente começou a ser feliz aos 65, por que não posso eu esperar?

Como acima registrei, quanto mais percorro e descubro Buenos Aires, mais me apaixono pela extraordinária beleza da sua arquitetura de inspiração francamente européia definindo as linhas e volumes de largas avenidas e praças. Tanto me apaixona esse tipo de cidade, sintoma, entre outros, de minha aderência talvez excessiva a valores e padrões estéticos de procedência européia, que involuntariamente penso no Recife. Comparando-a em seguida a Buenos Aires, concluo que sai ela de minha ligeira comparação como se não passasse de um acampamento urbano, uma mera caricatura de cidade compreendida no sentido civilizado do termo. Afinal, não foi por um acaso que civilização derivou de cidade. Assim compreendido, o paralelo entre as duas cidades vai muito além de suas configurações materiais estendendo-se aos modos peculiares de vida cultural que encerram. Algumas diferenças elementares e imediatamente perceptíveis: enquanto aqui as normas reguladoras do trânsito são rigorosamente obedecidas, lá enraizou-se o caos, quando não a prática homicida, resultante da nossa cultura da transgressão; enquanto aqui prevalecem o respeito ao silêncio e à privacidade nas esferas pública e privada, lá o gregarismo ruidoso e predatório se tem imposto de modo progressivo. Por essas e outras é que já me compenetrei de que sou um apátrida exilado nos trópicos onde a permissividade das normas e costumes, quando não a pura e simples anomia, se sobrepõem aos princípios de civilidade segundo os quais tenho procurado ordenar minha vida. Neste sentido, não resta qualquer dúvida de que me senti muito mais em casa na Inglaterra, assim como aqui em Buenos Aires, do que no Sudeste e sobretudo Nordeste brasileiros. A julgar pelo pouco que conheci de Santa Catarina e do Paraná, quando da minha viagem com Daniel e Célia em 1976, penso que por lá também me sentiria vivendo num Brasil mais condizente com meu modo de ser.

Retomo minha jornada através das livrarias de Buenos Aires. Explorei hoje a faixa da Avenida de Mayo que liga a 9 de Julio à Plaza de Mayo, além de também percorrer a Rivadavia, via que corrre imediatamente paralela à Avenida de Mayo. Deparei em livrarias e sebos um tal despropósito de preciosidades bibliográficas, algumas em línguas inglesa e francesa, que precisei de sobre mim exercer rigorosa polícia para não desandar a comprar parte desse tesouro cultural. Penso também, e esse pensamento me parece de efeito decisivo, no excesso de bagagem que precisaria comigo transportar.
Embora tomadas de assalto por toda a sorte de publicação pornográfica, além do lixo difundido pela cultura de massa, também nas bancas de revista circulam produtos excelentes da cultura de elite. Uma coleção de pensadores, belamente encadernada em capa dura e relativamente barata exibe obras importantes de Adorno, Ortega y Gasset, Mircea Eliade e outros. Estas já decidi que comprarei, mas somente quando já estiver no aeroporto prestes a voar de volta para São Paulo. No mais, são também excelentes as coleções de literatura universal, economia, esta originalmente editada pelo Financial Time, e a de música incorporando ao fascículo obras gravadas em tape ou cd.

Buenos Aires, 18 de fevereiro 1995

A oportunidade da minha vinda a Buenos Aires animou-me a tratar de leituras longamente proteladas. Por isso lembrei-me de agregar à minha bagagem um livrinho de Emir Rodriguez Monegal que leio de uma assentada no quarto do hotel. Tanto apreciei a leitura, e tanto com ela aprendi, que devo principiar esta nota frisando que o termo "livrinho" aplica-se às proporções físicas da obra, não à sua qualidade. Pois me refiro aqui ao livrinho em formato de bolso Mário de Andrade/Borges, compacto mas denso ensaio de literatura comparada no qual Monegal justifica o tom elogioso com que o trata Vargas Llosa no prólogo que assina para a edição brasileira de La Ciudad Letrada, de Angel Rama. Comparando os dois críticos uruguaios, Vargas Llosa realça com franca admiração o prazer que lhe inspiravam a inteligência crítica e a destreza polêmica de ambos: "Angel, mais sociológico e polêmico; Emir, mais literário e acadêmico; aquele mais à esquerda, este mais à direita. As diferenças entre os dois uruguaios foram providenciais e originaram as disputas intelectuais mais estimulantes que já pude assistir, confrontos em que, graças à destreza dialética, à elegância e à cultura dos adversários, não havia nunca um derrotado, e saíam ganhando, sempre, o público e a literatura".

Embora em Mário de Andrade/Borges prevaleça a crítica orientada para o ensaio de literatura comparada com oportunas achegas informativas, justificadas pela distância mútua que tem marcado as ralas relações culturais entretidas por Brasil e Argentina, não deixa Monegal de sugerir ao leitor algo do seu vigor polêmico quando de passagem desacredita o tom desonesto com que Guillermo de Torre traçou o movimento histórico das vanguardas reivindicando para si uma posição de relevo improcedente. Mas o cerne do livrinho consiste, como já se anuncia no título, no rico parelelo por ele traçado entre Mário e Borges. Acentuando as imagens divergentes que de ambos guardam respectivamente brasileiros e argentinos, frisa Monegal como à imagem do Mário nacionalista, aderente a uma estética empenhada tanto apreciada pela esquerda, se opõe a de um Borges cosmopolita execrado pela esquerda do seu país. E conclui assinalando os dois modos de errada apreciação que objetiva contornar ao longo da sua compacta investigação: "A esquerda perde frente a Mário toda a capacidade de análise; frente a Borges, todo exercício de leitura.Um venerado por cada migalha que escreveu; outro, condenado em ausência. Mário é um santo leigo; Borges, um trânsfuga". (p. 10)
Demonstrando que as imagens acima são deformadoras, esclarece Monegal como nos anos vinte profundas afinidades aproximavam a atuação intelectual dos dois escritores que entanto se ignoravam. Se ambos a princípio seguiram a onda cosmopolita traçada pelos movimentos da vanguarda européia de que se aproximaram, mais tarde Mário abraça o nacionalismo assim como Borges transita do Ultraísmo para o Criollismo. Assinala, por outro lado, como Borges foi nesse tempo até mais radical que Mário na valorização da cultura popular. A partir daí, cuida Monegal de acompanhar, em tom sempre oportuno e esclarecedor, dentro dos objetivos comparativos que se propõe, um conjunto de artigos sobre literatura argentina publicados por Mário de Andrade nas páginas do Diário Nacional. Destacando-os como sendo "O documento talvez mais importante para a exata reconstrução do aspecto das relações entre o Modernismo brasileiro e o ultraísmo argentino" (pp. 27-8), corretamente agrega-os ao volume como apêndice documental.

Um mal-estar quase irritante, dado o que implica de privação de vida fruída nas ruas, prende-me à cama do hotel durante o dia. Valho-me desse estado indesejável para ler uma larga fração do último ou talvez último livro de Octavio Paz: Itinerario. Combinando às qualidades do poeta e crítico extraordinários o tom especulativo do pensador liberto das amarras esquerdistas que têm encurtado as asas tanto intelectuais quanto éticas de algumas das melhores cabeças latino-americanas, esboça nessas páginas uma autobiografia intelectual admirável na forma artística da composição e igualmente nas questões de fundo que lhe marcaram a vida.
Distribuída a matéria do livro em duas partes, na primeira, a pretexto de explicar por que escrevera El Laberinto de la Soledad, retoma as indagações e análises mais candentes contidas na sua talvez obra-prima explicitamente articulando-as às experiências que ressalta como cruciais na sua trajetória humana e intelectual. Aclarando desse modo os elos mais íntimos que vinculam a obra ao autor, sobressai agora com maior nitidez o caráter livremente autobiográfico de El Laberinto de la Soledad. A segunda parte constitui antes uma variação do processo compositivo do que do conteúdo da obra, já que nela recorrem as questões estéticas, políticas e filosóficas abordadas na primeira. Respondendo no tom ensaístico que distingue sua produção crítica e especulativa a questionários propostos por Juan Cruz, sob o título geral "Respuestas nuevas a preguntas viejas", Sergio Marras, "América en plural y en singular", e finalmente Julio Scherer, "Tela de juicios", procede Octavio Paz a um rico registro ao mesmo tempo rememorativo e crítico dos fatos, problemas e impasses que marcaram sua geração.
Intelectual de vivência abrangente e cosmopolita, seu testemunho é um misto de reflexão e criação participativa, de obra pensada no espírito mas fecundada na e pela experiência impressa na carne. É assim curioso criticarem-no, como em certa passagem faz um dos seus entrevistadores, por formular uma visão puramente racionalista - liberal-racionalista, diria melhor - da realidade sócio-cultural latino-americana em suas conexões mais profundas com a história universal.

A passagem de uma morena de aparência andrógina em plena 9 de Julio acorda em mim a memória de Puck. Dei-lhe esse nome, carinhosamente usado na nossa curta mas intensa intimidade devido ao amor que me confessou alimentar pelo personagem Robin Goodfellow, the puck, o duende de A Midsummer Night's Dream. Mais que isso, logo em seguida ao batismo literário compus dois poemas para ela, um dos quais intitulado Puck. Tudo começou numa festa, de modo imprevisto e intenso, também fugaz. De lá saímos para rodar de carro dentro da madrugada de Recife, raro momento mágico em que me senti reconciliado com a cidade. Ouvíamos uma das minhas fitas quando me pediu para ouvirmos uma das que conduzia na bolsa. Como traduzir minha encantada surpresa ao constatar que a fita de que falava principiava com Años de Soledad, de Piazzolla, interpretada por ele e Gerry Mulligan? E eu que tanto amo esta música me vi imprevistamente ouvindo-a dentro da madrugada recifense graças à mágica aparição de Puck. Lembro-me ainda de que rodamos e rodamos dentro da noite ouvindo música. Em Salgadinho, entre Olinda e Recife, estacionei no alto do viaduto e ali ficamos suspensos dentro da ar deserto da noite, a brisa marítima soprando no fundo da solidão escura. Onde andará Puck?

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Viagem a Buenos Aires



En aquel tiempo, buscaba los atardeceres, los
arrabales y la desdicha; ahora, las mañanas, el centro
y la serenidad. - Jorge Luis Borges.

Embora raramente converse com passageiros, ainda quando deles proceda a iniciativa da apresentação, desta feita baixei a guarda e dirigi-me à senhora loura e alta sentada a meu lado. Como em Guarulhos involuntariamente ouvira parte do que falava para uma outra mulher, e ouvira o bastante para saber que vivera muitos anos em Buenos Aires, decidi valer-me dela para melhor orientar-me no mundo portenho que absolutamente desconheço na sua dimensão prática e vivida. Muito amável e solidária, prontamente se dispôs a ajudar-me no que pudesse. Notando que era uma mulher inteligente e muito experiente, logo passei das informações de ordem prática para assuntos mais gerais e até pessoais. Conversamos assim à vontade e proveitosamente durante todo o tempo em que ficamos no aeroporto de Buenos Aires e também durante todo o trajeto no ônibus especial até a Avenida Santa Fé. Fiquei sabendo, entre outras coisas, que se chama Karin e é alemã. Veio para Buenos Aires com os pais logo depois da Segunda Guerra. Profissionalmente bem sucedida como tradutora e bem casada, pelo menos em termos materiais, em 1975 emigrou para São Paulo com a família devido ao estado de terror instalado durante a ditadura militar. Pensei de início que sua insegurança derivava da circunstância de em alguma instância haver feito oposição ao regime. Afiançou-me entretanto que saíra simplesmente porque o terror, imposto pelo Estado, quanto pelos radicais que a ele se opunham, ramificou-se pelo conjunto da sociedade pondo em risco virtual a segurança de qualquer indivíduo argentino.

Embora se abale ainda com os terríveis padrões de desigualdade social dominantes no Brasil, padrões cuja visibilidade prescinde de qualquer iniciação sociológica, Karin reitera o que já ouvi de tantos estrangeiros (se é que posso ainda tratá-la assim): o louvor à nossa extraordinária plasticidade étnico-cultural. Se de um lado rememora ainda o choque que lhe causou o atraso social observável no Rio de Janeiro do início dos anos sessenta, quando então visitou o Brasil pela primeira vez, de outro impressionou-a, como ainda a impressiona, o modo livre como culturalmente se interpenetram os contingentes formadores da totalidade cultural brasileira. Como julgo ser este um assunto de enorme importância, espero cedo retomá-lo no corpo destas anotações. Agora porém, afinal instalado no Hotel Marvella, onde arremato a redação dessas impressões iniciadas em pleno voo entre São Paulo e Buenos Aires, tudo que desejo e no momento preciso é cair na cama e dormir como quem morre: sem sonhos, som ou ruído. Pois o dia foi longo e cheio de admiráveis descobertas visto que, totalmente estranho a Buenos Aires, não descansei um minuto desde minha chegada.

Buenos Aires, 16 de fevereiro,1995
Estou simplesmente encantado com a beleza de Buenos Aires. Como Paris é meu modelo de cidade, e o traçado urbano de Buenos Aires muito se assemelha ao dela, é lógico deduzir que desde já passo a incluir a capital argentina entre as mais belas cidades do mundo. Dado seu plano simetricamente harmonioso, longas e formosas avenidas, como a 9 de Julio e a Av. de Mayo, articulando outras avenidas e imensas ruas por sua vez estritamente divididas a intervalos de cem números, somente um idiota consumado se extraviaria flanando através desses esplêndidos espaços. Ao recorte simétrico da cidade acrescentaria a beleza de suas praças. Salvo as majestosas figuras equestres, erguidas em memória de algum general ou militar libertador, é um puro luxo vaguear pela San Martin, por exemplo. Vaguear ou por outra sentar à sombra das árvores dentro da manhã de sol e observar as pessoas que passam, ou ler, como o fiz, El Império de los Sentimientos, de Beatriz Sarlo.

Se de um lado me desagradam as obras públicas representando caudilhos reinando sobre cavalos, o que figuro como sendo o limite do clichê na esfera do imaginário político-cultural, doutro é inegável que este dado encerra extraordinário valor simbólico. Indicia o papel exercido pelos militares na história política da América Latina expondo assim as bases autoritárias sobre as quais se tem desenvolvido. Outro traço simbólico relevante está inscrito nos nomes de certas ruas e títulos que traduzem o status dos heróis celebrados pela nação. Claro que também nós, latinos de fala portuguesa, padecemos desses males. Como esquecer, notadamente depois de 1964, as avenidas, ruas, viadutos, conjuntos residenciais, etc., consagrados à celebração de tiranos militares?

À parte essas e outras desvirtudes da formação histórica latinoamericana, espelhada nos cenários e simbologia dos espaços urbanos, Buenos Aires é, já o disse, um puro luxo de cidade. A ela comparada, São Paulo não passa de um opressivo monstro de concreto. De fato, vejo São Paulo como o exemplo mais calamitoso de urbanização que se possa imaginar. Se no final dos anos setenta lá não suportei viver sequer um ano, estou certo de que o mal não residia apenas em mim, na minha inadaptação individual e irresoluções autodestrutivas de fundo subjetivo. Naquele momento, tanto quanto agora, via e estimava viver São Paulo tão só como um lugar transitório, reino trepidante onde cultuo e cultivo algumas mulheres, reencontro amigos e em certas faixas restritas tomo o melhor banho de civilização possível dentro dos limites brasileiros.
Tenho despendido a maior e talvez melhor parte do meu tempo nas livrarias. Não me surpreenderam a quantidade e variedade delas porque antes já ouvira dizerem que Buenos Aires tinha mais livrarias que todo o nosso imenso e pouco letrado Brasil. Adquiri vários e bons livros. Se não dobrei ou tripliquei a medida, não foi com certeza devido à qualidade da oferta, mas sim ao fato de detestar excesso de bagagem. Ademais, outra coisa que em mim mudou devido à força obscura dos anos vividos e da minha experiência inglesa foi a superação de um desejo compulsivo que me impelia a acumular livros sem maiores critérios de qualidade e portanto de medida.
Algo frustrante observado nas minha peregrinações pelas livrarias é a restritíssima oferta de livros na área de história e crítica literária e cultural. De Angel Rama, por exemplo, que julguei ser escritor de ampla circulação no mercado hispanoamericano, alguém aqui equivalente ao que representa Antonio Candido no contexto brasileiro, dele sequer encontrei um exemplar de La Ciudad Letrada ou Transculturación Narrativa en América Latina. Somente na Fondo de Cultura da Suipacha, onde aliás conversei com um livreiro bem informado, encontrei um único e empoeirado exemplar de Más Allá del Boom - Literatura y Mercado. Trata-se de um conjunto de textos críticos sobre literatura e cultura latinoamericana apresentado em um encontro patrocinado pelo Woodrow Wilson International Centre for Scholars (Smithsonian Institution, Washington). Além de Rama, que assina a introdução e um longo ensaio sobre o boom da literatura hispano-americana, colaboram especialistas prestigiosos como Antonio Candido e Jean Franco. Conheço razoavelmente a obra de Jean Franco porque ela foi a antecessora do meu ex-(des)orientador Gordon Brotherston na University of Essex.
De Beatriz Sarlo encontrei, também com dificuldade, o acima mencionado El Império de los Sentimientos. O que me moveu a interessar-me pela obra dela foi a circunstância de há alguns anos assistir a uma ótima conferência que proferiu no Centre for Latin American Studies da University of London. Dissertando com perspicácia sobre temas de cultura e literatura argentina, declarou ter sido decisivamente influenciada pela obra de Raymond Williams.
Embora não tenha encontrado tempo para ir além da página 42, li já o bastante de El Império de los Sentimientos para afirmar que se trata de uma análise exemplar no âmbito da sociologia da literatura. Estudando a literatura popular argentina, a que também se refere como "narraciones semanales", produzida entre 1917 e 1927, indissociável da expansão de um novo público e novos padrões de consumo cultural provocados pela intensificação do processo urbano de Buenos Aires, Beatriz Sarlo comprova a fecundidade dos instrumentos críticos fornecidos pela sociologia a estudos dessa natureza.

Articulando a pesquisa empírica à crítica cultural, Beatriz Sarlo estabelece observações e descobertas luminosas para uma compreensão mais abrangente das relações entre a literatura de massa e a sociedade argentina das primeiras décadas deste século. Na verdade, algumas decisivas formulações de fundo teórico-conceitual são perfeitamente aplicáveis à análise geral da literatura concebida nos termos que indissociavelmente tende a estabelecer com a cultura de massa. Lendo o que Beatriz Sarlo escreve acerca das "narraciones semanales" circulantes em Buenos Aires entre 1917 e 1927, frequentemente me vi de modo involuntário debruçado sobre problemas dominantes na situação cultural contemporânea. Tais associações involuntárias me parecem sugerir não só a atualidade das questões literárias sociologicamente investigadas pela ensaísta argentina, mas também a constância de situações ou fatores típicos da literatura de massa. Certas características pertinentes à composição do público, artifícios narrativos, posição estético-social do autor, etc., são identificáveis, para fixar-me em alguns exemplos explícitos, tanto na literatura francesa de folhetim do século passado quanto nas narraciones semanales analisadas por Beatriz Sarlo ou ainda nas consumidíssimas telenovelas produzidas pela Rede Globo.

Não há dúvida de que minha mais preciosa aquisição foi Historia del Nacionalismo, de Hans Kohn. Originalmente publicada em inglês em 1944, a obra de Kohn pode hoje ser encarada como um clássico no conjunto da bibliografia referente ao nacionalismo. Anos atrás tive nas mãos um exemplar encontrado em uma livraria no Rio de Janeiro, mas incorri na tolice de deixar que a oportunidade me escapasse. Mais tarde, bem mais consciente da importância da obra, passei a procurá-la em vão. E eis que agora encontro um exemplar impecável, capa dura, da edição espanhola de 1984.

Perco afinal um pouco do controle que sobre mim tenho exercido e me embriago no trajeto entre a 9 de Julio e a Plaza del Congreso. Surpreende-me o preço extorsivo da bebida: enquanto uma garrafa de Brahma, produção brasileira, custa-me 4 dólares, cobram-me 8 em um restaurante por uma garrafa de um vinho qualquer produzido na Argentina. Esquecidos estes golpes extorsivos, de resto assimilados à experiência de qualquer turista, registro aqui alguns fatos e observações que intrigam meu olhar de estrangeiro. Se há tantos bares, cafés e restaurantes, como explicar sua sobrevivência, se do início da tarde até à noite os garçons bocejam de braços cruzados? Por que o centro de Buenos Aires morre tão cedo no sentido figurado da expressão boêmia ou noctívaga? Suponho que grande parte da população esteja gozando férias no interior e sobretudo fora da Argentina. No sul do Brasil, por exemplo.
Enquanto erro embriagado pela Plaza del Congreso, impressiona-me observar às 22h30 essas cenas inusitadas: crianças jogando futebol sobre a grama, velhos repousando sobre os bancos, jovens casais namorando, mulheres solitárias, sons de um violão vibrando entre a luz elétrica e a lua cheia. Parece-me tudo isso tão inusitado que me vem à memória um dos melhores poemas de Drummond: "Lembrança do mundo antigo". Dele retenho na memória o último verso: "Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!"

As cenas acima surpreendidas na Plaza del Congreso somadas a outras, algumas já aqui anotadas, levam-me a considerar uma questão que, talvez mais que qualquer outra, me tem profundamente impressionado no curso desta viagem. Indago-me, em suma, como um país ferido por uma experiência ditatorial incomparavelmente mais devastadora que a nossa, igualmente varrido pela hiperinflação, logrou preservar padrões de civilidade e equilíbrio socioeconômico junto aos quais não passamos de uma taba ululante cindida pelas desigualdades mais brutais. Se em Recife e São Paulo mal consigo dormir em paz, descontado o excesso do meu juízo conscientemente apátrida, em Buenos Aires intriga-me a civilidade que me faculta ler ou comer em paz nas vias centrais da cidade, dormir ouvindo tão só o ruído do ventilador e não ser incomodado sequer pelo garçom que me serve. Confesso que, mais que intrigado, sinto-me perplexo em face dessas situações que aqui tenho vivido.

Pouco sabemos da Argentina no Brasil. O pouco que sabemos, mesmo quando se aplique a indivíduos ciosos de formar opinião para além dos preconceitos e estereótipos, como julgo seja o meu caso, tende precisamente a reforçar as imagens deformadoras que um país em geral nutre acerca de um outro, uma cultura acerca de uma outra geográfica ou historicamente dela distanciada, por vezes próxima. Noutras palavras, a imagem predominante que da Argentina assimilei está diretamente associada à violência militar quanto civil; a um modo de passionalismo mais cruento que o brasileiro; a uma tradição autoritária mais brutal que a nossa. Se entretanto me detenho em traços ordenadores do que chamaria a cultura espontânea e cotidiana de um povo, única imediatamente apreensível e de resto indiciadora das relações macrológicas dominantes em qualquer sociedade, não reluto em afirmar que Buenos Aires é mais democrática e civilizada que qualquer cidade brasileira. E mais democrática não só no que concerne às normas observáveis no cotidiano vivido, mas também na dimensão da democracia econômica. Um exemplo: embora esteja sempre nas ruas, em apenas uma circunstância, quando bebia em um bar na Avenida Cerrito, fui abordado por um mendigo. À parte este, vi apenas um outro, este devidamente "instalado", com cachorro e outros "luxos", numa calçada da Avenida 9 de Julio.

Não me esqueço de que esses instantâneos do cotidiano, colhidos em trânsito pelo olhar do turista que aqui veio apenas por cinco dias, não autorizam muitas das generalizações que venho esboçando no corpo e margens dessas impressões de viagem. Imagino com toda segurança que, para além dos limites centrais da cidade, tropeçaria o viajante com a paisagem de detritos urbanos (e humanos) similar às áreas onde se instalam os homeless ingleses, marginais terceiromundistas da banlieu parisiense ou o inferno dos drogados de Amsterdam. Importa assim frisar que minhas impressões esgotam-se nos limites de uma viagem de cinco dias circunscrita à área central de Buenos Aires. É dentro desses limites que registro o quanto me tem impressionado constatar, em termos de relação contrastiva, como na grande cidade brasileira, sobretudo na nordestina, a miséria está profundamente disseminada.

Buenos Aires, 15 de fevereiro, 1995

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Octavio Paz



Morte de Octavio Paz. Para mim, ele é o ensaísta supremo da América Latina neste século. Especifico o ensaísta por considerá-lo superior ao poeta. El Laberinto de la Soledad, acima de qualquer das suas muitas obras, é um livro ao qual sempre retorno. Refiro-me mais exatamente ao capítulo “La dialéctica de la soledad”, que reli incontáveis vezes e estou certo de que continuarei relendo com o mesmo encantamento resultante da sua densidade analítica e do primor formal do estilo de Paz. Muitas vezes recomendei este capítulo à leitura de amigos, sobretudo de amigas, interessados no assunto – a solidão relacionada à sua negação, o amor. Octavio Paz aí demonstra, com rigor e claridade expressiva, ser um autêntico mestre da argumentação dialética, que muitos tolos presumem indissociável do marxismo.

Dois outros livros seus – livros novamente de ensaísta, no caso empenhado em elucidar temas de estética e história literária com a consistência argumentativa do crítico da cultura – também me parecem fundamentais: El Arco y la Lira e Los Hijos del Limo. Em Tiempo Nublado – livro menor, mas também obrigatório para quem deseje conhecer as muitas faces do ensaísta – Octavio Paz volta-se corajosamente para o domínio da crítica política e ideológica. Digo corajosamente porque ele, ao lado de Mario Vargas Llosa e de José Guilherme Merquior, foi dos poucos que ousaram criticar com argumentos de peso, e de modo algum conservadores, a sólida hegemonia de esquerda na cultura latinoamericana que, no caso brasileiro, se encorpa a partir da década de 1930. Para que se tenha ideia dessa hegemonia, ainda hoje, no cenário do pós-socialismo real, vemos intelectuais do porte de Antonio Candido justificando ideologicamente a ditadura de Fidel Castro, aparentemente decidido a sobreviver exercendo o poder até o último suspiro, ou charuto.

Se no Brasil Merquior foi sempre desprezado e com frequência difamado por essa hegemonia, no contexto mexicano Paz sofreu problemas ideológicos similares. Durante meus anos passados na Universidade de Essex fiz vários amigos mexicanos, quase todos ligados ao Departamento de Ciência Política. Sendo todos de esquerda, novamente a hegemonia em cena, hostilizavam Octavio Paz. Um desses amigos, David Davila-Villers, odiava-o ao ponto de recusar-se a admitir um fato facilmente verificável: em 1968 Octavio Paz renunciou ao cargo de embaixador do México na Índia em sinal de protesto contra a repressão imposta pelo governo do seu país aos estudantes de esquerda. Intolerância cega gente de todos os níveis mentais.

Itinerario, publicado em 1993, pode ser lido como uma biografia intelectual condensada de Octavio Paz. Comprei-o e li-o no início de 1995, quando fiz breve visita a Buenos Aires. Minhas impressões acerca deste livro delicioso, quase todo fruído num modesto quarto de hotel, estão anotadas no diário de viagem que então redigia: De Cidade y Ciudad.

Octavio Paz morre quase ao mesmo tempo em que, no Brasil, morre o político Sérgio Motta, figura proeminente do ministério de Fernando Henrique Cardoso. Embora tenha executado medidas políticas fundamentais à frente do Ministério das Comunicações, concorrendo assim para arejar o setor corroído pelas forças do estatismo parasitário que sustenta nosso indignante atraso social, Sérgio Motta é volátil como uma folha de grama exposta a ventos e marés. Sendo assim, coincidem, ele e Paz, apenas na dimensão da morte material, já que o político também se dissipa enquanto entidade espiritual. Octavio Paz, contrariamente, sobrevive. A matéria contingente, essa se dissipa, seja ela o corpo de Paz, de Sérgio Motta, de Ava Gardner, Ingrid Bergman, o rabo da última gostosa vendida na capa da Playboy, ou qualquer outro corpo.

O privilégio do grande artista, do criador de grandes obras espirituais, seja o poema, a canção, o romance, o sistema filosófico ou religioso, é sobreviver na obra que lega à posteridade. Sócrates, Jesus Cristo, São Francisco de Assis, Shakespeare, Marx, Freud, Montaigne, Bach, Tom Jobim, Machado de Assis, Cervantes, Michelangelo, Turgueniev, Conrad e muitos outros são forças vivas e atuantes no cerne da vida contemporânea. Sobrevivem, portanto, à morte física na obra espiritual que nos legaram. É por isso que não lamento a morte recente de Octavio Paz. Sequer sinto a sua falta. Como iria eu sentir a sua falta, se viveu sempre no meu espírito e nas prateleiras da minha biblioteca desde o primeiro momento em que o li?

Diário - Recife, 20 de abril de 1998.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O Liberal Vargas Llosa


Sabres e Utopias, a mais recente coletânea de artigos e ensaios de Mario Vargas Llosa publicada no Brasil, reúne em mais de 400 páginas substanciosa e variada amostragem da sua obra de intelectual público empenhado em questões políticas e culturais. O critério de seleção adotado pelo prefaciador do volume, Carlos Granés, privilegia a política e o combate ideológico em detrimento da literatura. Esta é inserida na coletânea já no capítulo final intitulado: “Os Benefícios do Irreal: Arte e Literatura Latino-americanas”. Além de Borges, Octavio Paz e outros poucos escritores hispano-americanos, comparecem os brasileiros Euclides da Cunha e Jorge Amado.

Saliento, todavia, que Vargas Llosa bem pouco considera a literatura compreendida no seu sentido estrito. Já aludi num outro artigo a essa característica tão marcante em romancistas de renome como Vargas Llosa e José Saramago no debate público da cultura. Embora prioritariamente escritores literários, o fato é que quase sempre se pronunciaram sobre questões políticas e ideológicas. A literatura importa, em termos práticos, apenas como aval ou credencial de sucesso para que intervenham na cena cultural contemporânea.

O que Vargas Llosa escreve acerca de Euclides da Cunha e Jorge Amado, também de outros escritores literários, amplia no campo estético suas obsessões político-culturais enraizadas na América Latina. Noutras palavras, lê Os Sertões, por exemplo, antes de tudo como uma das manifestações supremas dos males típicos que infestam nossas sociedades herdeiras do colonialismo ibérico, do misticismo obscurantista, do nacionalismo estatizante e parasitário, das ditaduras e da corrupção endêmicas apoiadas em ideologias que mantêm o conjunto da América Latina na periferia da modernidade e do autêntico liberalismo democrático.

O que é afinal o liberalismo há décadas ardentemente postulado por Vargas Llosa como solução para os problemas crônicos indicados no parágrafo precedente? A pergunta se impõe em face das incompreensões, quando não grosseiras calúnias, que sobre ele correntemente recaem no conjunto dos países latino-americanos. No Brasil, para ficar no nosso terreiro, o conceito do liberalismo é frequentemente deformado na mídia e no que se pode ainda qualificar como franco debate de ideias. Basta que se pense no abuso com que se emprega sua variante, neoliberalismo. Este é sempre usado não como um conceito, mas simplesmente um insulto ideológico, uma forma de se desqualificar sumariamente um político, pensem em Fernando Henrique Cardoso, uma orientação política ou ainda uma opção ideológica.

Mas voltemos a Vargas Llosa. Esclarecer a noção de liberalismo que adota e propõe como solução para a América Latina saturada de ditaduras e populismos é já um meio de melhor situar nossas turvas disputas relativas a conceitos políticos fundamentais. Os textos chave do livro que comento no que se refere ao liberalismo do autor são “Confissões de um liberal” (páginas 299-308) e “Ganhar batalhas, não a guerra” (páginas 245-58), ambos incluídos no capítulo relativo à democracia e ao liberalismo na América Latina.

Destaco e adiante comento estes textos porque nos ajudam a melhor compreender o liberalismo adotado por Vargas Llosa e também, à parte variantes acidentais, Octavio Paz, a quem dedica um belo artigo intitulado “A Linguagem da Paixão”, e José Guilherme Merquior. Cito nominalmente estes por se distinguirem há décadas entre os grandes intelectuais latino-americanos na defesa de políticas liberais como solução gradual para os problemas crônicos de atraso e subdesenvolvimento que tanto marginalizam nosso subcontinente no contexto do capitalismo globalizado. Assim procedendo, opuseram-se corajosamente ao que o comunismo cubano representa como expressão de caudilhismo político e violação sistemática dos direitos humanos. Quando lembramos que a maioria dos nossos intelectuais, dentro e fora das universidades, ainda reluta em tomar posição contra a persistência do comunismo cubano, para não mencionar os que simplesmente insistem em apoiá-lo, não é de espantar que sua postura liberal tenha provocado tanta incompreensão crítica, não raro também intolerância caluniosa. Embora combatam com igual veemência as ditaduras de direita, este fato, como seria previsível, não os isenta dos ataques procedentes de ambos os lados. Afinal, esta é uma verdade tão antiga quanto a política: quem ousa opor-se aos extremos acaba apanhando de ambos.

“Confissões de um liberal” é o texto de uma palestra proferida por Vargas Llosa no American Enterprise Institute for Public Policy Research na oportunidade em que lhe foi outorgado o prêmio Irving Kristol. Depois de salientar que pela primeira vez, ao lhe conferirem o prêmio, lhe reconhecem a unidade ou coerência que sempre procurou realizar no homem e na obra, na literatura quanto na identidade política, Vargas Llosa acentua a imprecisão do conceito de liberal.

Começa por fixar a distinção observável no emprego do termo na tradição anglo-saxônica e na América Latina – também na Espanha, país que há anos lhe concedeu cidadania quando foi expatriado do Peru por combater uma de suas ditaduras costumeiras. Na primeira o termo tem conotações de esquerda, sendo por vezes associado ao socialismo e ao radicalismo político. Já na segunda tradição o termo sofreu um processo singular de perversão semântica, sobretudo quando consideramos sua última variação, o neoliberalismo. No Brasil ele se converte num insulto ideológico, pois o neoliberal é sempre visto como um conservador ou reacionário, adepto desprezível de toda política privatista geradora da opressão imposta aos pobres do mundo. Em suma, é um chavão usado em bloco por todo esquerdista de sindicato ou militante acadêmico. Confundir o liberalismo de Vargas Llosa, Octavio Paz e Merquior, por exemplo, com as políticas adotadas por gente como George Bush, ou com a política externa norte-americana tout court, é mais que um erro de apreciação ideológica, é incorrer na corrupção leviana da linguagem política.

O conceito se torna ainda mais turvo quando os próprios que se definem como liberais divergem entre si, como é aliás frequente. Melhor dar a palavra ao próprio Vargas Llosa, que num parágrafo exemplar ressalta os traços fundamentais do liberalismo que defende:
“Como o liberalismo não é uma ideologia, ou seja, uma religião laica e dogmática, mas sim uma doutrina aberta que evolui e se adapta à realidade em vez de procurar forçar a realidade a se adaptar a ela, há entre os liberais várias tendências e profundas divergências. No que diz respeito à religião, por exemplo, ou aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, ou ao aborto. Assim, os liberais que, como eu, são agnósticos, partidários da separação ente Igreja e Estado e defensores da descriminilização do aborto, bem como do casamento homossexual, são às vezes criticados com dureza por outros liberais que, nesses assuntos, pensam o contrário de nós. Tais divergências são saudáveis e produtivas, pois não ferem os pressupostos básicos do liberalismo que são a democracia política, a economia de mercado e a defesa do indivíduo frente ao Estado”. (p. 301).

A citação um tanto longa parece-me bem esclarecedora do liberalismo adotado por Vargas Llosa. Ele consiste fundamentalmente na afirmação integrada dos três pressupostos anotados ao final do parágrafo. Compreendendo-os de forma integradora, não incorre na adoção do liberalismo puramente econômico, que tudo entrega às forças do mercado. Pelo contrário, critica em termos veementes esta forma parcial de liberalismo, que na sua perspectiva precisa associar-se à democracia política. Como afirma sem meias palavras, o que distingue a civilização da barbárie não é a liberdade de mercado, não importando o quanto seja eficiente, mas a cultura consistente de um corpo de ideias, valores, crenças e costumes compartilhados em termos democráticos. Se o mercado for entregue a suas forças competitivas cegas, produzirá riqueza, mas sempre ao preço de uma batalha darwiniana, como frisa citando em seguida Isaiah Berlin, um dos teóricos supremos do liberalismo: “os lobos comem todos os cordeiros”.

Além de ressaltar a liberdade como expressão maior do liberalismo que postula, Vargas Llosa coerentemente sublinha a defesa fundamental do indivíduo perante os poderes do Estado. É em nome desse valor supremo, a liberdade individual, que assinala a tolerância como medida civilizada da nossa relação com o outro, sobretudo o outro que nos nega, que pensa diferentemente de nós. Afinal, é fácil concordar com quem conosco concorda. A liberdade individual e a tolerância cívica se expressam antes de tudo diante do diferente, do que pensa diferentemente de nós. Como disse Rosa Luxemburgo, uma comunista libertária, a liberdade é sempre e exclusivamente a liberdade de discordarem de nós.

O problema do comunismo, para aludir aqui a uma ideologia de esquerda que exerceu poderosa influência sobre os intelectuais e camadas mais críticas das sociedades ocidentais, é que ele, pelo menos em termos práticos, baseou a liberdade na realização da igualdade econômica, além de abolir o Estado burguês embalado pela utopia da extinção do Estado de classe. Ora, o que ele de fato realizou foi a instituição do Estado totalitário a partir do momento em que suprimiu as liberdades civis sob o pretexto de que não passavam de liberdades burguesas. Isso é tão verdadeiro que os melhores comunistas brasileiros precisaram amargar no nosso país uma ditadura militar para aprenderem a importância dessas liberdades, que não podem ser confundidas com valores da classe burguesa. Elas representam nossa defesa última contra o poder do Estado que ameaça nossa autonomia individual.

É dentro do contexto acima que me inquieta, numa dimensão em último caso política, a difusão de uma cultura narcisista, votada ao espetáculo do consumo hedonista, que induz as pessoas a renunciarem à sua liberdade, à defesa de sua vida privada que, reitero, constitui nossa defesa última contra os poderes do Estado. Essa renúncia é bem patente neste trocadilho penetrante: evasão da privacidade. Rendidas ao desejo de aparecer, de usufruir os 15 minutos de fama cronometrados na famosa boutade de Andy Warhol, as pessoas tudo negociam, relembrem o caso exemplar de Geisy Arruda, para conquistarem uma ilusória sensação de importância passível de removê-las das vidas insignificantes que sofrem. Essa renúncia à liberdade individual, servilmente negociada no palco ou passarela onde desfilamos nosso narcisismo insaciável, constitui, no meu entender, uma das mais graves ameaças à liberdade no mundo em que vivemos. Portanto, não é por motivações estreitamente moralistas que a critico, mas por considerar o valor político que em última instância encerra.

Vargas Llosa dedica alguma atenção à cena política e cultural brasileiras quando de algumas passagens pelo país. Louva a política liberal adotada por Lula – o que é fato, não obstante o foguetório retórico deste e de muitos que o apoiam – ao mesmo tempo em que duramente o critica pelos passos mais desastrosos de sua política externa. Para ser mais preciso: critica-o quando posa sorridente ao lado de Fidel Castro, emprestando assim apoio público ao ditador no momento em que este golpeava de morte os direitos humanos de prisioneiros políticos da ilha.

É sem dúvida admirável a tenacidade com que, ao longo de uma longa vida, Vargas Llosa combate em defesa da liberdade compreendida dentro dos termos liberais que procurei esboçar neste artigo. O melhor evidentemente é o leitor conferir com seus próprios olhos os fundamentos do liberalismo que adota atentando em particular para os dois textos acima referidos. Melhor ainda é antes remover a névoa dos preconceitos que contaminam as apreciações ideológicas sobre o liberalismo correntes no nosso meio. Confundir o liberalismo de Vargas Llosa, por exemplo, com o da esmagadora maioria dos nossos políticos, dentro quanto fora do congresso, é apenas concorrer para turvar ainda mais essas águas que somente uma autêntica cultura política poderia adequadamente iluminar.

Por fim, restaria assinalar que Vargas Llosa, dentro da sua tenacidade combativa, é um dos últimos representantes de uma espécie em vias de extinção: a do intelectual público, empenhado na luta das ideias e na defesa das liberdades fundamentais do indivíduo ou ainda dos valores humanos invocados por uma longa tradição humanista que aparenta atravessar um declínio irreversível. Russell Jacoby escreveu há alguns anos um livro, The Last Intellectuals, devotado a essa questão na cena cultural americana. Nele demonstra, em síntese, o processo que deslocou os intelectuais da cena pública (bastaria lembrar nomes como Edmund Wilson, Lionel Trilling e Norman Mailer) para o refúgio da academia, onde hoje entretêm teorias complicadas e radicalismo de cátedra para consumo dos próprios pares, como um jogo de castália praticado em nichos impenetráveis à participação mais ampla do povo no reino da cultura letrada. Vargas Llosa, assim como seus parceiros liberais antes mencionados, Octavio Paz e Merquior, constitui a negação dessa realidade que tende a se impor cada vez mais.
Recife, 24 de dezembro de 2010.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Porto de Galinhas Era o Paraíso


Chegaram a Porto de Galinhas ao entardecer. Era como o paraíso estendendo-se diante de seus olhares maravilhados. O vento gemia nos coqueirais que se espraiavam rente à faixa arenosa. Um pouco além, na imensidão da tarde, as ondas quebravam em sucessão ritmada. O mar era o mundo alongando-se para além da linha do horizonte. Descobriram o paraíso naquele miraculoso entardecer de dezembro, 1971, e o paraíso chamava-se Porto de Galinhas.

Porto de Galinhas era então uma pequena vila habitada por pescadores, gente pobre e obscura que vivia da pesca, do trabalho nos canaviais que dominavam a paisagem entre a praia e a rodovia e de uns fiapos de economia coletora. Não havia luz elétrica, saneamento nem água encanada e o acesso à praia era difícil o suficiente para revestir-se de certo toque de aventura na imaginação exaltada daquele grupo de jovens universitários.

Alugaram a casa de um dos pescadores situada na rua que é ainda a rua central da praia. Era uma casa modesta, mas ainda assim uma das melhores da vila. Tinha dois ou três quartos nus, varanda e quintal. Levaram colchões e esteiras, além de alguns objetos necessários à sobrevivência durante um mês naquela praia remota. No decorrer desse tempo o grupo sofreu frequentes variações, pois parte dos jovens precisava dividir o tempo entre a praia e o Recife.

Ecoando o espírito da época, muitos eram politizados, embora impedidos de praticar a política ou já desinteressados de o fazer. O sentido de politização da vida era tão poderoso, mesmo naquela vila remota, que precisavam de algum modo justificar sua omissão, sua rendição prazerosa à gratuidade da vida, sua recusa da política. Foi ali, naquele remoto verão, que alguns descobriram a literatura hispano-americana lendo García Márquez, Vargas Llosa, Julio Cortázar, Alejo Carpentier e Neruda. Alguns, já conscientes do engodo que é a baixa literatura travestida de literatura engajada, riam de Thiago de Melo, em particular de um livro que embrulhava em versalhada as ilusões esquerdistas do tempo: Faz escuro mas eu canto. Era o caso de José Carlos Freire, que entre risos ameaçava os que à noite lhe tiravam o sono com brincadeiras importunas: “Se não me deixarem dormir, leio em voz alta três poemas de Thiago de Melo”. Era o suficiente para que todos, entre gargalhadas, o deixassem dormir em paz.

Alguns dentre aqueles jovens estudavam medicina. Representavam na Macondo que era então Porto de Galinhas a última geração de médicos inspirados por uma formação de tinturas humanistas e decidido sentido de participação social. Daí a saliência de uma noção política da vida, daí o exercício da medicina social que nitidamente marcou a formação de todos eles. Embora impedidos de militarem politicamente, compensavam esse veto estagiando em hospitais e clínicas públicas, atuando dentro dos limites possíveis nos diretórios acadêmicos da universidade. Mas aquele mês de verão vivido no paraíso de Porto de Galinhas foi um mês de pura e inocente farra, um mês de descoberta de prazeres virgens e insólitos.

O amor era uma descoberta iluminada, diria mesmo inocente. Embora simbolizassem uma geração pioneira, a que começou a rotinizar o sexo entre namorados e a fundação de uma ética avessa à tradição assimilada dentro da família, sintomaticamente criticada a partir de ideais libertários tangidos pelo espírito de uma nova esquerda, nunca se entregaram à promiscuidade sexual, à infidelidade, à dissipação erótica e à cultura da droga que alguns somente mais tarde abraçariam ou provisoriamente provariam inspirados pela curiosidade ou gosto do experimento. A amizade entre casais de namorados, tão intensa entre alguns, era revestida de certa inocência sublimadora das pulsões eróticas que noutros círculos já começavam a arrebentar e logo mais tarde desaguariam na permissividade hoje rotineira.

Embora desatados das repressões correntes na família de então, usufruíram daquele estado de liberdade única à beira das águas iluminados pelo esplendor das noites enluaradas e pelas canções de Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso, Baden Powell, Vinícius de Moraes e Toquinho comportando-se como um grupo de jovens alegres e inofensivos no seu espírito festeiro. É certo que mudaram a rotina da vila entrando madrugada a dentro na ronda da praia, mergulhando nas águas em noites de luar e dançando ciranda, inventando brincadeira para ver quem seria capaz de ficar aceso na praia até o amanhecer. Também bebiam, sobretudo batida de limão, tão comum nas bebedeiras da época. Certa noite, um deles excedeu-se e armou um dramalhão de menino embriagado. Depois de muita cena e até lágrima de meninão ainda oprimido por obscuros traumas de família, entregou-se às águas num patético simulacro de suicídio para morrer nos braços de Iemanjá, mas logo foi salvo pelo lendário Capitão América.

Havia a música adornada pelos sopros líricos daquele paraíso tropical. Para alguns, os mais líricos, quatro discos compunham o fundo musical fruído à beira mar sob os esplendores da lua cheia. Levavam lençóis que estendiam sobre a areia e se deitavam namorando ou contemplando a vastidão do mar onde a lua se espelhava. Foi ali decerto que um deles viveu iluminações de fundo místico que Freud designou como “sentimento oceânico” da existência.

Mas vamos aos quatro discos acima mencionados. O primeiro era “Lotus”, de Baden Powell. Nunca foi infelizmente reeditado na forma de cd agora corrente. Algumas faixas, entre as melhores num disco de comovente intensidade lírica, circulam agora em coletâneas. É o caso de Viagem. O segundo era “Como dizia o poeta”, um dos pontos altos da parceria Vinícius-Toquinho. O disco ainda hoje impregna a memória musical de alguns que viveram o verão aqui evocado, mas caberia ressaltar Tarde em Itapuã. O terceiro era “É doce morrer no mar”, disco que reúne o melhor das canções praieiras de Dorival Caymmi. Ouvi-lo naquela atmosfera de sonho era uma experiência de dimensão emocional intraduzível em palavras. Por fim, havia “Construção”, disco lançado naquela época que evidenciava o grande poder de renovação de Chico Buarque como compositor. A faixa que confere título ao disco era sem dúvida a melhor, mas talvez outras tenham marcado bem mais profundamente a memória do paraíso fugaz que foi Porto de Galinhas.

Que me lembre, o medo hoje corrente nas nossas praias e cidades ainda não invadira as vidas ruidosas daquele grupo de jovens. Havia, sim, o medo da repressão política imposta pela ditadura em plenos anos de chumbo. Mas esse temor importava apenas para os poucos politicamente ativos dentro do grupo, aqueles que de algum modo, com ou sem medo, moviam-se entre as brechas estreitas através das quais a liberdade e o espírito de oposição respiravam. À parte isso, Porto de Galinhas era um território livre, um paraíso ecológico animando os sonhos e fantasias daqueles jovens inconscientes de forças e poderes que mais tarde atravessariam suas vidas. O fato é que nas ruas, nas praias desertas e mesmo nas grandes cidades, como era o caso do Recife, residência de todos ali reunidos, não se banalizara o medo que no presente assalta nosso cotidiano.

Havia ainda as caminhadas em grupo ao longo da larga faixa de areia que se forma na praia quando as ondas recuam. Andavam muitos quilômetros, ora em direção ao Sul, passando por Maracaípe e o Pontal de Maracaípe, ora em direção ao Norte, onde alcançavam Cupe e Muro Alto. Essas caminhadas eram tão divertidas e variadas, oscilando entre as travessuras em grupo e a formação de casais entretidos em conversas por vezes sérias e confessionais, que nem se lembravam de cansaço ou desânimo.

Mas o fato é que os anos passaram, muitos anos passaram. A ditadura recuou, sobrevieram a anistia e a redemocratização, a década perdida e outras perdas acrescidas de alguns ganhos, já que ninguém é de ferro. Hoje, no momento em que digito essas memórias turvas e grupais, o Brasil move-se na maré montante da acumulação capitalista, da febre de consumo e do otimismo coletivo típico dessa época de festas, sobretudo quando o cenário econômico é tão animador. Como não sei de bem que não segregue males, reitero o lugar comum com alguma variação de forma, a própria expansão capitalista está gerando problemas que tendem a converter o Recife num inferno urbano. Em suma, Recife está se tornando uma cidade intolerável para gente do meu tipo com seu trânsito maluco, tão anômico e violento que mais semelha um ensaio de guerra civil.

Parte desses males estendeu-se para as cidades do interior e para as praias, notadamente Porto de Galinhas. Hoje ela é a mais badalada e concorrida do litoral pernambucano. Há anos, aliás, tornou-se um dos pontos de eleição procurado por turistas de todos os lugares do Brasil, além de muitos estrangeiros. A transformação de sua paisagem humana foi tão profunda no decorrer dos anos que a separam das memórias aqui evocadas que aquele remoto verão de 1971-72 semelha antes um sonho, uma fantasia tramada pela memória carente de evasão dessa realidade espremida entre muralhas de concreto, engarrafamentos opressivos e ruas ruidosas onde circulam massas histéricas.

Há muito felizmente libertei-me das prisões emocionais que tendem a produzir nostalgia, esse tipo de olhar desfigurador do passado tendente a recompô-lo com linhas e cores e situações humanas que nunca existiram, salvo na nossa memória carente de consolação ilusória. O que esbocei nesta breve crônica de memórias foi algo da realidade objetiva e da atmosfera emocional que marcaram minha vida e a daqueles amigos, há muito dispersos no tempo e no espaço, que descobriram Porto de Galinhas quando ela se abria ante nossos olhos deslumbrados e nossa imaginação como se fosse o paraíso, o paraíso fugaz que efetivamente vivemos naquele remoto verão. Mas sei que a própria noção de paraíso é antes de tudo um outro modo de consolação ilusória. Afinal, dentro do próprio paraíso que provei, ou antes figurei na minha imaginação, sentia já o gosto amargo da realidade que me espreitava dois passos além da praia, senão dentro da sua própria paisagem embriagante. O fato é que dali parti iluminado por um mês que transfigurou minha vida crivada de carência e incerteza. Foi graças àquele verão que descobri e fruí alguns dos mais belos momentos de minha juventude; também, por contraste, sofri o bastante para perder em definitivo a poeira das ilusões que deitei à margem da estrada ou lancei ao sopro da brisa que varria o mar de Porto de Galinhas.

Recife, 24 de dezembro de 2010.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Vargas Llosa e o Nobel




Vargas Llosa foi enfim agraciado com o Nobel de Literatura, o que é de justiça, ainda que tardia. Sabemos que o Nobel com frequência sobrepõe critérios políticos aos estéticos, que no meu entender deveriam ser prevalecentes. Isso fica evidente quando acaso corremos os olhos pela lista dos premiados, não poucos desconhecidos por grande parte do público universal da literatura. Além de conhecidos e apreciados numa esfera restrita, logo mergulham no esquecimento mal a repercussão momentânea decorrente do prêmio se dissolve na mídia e no mercado editorial. Bastaria a propósito observar os nomes destes premiados a partir de 2000: Gao Xingjian, Imre Kertész, Elfriede Jelinek, Orhan Pamuk, Herta Müller. Quem de fato os conhece no Brasil e em grande parte do mundo ocidental, incluídas suas extensões periféricas?

O leitor pode discutir os méritos estéticos da obra de Vargas Llosa, assim como os discutem alguns críticos que lhe depreciam a obra no que encerra de filiação ao realismo típico do romance novecentista. Ressaltando o quanto os condicionantes políticos e ideológicos perturbam apreciações dessa natureza, acrescentaria que Vargas Llosa é combatido antes de tudo devido à natureza ideológica do discurso com que desde a juventude intervém no debate público.

Até recentemente o intelectual procedente da América Latina se distinguia como intelectual público. Até mesmo Borges, o mais atípico e livresco rebento dessa tradição, teve sua obra e biografia momentaneamente subordinadas à força imperativa dessa circunstância político-cultural. Já que seu nome veio à baila, importa lembrar que morreu sem ganhar o Nobel, erro que o atual presidente da Academia Sueca é o primeiro a reconhecer. Vargas Llosa constitui um dos exemplos mais vivos e constantes do intelectual militante, tão constante, aliás, que teimosamente se destaca como um dos últimos sobreviventes dessa espécie em vias de extinção. Autor de obra e notoriedade precoces, literatura e apaixonada participação política se entrelaçam no desdobramento de sua biografia.

Por que Vargas Llosa é tão combatido no Brasil e sobretudo no Peru, seu país de origem? Antes de tudo, por se opor ao comunismo e a ditaduras de direita e esquerda tão comuns na história da América Latina. Na juventude aderiu ao marxismo e apoiou entusiasticamente a Revolução Cubana. Não obstante, ousou discordar desta quando os fatos passaram a comprovar o desvio ditatorial contraditório dos ideais libertários que antes justificavam sua adesão.

Como é também típico da história intelectual latino-americana, Vargas Llosa formou-se tendo como modelo a cultura parisiense. Espelhou-se antes de tudo em Sartre, o grande mandarim da inteligência de esquerda entre as décadas de 1950 e 1970. Quando eclodiu a histórica polêmica entre Sartre e Camus (documentada num livro de Vargas Llosa: Contra Vento e Maré), Vargas Llosa tomou o partido do primeiro. Anos mais tarde, depois de um percurso acidentado, que passa da adesão ao comunismo e à Revolução Cubana à crítica das utopias de esquerda e conversão combativa ao liberalismo, Vargas Llosa dá enfim razão a Camus.

É curioso o fato de que, escrevendo sobre Sartre no remoto ano de 1964, quando este provocou momentosa polêmica ao recusar o prêmio Nobel de Literatura, Vargas Llosa o aprecie em termos que anos mais tarde, também hoje, se encaixam perfeitamente na imagem controvertida que seus críticos traçam dele próprio. Vale a pena conferir: “Sartre não facilita a tarefa dos críticos, obriga-os a correr, a ir e vir, a experimentar cada vez novas algemas para prendê-lo. O que não perdoam nele é a sua condição de franco-atirador, sua independência de julgamento, sua atitude alerta, sua imprevisibilidade, seu inconformismo. Nem a direita nem a esquerda conseguiram ´oficializá-lo`: por isto o atacam com tanta virulência”. (Mário Vargas Llosa, Contra Vento e Maré, p. 55).

Salvo o fato de que a virulência cedeu no tom e no ímpeto, sintoma do abrandamento dos antagonismos ideológicos na cena intelectual do presente, a citação acima aplica-se perfeitamente ao percurso ideológico de Vargas Llosa. Ele e Octavio Paz foram dos primeiros, vale a pena lembrar aqui o exemplo de José Guilherme Merquior no contexto brasileiro, que se reconciliaram com a melhor tradição liberal para combater Cuba e os movimentos de esquerda e direita na América Latina. Assim procedendo, como seria previsível, pois a história ideológica está saturada de exemplos semelhantes, foram atacados por ambos os lados. Mas é sempre difícil, salvo para os intolerantes e dogmáticos indiferentes aos fatos impositivos da realidade, acomodá-los num extremo ou noutro. Afinal, ambos aderiram ao liberalismo não para justificar regimes opressivos de direita, não para se acomodarem às iniquidades da nossa história social e política, mas para denunciarem a desigualdade e a injustiça produzidas tanto à esquerda quanto à direita.

Vargas Llosa esteve muitas vezes no Brasil e muito conhece da nossa tradição social e literária. Quando escreveu A Guerra do Fim do Mundo, ampla narrativa inspirada no grande clássico de Euclides da Cunha, fez demorada viagem de pesquisa através do sertão da Bahia. Antes disso leu muito sobre o Brasil, em particular sobre essa guerra que vincou de modo traumático o início da nossa história republicana e sobrevive na nossa memória social como uma das evidências mais brutais de extermínio de uma sofrida fração do nosso povo incendiado por um ideal utópico inspirador de resistência inédita na história dos nossos conflitos sociais. Seu romance é antes de tudo uma recriação ficcional do messianismo primitivo do sertanejo brasileiro e da intolerância ideológica que resulta em cegueira mútua: cegueira dos seguidores de Antônio Conselheiro, transfigurados pelo delírio utópico do beato; cegueira dos adeptos intolerantes da República, que erradamente figuraram a resistência de rebeldes miseráveis como se fosse um movimento de restauração da monarquia associado até ao capitalismo inglês.

Durante muito tempo Vargas Llosa afirmou que A Guerra do Fim do Mundo era o melhor romance que tinha escrito. Outros no entanto preferem Conversa na Catedral. Ele próprio, crítico literário refinado e grande manipulador das técnicas narrativas, reconhece o quanto escolhas dessa natureza são discutíveis. Uma coisa, porém, continuou sustentando: A Guerra do Fim do Mundo foi o romance que mais lhe deu trabalho e portanto lhe consumiu energia e imaginação recriadora dos eventos e documentos pesquisados.

O Paraíso na outra Esquina, belo título de romance, foi um projeto que Vargas Llosa nutriu durante muito tempo. Embora somente publicado em 2003, já por volta de 1985 a figura extraordinária de Flora Tristán, protagonista feminina da obra, já o fascinava. Avó do grande pintor Paul Gauguin, ambos dividem o conjunto dessa extensa narrativa que desdobra em linhas paralelas suas vidas desenhadas em capítulos justapostos. Parece-me pertinente afirmar que esse romance constitui outra variação ficcional das frustrações e desastres germinados pela imaginação e ideais utópicos dos personagens. Flora foi sem dúvida uma mulher extraordinária, admirável precursora dos movimentos feministas numa época cuja intolerância com relação a tais ideias o leitor pode facilmente desenhar. Quanto a seu neto, Gauguin, renunciou às vantagens e conveniências da vida burguesa em Paris ao migrar para o Taiti em busca de um sentido de vida liberto das convenções civilizadas em meio a povos e culturas remotas e aderentes ao mundo da natureza.

Outro dos romaces recentes de Vargas Llosa que merece registro num breve artigo de circunstância é Travessuras da Menina Má. Este é um romance de rica e envolvente ação. Narrando os encontros e desencontros amorosos de Ricardo e Lily, que se conhecem ainda adolescentes no Peru, o livro se estende através de décadas movimentadas e turbulentas num percurso que compreende a Paris revolucionária dos anos 1960 e a swinging Londres do mesmo período (não seria arbitrário concluir que uma substancial fração dessa parte da narrativa é projeção da própria biografia do autor); a cultura hippie associada à liberação do sexo e da droga; a Tóquio dos mafiosos e por fim a conturbada atmosfera de Madri durante a transição política dos anos 1980. A meio disso, as contínuas e desconcertantes mutações de Lily, a menina má, podem ser lidas como expressão literária de um mundo cultural regido pela mudança acelerada e atordoante. Daí se desprendem nossas incertezas tão dolorosas, as identidades confusas que vestimos e logo trocamos e logo perdemos ou simplesmente rejeitamos, pois Lily não tem sequer identidade nominal estável.

Por fim, acrescentaria meu apreço pelo crítico literário e pelo infatigável artesão das formas narrativas que Vargas Llosa tem espelhado em obras como A Orgia Perpétua (1979), La Verdad de las Mentiras (2002) e Letters to a Young Novelist (2002). Peço desculpas ao leitor por citar edições em línguas e datas divergentes das edições brasileiras correntes. É que recorri exclusivamente aos livros que tenho à mão. Repetindo o que já escrevi na primeira linha deste artigo, o Nobel faz enfim justiça, ainda que tardia, ao grande romancista, intelectual público e homem de pensamento e ação Mário Vargas Llosa.
Recife, 9 de outubro de 2010.